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Reflexões sobre o 13 de maio

16 de Maio de 2018 às 10:00
Crédito: Ruber Couto
Reflexões sobre o 13 de maio
Fachada da Assembleia
Parlamentares fazem reflexões sobre os 130 anos de abolição da escravidão no Brasil. A Agência de Notícias colheu depoimentos sobre os desafios para a implantação da democracia racial no Estado.

No último domingo, 13 de maio, o Brasil comemorou 130 anos de promulgação da legislação que aboliu a escravidão em todo o território nacional. A Lei Áurea, como ficou conhecida a Lei Imperial n.º 3.353, sancionada pela então regente do império brasileiro, a princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, ainda não logrou, contudo, assegurar a democracia racial no país e a inclusão das populações negras continua a ser uma meta.

Após quase um século e meio de abolição da escravatura, a desigualdade de direitos continua a afligir, em níveis diversos, cerca de 55% da população brasileira, que corresponde ao contingente de pessoas autodeclaradas pretas ou pardas, conforme dados divulgados pelo IBGE, em 2017.

Isso é o que mostram, por exemplo, as estatísticas referentes à situação vivenciada por negros e pardos no mercado de trabalho atual. Eles compõem, hoje, a maior parte da massa de desempregados (63%) e de trabalhadores domésticos (66%) do país. Além disso, os rendimentos da população branca (R$ 2.814) costumam ser, em média, quase duas vezes maior do que o da negra (R$ 1.570).

Outra pesquisa divulgada, também em 2017, pela ONG britânica Oxfam aponta que, nesse ritmo, a igualdade salarial entre pretos e brancos no país só será possivelmente alcançada no final do século, após decorridos mais 200 anos de vigência da Lei Áurea.

Por ocasião da passagem da data que relembra, anualmente, este marco histórico nacional, parlamentares goianos e outros representantes de movimentos negros na Assembleia Legislativa (Alego) aproveitaram o momento para debater questões diversas relacionadas aos desafios para a implantação da democracia racial no Estado. Eles ressaltam que o 13 de maio é uma data fundamental para que a população em geral possa fazer uma reflexão profunda sobre a desigualdade racial ainda existente no país e em Goiás.

"Essa data é oportuna para que façamos uma grande reflexão, tanto negros quanto brancos. Ela é muito importante para gente, porque lutamos há muitos anos para acabar com essa desigualdade racial. Melhorou algumas coisas, mas ainda há muito para ser melhorado. A gente vê que o número de negros na faculdade, por exemplo, embora tenha crescido nos últimos anos, ainda é muito pequeno. Assim como em diretorias também. Até em restaurante! Eu faço essa observação. Quando vou, às vezes, para fazer reunião, fico olhando. E você quase não vê negros em restaurantes bons", pondera o deputado Marlúcio Pereira (PRB), único representante negro a ocupar cadeira no atual Parlamento Goiano.   

"É uma data importante, porque lembra, com muita tristeza, das pessoas que foram trazidas escravizadas para o nosso país. Um fenômeno que também aconteceu em muitas partes do mundo, de intensa tortura e sofrimento, que não podem ser esquecidos. É uma data importante também para se lembrar e pensar na dívida histórica que o nosso país tem com as pessoas que foram escravizadas e para fazer uma reflexão de como o nosso país caminha no sentido de reconhecer as desigualdades, de lutar contra elas e de sonhar por uma país igualitário e justo. E nos perguntar: por que tantas pessoas negras são tão pobres? Por que temos tanta desigualdade social e racial?", questiona a deputada Delegada Adriana Accorsi (PT), presidente da Comissão de Segurança Pública da Alego.  

"Nós, indígenas e quilombolas, somos cerca de 400 estudantes hoje na universidade e a gente não é absorvido pelo mercado de trabalho, que é racista. A gente não se sente representado nos espaços onde vai. Estou lutando por essa representatividade. A gente quer ter essa ascensão social também, porque o negro hoje, principalmente, o quilombola, está nas escalas mais baixas, economicamente falando, sem acesso a direitos básicos”, observa a mestranda Marta Quintiliano, uma das jovens integrantes da terceira edição do projeto Politizar.

A iniciativa, um laboratório simulado das atividades do Poder Legislativo, será realizada em junho, na Alego. Marta, que é estudante quilombola do Mestrado em Antropologia Social da UFG,  ocupará vaga de deputada pelo PT na simulação.

 

Racismo 

O racismo é uma forma de discriminação baseada na cor da pele (ou raça), que serve para restringir o direito de determinados indivíduos ou grupos, impedindo seu acesso a oportunidades sociais e econoÌ‚micas. Um dos exemplos, que guarda relações diretas com a já apontada desigualdade racial no mercado de trabalho, é o fato de que populações negras no brasil continuam, ainda hoje, a figurar entre as camadas sociais mais pobres do país. Isso é o que revelam dados divulgados pelo IBGE em 2014. Dos 10% mais pobres, cerca de 76% eram negros. Já entre os 1% mais ricos, a participação dos negros se resumia a apenas 15%.

