Andar na "magrela" é saúde!
Saúde para o corpo, para o bolso e para o planeta. Apesar de aliar benefícios para o praticante e para o meio ambiente, a bicicleta ainda é pouco utilizada como meio de transporte. A importância do veículo (sim, o Código de Trânsito Brasileiro considera a bicicleta um veículo de propulsão humana) como solução de mobilidade, capaz de contemplar o crescimento populacional sem interferir no aumento das emissões de gases de efeito estufa, foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2018, 54 países membros das Nações Unidas dedicaram, durante a Assembleia Geral da ONU, uma data para celebrar a bicicleta em todo o mundo.
A proposta, que desembocou na aprovação do dia 3 de junho, como o Dia Mundial da Bicicleta, partiu do professor e pesquisador de ciências da natureza e humanas Leszek Sibilski, que a partir de um projeto acadêmico em que estudava o uso da bicicleta no desenvolvimento humano, liderou uma campanha para promover um dia oficial de conscientização sobre os benefícios sociais de usá-la para o transporte e lazer.
A partir da instituição da data, anualmente, a ONU traz o tema à discussão e conclama os 193 países membros a promoverem ações nesse sentido. O Dia Mundial da Bicicleta chama a atenção para os benefícios do uso da “magrela”, como um meio de transporte simples, acessível, limpo e ambientalmente sustentável. A ONU também destaca que andar de bicicleta contribui para um ar mais limpo e menos congestionamento e torna a educação, a saúde e outros serviços sociais mais acessíveis às populações mais vulneráveis e encoraja os estados-membros a incluir a bicicleta nos programas de desenvolvimento, a melhorar a segurança rodoviária e a promover o seu uso.
Segundo especialistas no assunto, o uso da bicicleta também contempla, em diversos pontos, as metas estabelecidas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da Agenda 2030, da ONU.
Do ponto de vista da saúde individual, a adoção do uso regular da bicicleta contribui para a prevenção de um sem número de doenças e para a promoção da saúde, de forma geral, inclusive na parte mental. De quebra, ainda pode atuar na questão estética e no aumento da autoestima, já que ajuda a emagrecer e a tornear e fortalecer as pernas.
Profissionais da saúde ensinam que, por ser uma atividade aeróbica, pedalar é uma das melhores atividades para evitar problemas cardiovasculares, além de ser eficaz na prevenção e controle da diabetes, já que a atividade ajuda a manter estáveis os níveis de açúcar no sangue, gerando benefícios tanto para quem já tem a doença, como para quem quer evitá-la.
Ajuda, ainda, a baixar a pressão arterial, porque o exercício também trabalha as veias e artérias. Andar de bicicleta, também, contribui para a saúde das articulações, prevenindo quedas e fraturas, sendo um exercício físico ideal para prevenir osteoartrite e osteoporose.
Por acelerar o metabolismo, a atividade faz com que as substâncias que geram o colesterol ruim sejam rapidamente queimadas pelo organismo. Além de contribuir para melhorar a coordenação motora, já que andar de bicicleta envolve os braços, pernas e mãos, tornando os reflexos mais rápidos.
Subutilizada
Mesmo com os diversos benefícios comprovados, tanto individuais, quanto coletivos, a bicicleta ainda é pouco utilizada no Brasil, como meio de transporte. O levantamento “Perfil do Ciclista Brasileiro”, realizado em 2018, revela parte dos motivos que impedem mais brasileiros a aderirem à bicicleta. Os dois principais problemas apontados são relacionados à segurança viária: a falta de segurança no trânsito (40,8%) e falta de infraestrutura adequada (37,9%).
Doutor em Geografia, professor e pesquisador da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e cicloativista, Vinícius Druciaki concorda. Para ele, a convergência de fatores como o incremento exponencial de veículos, sobretudo de automóveis e motocicletas, o aumento constante da velocidade nas vias, mesmo com leis e dispositivos que visem controle, a sinalização e a cultura predominante em geral de que a bicicleta é menos importante no contexto da mobilidade, leva o ciclista à condição de mais vulnerabilidade, ficando apenas atrás apenas do pedestre, nessa relação.
“O primeiro e maior desafio se refere à segurança, na certeza de poder ir e vir em uma cidade que seja convidativa, sem ser considerado um ‘estorvo’ nas vias. Os desafios impostos àqueles que usam a bicicleta na mobilidade urbana estão presentes em todos os tipos de cidade. Da pequena aglomeração urbana à metrópole. E nas pequenas cidades, devemos lembrar que muitas delas têm suas áreas urbanas mais densas atravessadas por rodovias de grande fluidez, aumentando ainda mais a condição de vulnerabilidade do ciclista, para citarmos apenas um exemplo”, analisa Druciaki.
O professor, que é coordenador do Grupo de Estudos em Geografia, Transportes e Mobilidade-GEOMOBILIDADE, segue afirmando que, ao menos em sua maioria, as cidades brasileiras não estão preparadas para os ciclistas. Segundo ele, o despreparo não se restringe ao aspecto de infraestrutura. Ele acredita que há toda uma conjuntura desfavorável, como a necessidade de um contínuo processo de adesão à bicicleta, o respeito ao ciclista em movimento na via, bem como os locais de atividade ter preparo para receber o ciclista. E cita como exemplo, a ausência de paraciclos ou bicicletários para a bicicleta em todo tipo de equipamento público ou privado.
