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Autonomia legislativa

20 de Maio de 2024 às 18:00
Crédito: Divulgação
Autonomia legislativa
Constituição Federal
Assembleias articulam aprovação de PEC que amplia suas competências. A proposta, já endossada pelo Parlamento goiano e por Rondônia, é semelhante a texto que tramitou alterando os artigos 22 e 24 da Carta Magna.

Diferentes condições para o exercício de profissões, diferentes normas gerais de organização das polícias e corpos de bombeiros militares, diferentes normas de trânsito e transporte: se aprovada uma proposta das Assembleias Legislativas de emenda à Constituição Federal de 1988, os estados e o Distrito Federal terão legislações mais variadas entre si.

Na prática, significaria, por exemplo, que normas sobre radares e idade mínima para dirigir ou os requisitos para se atuar em uma profissão poderiam variar entre Goiás e o restante do País. Trata-se de uma aproximação, em alguns tópicos, do modelo federalista norte-americano.

A proposta de emenda constitucional (PEC) ainda não tramita no Congresso Nacional. É preciso que ao menos 14 Assembleias Legislativas aprovem sua apresentação, como previsto no art. 60 da Constituição de 1988. Essa aprovação demanda maioria simples – ou seja, a maioria dos deputados presentes no momento da votação – e se dá por decreto, como ocorreu no último 8 de maio na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás (Alego), com o processo no 9223/24.

O decreto de apresentação da PEC foi pensado no âmbito da União Nacional dos Legisladores e Legislativos Estaduais (Unale). Mais especificamente, a proposta se materializou no primeiro encontro do colegiado das Comissões de Constituição, Justiça e Redação da Unale, no ano passado, em Rondônia, outra Unidade da Federação que já aprovou o decreto. Há uma aspiração de se obter as 14 aprovações até encontro em Aracaju (SE), de 5 a 7 de junho, no qual é esperado o comparecimento do presidente da CCJ do Senado, Davi Alcolumbre (AP).

Apresentada a PEC, Câmara e Senado federais a analisariam e votariam separadamente, precisando aprová-la em dois turnos com ao menos 3/5 dos votos de deputados e senadores. Como consta na ementa do decreto, o objetivo é descentralizar competências legislativas da União em favor dos estados e do Distrito Federal.

O decreto aprovado na Alego, semelhante aos apresentados nos outros parlamentos estaduais, propõe, especificamente, revogar cinco incisos do art. 22 da Constituição Federal (que elenca competências privativas da União), migrando seus temas para o art. 24 (que lista competências concorrentes entre União, estados e o Distrito Federal).

As matérias que podem se tornar de competência concorrente são trânsito e transporte; organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões; normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação, mobilização, inatividades e pensões das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares; normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, estados, Distrito Federal e municípios, e proteção e tratamento de dados pessoais.  

Os assuntos de competência privativa da União são regulamentados em lei federal. Os estados podem ser autorizados, por lei complementar federal, a legislarem sobre questões específicas dessas matérias, mas isso motivou poucos projetos de lei complementar desde 1989. Um deles, autorizando os estados a legislarem sobre questões específicas relativas a armas de fogo, foi bastante divulgado pela imprensa e aprovado na CCJ da Câmara Federal em abril.

Quando as matérias são de competência concorrente, a União estabelece normas gerais, e os estados fazem leis que suplementam essas normas – como ocorre com a proteção à infância e à juventude, por exemplo. Inexistindo norma federal sobre um tópico, os estados podem exercer competência legislativa plena para atender a suas peculiaridades, mas, caso surja a norma federal em questão, ela suspende os dispositivos das leis estaduais que a contrariarem. 

Na justificativa do decreto aprovado no Parlamento goiano, argumenta-se que “é consabida a pequena parcela de competências legislativas que a Constituição de 1988 deixou a cargo dos estados”. Atualmente, são 30 incisos de competências legislativas privativos da União e 16 de competências concorrentes entre União, estados e Distrito Federal. Com a alteração proposta, as competências privativas cairiam para 25, e as concorrentes subiriam para 22.

Para o deputado Ismael Crispin (MDB), da Assembleia de Rondônia, principal mobilizador do avanço da proposta junto às Assembleias, “a maioria das competências [elencadas na CF/1988] é privativa do Congresso Nacional, o [assunto de interesse] local foi atribuído às Câmaras de Vereadores, e as Assembleias ficaram no vácuo com a competência residual”.

"Realidades completamente distintas"

“A melhor forma de a gente saber se uma legislação é eficiente ou não é colocando-a em prática”, sustenta Wagner Camargo Neto (Solidariedade), presidente da CCJ da Alego e autor do Decreto no 9223/24. “A realidade de Goiás pode não ser a mesma de Pernambuco e aí vamos ter resultados diferentes na sociedade. Saímos do âmbito do debate do que pode ou não acontecer para o âmbito de dados e resultados”, complementa.

Ao defender a necessidade de maior autonomia dos estados, o parlamentar sublinha o caráter continental do Brasil, as “realidades completamente distintas” e as “desigualdades regionais muito grandes” do País. Além disso, argumenta, é uma forma “de a gente estar mais próximo da sociedade, o deputado estadual está muito mais próximo do cidadão que o federal”.

Crispin dá um exemplo dessas particularidades: “Rondônia é produtor de café, Minas Gerais e Espírito Santo também. Só que são dimensões diferentes. Rondônia é um estado de pequenos agricultores, o foco é a agricultura familiar. Em Minas e no Espírito Santo, são fazendas. Não dá para fazer a mesma cobrança para o fazendeiro e para a família produtora”.