Para a deputada Adriana Accorsi, o fosso que ainda separa negros e brancos no Brasil possui raízes históricas que remetem ao período de escravidão. Isto porque, com a abolição, não houve uma preocupação com a inserção digna do negro na sociedadee nacional.

“A luta contra toda a forma de opressão, preconceito e discriminação tem que ser cotidiana. Como delegada, eu atuei em muitos casos relacionados a racismo, desigualdade, discriminação. E penso que essa Casa precisa estar mais atenta à essa grande questão nacional. O Brasil é um país onde a maioria das pessoas é negra ou parda. Parcela considerável delas é possivelmente descendente de pessoas escravizadas e a desigualdade de classe, para mim, é oriunda também dessa escravização que aconteceu. Nós precisamos conversar sobre isso e buscar, com ações efetivas, um país mais igualitário”, pondera.

Já Marlúcio destaca que o racismo é um problema de cunho educacional e que se origina, muitas vezes, no interior das próprias famílias. “Tem algumas ocasiões em que, a criança, quando se depara com a gente, fica assustada. Isso quer dizer que alguém está falando alguma coisa para ela, porque ela não tem idade para entender essa questão do racismo no Brasil”, observa.

Um racismo que, dado, por exemplo, a baixa representatividade social e política do negro na sociedade, acaba por se perpetuar, inclusive, até a fase adulta. “Infelizmente a gente sofre muito ainda. Eu vejo por mim, que sou deputado. Às vezes a pessoa fala comigo por telefone e quando vai me conhecer pessoalmente, você vê que ela leva um susto. E, até sem querer, perguntam, às vezes: 'ah! Você que é o Marlúcio?' Também porque nessa Casa de Leis passaram poucos deputados negros. Comigo são três, no total. E nós somos 52% da população”, comenta Marlúcio.

Representatividade

Conforme aponta o deputado, outro aspecto que preocupa ativistas das causas raciais, diz respeito à essa baixa representatividade das populações negras nas instâncias de poder, responsáveis por definir os rumos da política no país. Mesmo sendo maioria da população, apenas 3% dos eleitos em 2014 se declararam negros. Isso foi o que revelou um levantamento feito a partir de informações coletadas, na época, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Em Goiás, a situação não é diferente. Dos 41 deputados estaduais que integraram a atual estrutura da Assembleia Legislativa, há apenas um negro. A baixa representatividade negra se manteve praticamente inalterada durante toda a história do parlamento goiano. Ao longo de 18 legislaturas, somente três deputados autodeclarados negros passaram pela Casa. Além de Marlúcio, que cumpre seu terceiro mandato, Santana Gomes (PSL, de 2016 a 2018) e Edmundo Galdino da Silva (PSDB, de 1987 a 1988) foram, até então, os únicos representantes negros a exercerem o cargo de deputado estadual na Alego.

Para Marta Quintiliano, essa baixa representatividade está ligada, muitas vezes, à dificuldade que comunidades negras enfrentam ainda hoje para ter acesso a informações. “A gente acredita que a informação está em todo o lugar e que só não a acessa quem não quer. Isso é uma grande mentira, porque tem uma estatística que fala que 50% da população negra ou mais não tem acesso à internet. Aqui mesmo em Trindade, na minha comunidade, a gente não tem internet. Quando eu fiz vestibular eu também não tinha computador em casa. A informação tem que ser melhor socializada nas comunidades, sobretudo as que estão mais na periferia. Porque senão, acontece isso, de chegar aqui e ver um plenário totalmente branco”, comenta.

Além do problema da dificuldade de acesso às informações ela também cita barreiras econômicas, ligadas à dificuldade de acesso a transporte e vestimenta adequada, como fatores de exclusão dos negros de espaços públicos, como a Alego. “Por isso acredito que eu aqui, ou qualquer outro preto, vai mudar essa estrutura. Ajudar a pensar em coisas que o hegemônico não pensa, porque já está dado. E para a gente é muita luta, não tem nada dado”, defende Marta.

 

Violência

Outro tema que diz muito sobre o racismo institucionalizado no país, refere-se aos altos índices de violência a que a população negra é cotidianamente submetida. As estatísticas recaem majoritariamente sobre a juventude, maiores alvos de ações de homicídio no país, muitas delas perpetradas pelas próprios órgãos de Segurança Pública.

A delegada Adriana Accorsi, que foi chefe da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Goiânia, fala sobre a violência sofrida por crianças e adolescentes negros. “O número de casos é imenso. Eu fiquei pasma com a quantidade de  casos envolvendo vítimas crianças e que eram agredidas física e psicologicamente, sendo xingadas ou tendo os seus cabelos cortados, inclusive por familiares”, revela.