Mas essa situação não é exclusividade brasileira. Druciaki explica que são poucos os exemplos de cidade convidativa ao ciclista, mas, segundo ele, as que têm experimentado um modelo de mobilidade incluindo a bicicleta, colhe bons resultados. “Para não nos restringirmos a exemplos muito conhecidos como Amsterdã (Holanda) ou Copenhague (Dinamarca), temos ótimos exemplos aqui na América do Sul. Buenos Aires (Argentina) e Bogotá (Colômbia) têm vivenciado uma ampliação gradativa de sua rede ciclável. Na pandemia foi ampliada de forma provisória a extensão dessa rede, o que depois tornou-se permanente. Porém, tudo isso vem acompanhado de ampla conscientização para a adesão ao modelo”, analisa o professor.
Brasil também evolui
Apesar de muito timidamente, as condições para os ciclistas estão avançando no Brasil. De acordo com informações divulgadas pelas prefeituras das capitais brasileiras, a malha de ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas, em 2021, cresceu 40,8% em relação a agosto de 2018. Hoje, são 4.279,7 quilômetros.
Mas para se ter cidades mais seguras e atrativas para os ciclistas, ainda há muitas pedaladas pela frente. O pesquisador Vinícius Druciaki pontua que uma das medidas para se melhorar a trafegabilidade para ciclistas já está pronta e acabada: o cumprimento da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei Federal 12.587/2012). A legislação determina que os modos ativos (a pé e por bicicleta) sejam prioridade no planejamento de circulação e no uso do solo harmônico a isso. Mas a lei ainda é pouco praticada: “Poucas prefeituras determinam em seus planos diretores municipais essa premissa. Quando há esse instrumento no papel, muito pouco se implementa.”
Ele enumera alguns elementos que poderiam impactar positivamente, no deslocamento dos ciclistas e, em consequência, atrair mais pessoas para o uso da bicicleta:
• Toda via de circulação de veículos motorizados precisa imediatamente de uma profunda redução nos limites de velocidade, e de uma contínua conscientização de respeito a todo tipo de ciclista. Lembremos que há diversos perfis de ciclistas, e a via é espaço do mesmo segundo o Código Brasileiro de Transito;
• Implementar ao longo de todas as vias arteriais, avenidas de grande fluidez, em rodovias que cortam os perímetros urbanos, uma rede de ciclovias. A ciclovia é o tipo de via segregada, exclusiva para a bicicleta, logo sendo a mais segura. Obviamente que a mesma precisa vir acompanhada de toda sinalização, iluminação, e prioridade nas interseções que cruzam com as vias;
• Implementação de ciclofaixas nas vias de grande fluidez, porém com um papel menor na hierarquia viária;
• Ciclorrotas nas vias mais locais em que o ciclista esteja menos exposto aos riscos.
Mas não só o poder público tem responsabilidade nessa mudança de cultura. Vinícius Druciaki entende que as empresas também têm um papel a cumprir nesse sentido, até porque, ele acredita, que especialmente alguns ramos, podem ser extremamente beneficiados, com o crescimento do número de ciclistas. “Além de cobrar do poder público, é necessário entender que, ao reduzir um pouco do recuo que utilizam como estacionamento (que atendem poucos carros), criar um espaço para a bicicleta, para o pedestre, será um fator de atração de pessoas.
As empresas, também, podem e devem ajudar no que se refere aos seus trabalhadores. Elas deveriam ofertar suporte como banheiros, vestiários, locais seguros para as bicicletas, para aqueles que quiserem, possam ter condições de irem trabalhar tranquilamente de bicicleta. Em Goiânia, beira o absurdo de nem as próprias lojas e oficinas de bicicletas disporem de equipamentos para estacionar esses veículos com segurança.
Mesmo com todos os obstáculos enfrentados na prática diária, como ciclista e com todas as perspectivas pouco animadoras verificadas nos estudos, Vinícius Druciaki não se intimida. E aconselha os que estão começando a se “aventurar” com a bicicleta. Ele profere um verdadeiro discurso de estímular ao uso das "magrelas": “Não tenha medo! Ande de bicicleta! Ande à sua maneira, no seu ritmo, na sua frequência. Mas use a bicicleta! Nem que seja em trajetos curtos. Ao passo que for se sentindo mais confiante, vá ampliando seus percursos. Quanto mais ciclistas formos, mais a sociedade entenderá que somos tão, ou mais importantes, que o carro. Se o trabalho é longe, cobre do poder público que seja possível, quem sabe, você pedalar até um terminal de ônibus e, por que não ali deixar sua bike segura, como ocorre em outros lugares. Leve seu filho para andar de bicicleta. Leve sua filha em uma cadeirinha de bicicleta, que eu lhe garanto que ele ou ela conhecerá a cidade como ninguém. Quem se cria andando de automóvel não desenvolve as capacidades da inteligência espacial e não conhece a cidade onde vive. Não percebe as nuances, as belezas e os reais problemas”.
Druciaki encerra suas reflexões com um pedido, um desejo, ainda longe de ser alcançado, mas que por ser sonhado por pessoas como ele, um dia pode ser tornar realidade: “Que esse dia mundial de conscientização ao uso da bicicleta não seja mais um dia clichê, onde fazem pedaladas bonitas, patrocinadas por grandes empresas e veículos de comunicação, mas que não questionam o modelo de cidade tal como temos. Que seja um dia (e que todos os dias sejam iguais a esse), em que a vida humana, que uma cidade de fato para pessoas seja priorizada e assegurada para todos”.