Neto pontua que outro problema é o fato de o Congresso Nacional ter uma tramitação processual “muito mais burocrática, mais morosa” que a das Assembleias Legislativas. “Tem leis que tramitam há décadas e não chegam a uma votação final, não chegam a ser pautadas em Plenário, travam nas Comissões”, afirma. “Tornar uma competência concorrente desburocratiza, a gente passa a ter um resultado mais rápido”, assegura.

Para Ismael Crispin, as enchentes no Sul do País exemplificaram isso: “O Rio Grande do Sul, passando pelo que está passando, vai esbarrar, na reconstrução, em muita coisa da legislação que depende exclusivamente do Congresso Nacional”, diz. “Com todo respeito ao Congresso, ele age conforme o ânimo do dia. Pode se debruçar sobre o tema ou deixar para depois”.

Mestre pela Universidade Federal de Goiás e doutorando em Direito Constitucional pelo IDP em Brasília, Augusto Corrêa também enfatiza o quanto é difícil conseguir uma aprovação rápida junto ao Congresso. “A não ser quando há um clamor social muito grande, como no caso da lei que derrubou o rol taxativo para cobertura de planos de saúde”, pondera.

Ressalvando que “os estados têm uma competência grande, especialmente em matéria tributária e administrativa”, Corrêa avalia que o Brasil “tem um desequilíbrio federativo não só em relação aos estados, mas também em relação aos municípios. Às vezes, a competência é grande na hora da execução, mas a legislação não acompanha, como no caso da segurança pública”.

Questionado se com mais competências concorrentes os estados não podem incorrer em um voluntarismo legislativo, Côrrea afirma: “É muito provável. Os governadores costumam ter uma proeminência sobre o Legislativo estadual muito maior que o Presidente da República tem sobre o Congresso Nacional. Então, é um risco presente”.

Ismael Crispin concorda que esse voluntarismo “tem que ser uma grande preocupação”, mas diz confiar no corpo técnico jurídico permanente das Assembleias e ressalta que a aprovação da PEC não retiraria do Congresso Nacional “o poder de discutir” os temas das competências concorrentes, uma vez que seguiria editando as normas gerais. “O Congresso pode chegar a uma norma mais apurada que as Casas, mas a tramitação é mais célere nas Casas”, sintetiza.

Perdas, ganhos e compatibilizações

Wagner Camargo Neto se diz satisfeito com as matérias elencadas no decreto que aprova a apresentação da PEC. “Não adianta nos atentarmos a uma PEC mais ampla se ela não tiver quórum o suficiente para passar no Congresso Nacional”.

Augusto Corrêa afirma que nada na PEC viola qualquer cláusula pétrea da Constituição Federal, mas observa que alguns dispositivos, se transferidos do art. 22 para o art. 24, precisam ser compatibilizados com outros dispositivos constitucionais.

Um caso seria o das normas gerais relativas às polícias militares e aos corpos de bombeiros militares, dado que “a PM é uma reserva do Exército, como previsto no art. 144. Ou seja, se o comandante do Exército convoca a PM, ela tem que atender. Como compatibilizar isso com a transferência dessas normais gerais para o artigo 24?”, questiona.

Pelo lado positivo, ele nota que a União regulamentou a inatividade dos policiais, tratando de um tema que envolve custos a serem arcados pelos estados, caracterizando, assim, “uma ingerência da União que pode ser corrigida com a PEC”.

A política agrícola é outro ponto potencialmente conflitivo. “A gente teria uma dificuldade, com 27 Unidades Federativas tratando de política agrícola, de compatibilizar as legislações estaduais com a reforma agrária, [competência] privativa da União”, exemplifica.

Quanto a licitações, Côrrea não vê um grande ganho em torná-las competências concorrentes, uma vez que o STF já decidiu que, em normas específicas, os estados podem legislar de forma diferente da União.

Quanto a trânsito, transporte e dados pessoais, por sua vez, ele acredita que haveria benefícios claros no deslocamento desses tópicos para o art. 24. Lembrando que aos estados é proibido proteger menos um direito regulado por norma geral da União, como ocorre no caso das competências concorrentes. Côrrea afirma que, nesses tópicos, as iniciativas legislativas estaduais trariam “ainda mais segurança normativa à população”.

Dados pessoais se tornaram uma competência privativa da União (além de um direito fundamental) com emenda constitucional de 2022. Sendo uma mudança recente, analisa Augusto Corrêa, o Congresso pode recusar a migração dessa competência para o art. 24.  

Ineditismo

Articular a tramitação da futura PEC no Congresso Nacional, claro, é algo crucial. Nunca houve uma proposta conjunta de Assembleias Legislativas que alterou a Constituição Federal. Tramitou a partir de 2012 e foi arquivada em 2022 uma proposta de teor em parte semelhante ao da atual, apresentada por 14 Assembleias, inclusive a de Goiás. A PEC chegou a ser aprovada no âmbito das Comissões, mas não foi votada em Plenário.

Para Wagner Camargo Neto, o fato de a proposta atual ser uma iniciativa da Unale aumenta muito a possibilidade de aprovação da PEC. “Claro que é preciso que se faça todo um trabalho, mas todos nós, deputados estaduais, temos relações com dois ou três deputados federais dos seus estados”, explica. “Acho que deputados federais e senadores serão sensíveis ao tema”.

A presença do senador por Amapá, Davi Alcolumbre, no encontro em Aracaju, no início de junho, é justamente parte desse processo de articulação junto ao Congresso Nacional.

Agência Assembleia de Notícias
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