Adriana não titubeia ao considerar que há, sim, diferença no tratamento das autoridades, inclusive policiais, para com as pessoas, em razão da sua cor. "Eu já convivi com muitos casos de adolescentes que foram abordados de forma truculenta, agredidos e acusados falsamente e que ficou muito claro que isso aconteceu em razão da sua cor, aliada a sua aparência humilde. Então esse racismo institucional é algo muito grave que pode estar relacionado também aos casos de extermínio da juventude negra e da periferia no Brasil.”   

A violência, inclusive a policial, praticada contra a juventude, sobretudo a negra, foi tema apurado por Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Congresso Nacional, em Brasília. O relatório final da CPI, apresentado pelo senador Lindbergh Farias (PT/RJ), aponta que das 56 mil pessoas assassinadas anualmente no Brasil, 53% são jovens; 77%, negros e 93% do sexo masculino. Os homicídios dolosos figuram, portanto, entre a primeira causa de morte entre os jovens no país, estando a população mais pobre entre as vítimas principais.

O relatório ainda revela que os índices de violência no Brasil (29 vítimas a cada 100 mil habitantes) mantiveram-se praticamente inalterados durante as últimas três décadas, sendo considerados epideÌ‚mico pela Organização das Nações Unidas (ONU). Uma audiência pública sobre o tema e intitulada “Enfrentamento ao assassinato de jovens” está sendo organizada pela Comissão de Segurança Pública desta Casa de Leis. A previsão é para que ocorra no dia 14 de junho, às 8h30, no Auditório Solon Amaral.

Dentro desta questão, Marlúcio destaca ainda a violência simbólica a que as populações negras estão submetidas, e que as levam a ser constantemente alvo de estereótipos ligados à criminalidade. “Esses dias eu estava fazendo uma visita à CPP (Centro de Prisão Provisória), para resolver questões relacionadas ao número de funcionários e à superlotação do presídio, quando vinham chegando 47 novos presos da triagem. Dos 47, apenas dois eram negros. Mas, na visão das pessoas, 99% dos presos que estão lá são negros, o que não é verdade. Hoje 62% dos que estão lá são brancos. Não que isso seja uma bandeira a se comemorar. O ideal era que não tivesse nenhum preso. Mas é preciso ter esse entendimento, porque ainda há muita discriminação por conta disso.”

 

Conquistas

Dentre as conquistas alcançadas pelos movimentos em prol da igualdade racial no Brasil, destacam-se as chamadas ações afirmativas. Segundo definição apresentada pela Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) do Ministério dos Direitos Humanos, o conceito define “políticas públicas feitas pelo governo ou pela iniciativa privada com o objetivo de corrigir desigualdades raciais presentes na sociedade, acumuladas ao longo de anos”.

Elas atendem a três finalidades específica, que podem ser: 1) com o objetivo de reverter a representação negativa dos negros; 2) para promover igualdade de oportunidades; e 3) para combater o preconceito e o racismo.Dentre as mais representativas delas, podemos citar: a lei nº 7.716/1989, que criminaliza o racismo; a política de cotas, já regulamentada pela lei nº 12.711/12, que reserva percentual de vagas em universidades públicas para pessoas autodeclaradas negras; e a lei 11.645/08, que inclui a temática da história e cultura afro-brasileira como obrigatória no currículo da rede básica de ensino.

Outra conquista neste sentido é o fato de a capoeira, uma das expressões mais representativas da cultura negra no país, ter recebido, em 2014, o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

A promoção da capoeira como prática de ensino nas escolas públicas do Estado é uma das bandeiras levantadas por Marlúcio. Recentemente ele protocolou na Casa, Projeto de Lei que dispõe sobre o reconhecimento da capoeira como expressão cultural e esportiva, de caráter educacional e formativo, e permite o estabelecimento de parcerias para o seu ensino nos estabelecimentos de ensino público da rede estadual de Goiás (PL nº 1893/18).  

Ele finaliza sua fala destacando conquistas alcançadas pelo movimento negro no país. “Temos muitas coisas para comemorar, porque realmente a lei está funcionando. Estamos vendo muita gente que comete crime racial pagando por isso.  Não que a gente queira ver as pessoas sendo penalizadas, mas que elas façam a reflexão quando cometerem qualquer erro. A gente está lutando com projetos em tramitação aqui para trabalhar isso nas escolas, que é a base. Para a criança entender que nós negros viemos para somar”, comenta.

Em Goiás, sobretudo nos municípios do Nordeste do Estado, a assinatura da Lei Áurea é comemorada com festa tradicional chamada “Caçada da Rainha”. A mais conhecida delas ocorre no mês de julho, na cidade de Colinas do Sul, situada nas imediações do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.

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