Cinco anos de covid-19

Os reflexos da pandemia de covid-19 no Estado, em famílias, as ações do Governo para lidar com algo desconhecido são relatados nessa reportagem. Em Goiás, conforme dados do Ministério da Saúde, faleceram mais de 12 mil pessoas.
O mês de março de 2020 ficou marcado como o início da pandemia de covid-19 em Goiás. Há exatos cinco anos o Estado registrava os primeiros casos da doença e os governos tomavam as primeiras providências para enfrentar o vírus, ainda desconhecido.
Entre os dias 13 e 17 de março, decretos governamentais declararam a situação de emergência na saúde pública no Estado de Goiás decorrente da infecção humana pelo coronavírus e determinaram paralisação de praticamente todas as atividades presenciais no Estado, inicialmente, por 15 dias. As aulas em escolas públicas e privadas foram suspensas, assim como eventos de qualquer natureza, as repartições públicas instituíram o teletrabalho e todas as atividades econômicas. À exceção das classificadas como essenciais, foram obrigadas a fechar as portas. Visitações em presídios e em hospitais também foram suspensas, assim como o uso de espaços comuns de condomínios verticais e horizontais usados para o lazer, como churrasqueiras, piscinas, salões de jogos e festas e espaços de uso infantil.
Isso tudo era consequência da disseminação do coronavírus pelo planeta afora. No dia 11 de março, o mundo ouviu estarrecido o anúncio que mais parecia saído de um desses filmes que retratam o fim do mundo: em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarava que a doença causada por um vírus que vinha causando a morte de milhares de pessoas alcançava o status de pandemia. Trocando em miúdos, a covid-19, causada pelo Sars-Cov-2, um novo tipo de coronavírus, descoberto no ano anterior, havia se difundido por diversos países e continentes, afetando milhares de pessoas. Até então a doença havia chegado a 114 países, com 118 mil casos registrados. 4,2 mil pessoas haviam perdido a vida para a covid-19. Em Goiás, apenas três casos estavam confirmados. Mesmo assim, o que vinha acontecendo na China e em países europeus já demonstrava que o vírus poderia causar uma tragédia mundial, o que, de fato, aconteceu.
Se naquele momento os números da pandemia já assombravam as autoridades sanitárias, chefes de nações, profissionais de saúde e grande parte da população em geral, o que viria nos meses seguintes seria de desafiar a imaginação dos roteiristas do apocalipse. E ainda com direito a cenas, particularmente, marcantes, como a fila de caminhões militares carregando caixões de Bergamo, na Itália, para outras províncias, porque o necrotério local não conseguia mais acomodar o volume de corpos. Ou ainda a abertura de valas comuns para enterros coletivos, no cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, capital do Amazonas, por causa do crescente número de sepultamentos. Outra imagem que simbolizou a pandemia e se repetiu em todo o planeta, foi de corpos de vítimas da covid retirados de hospitais enrolados em sacos pretos, em função do risco de contaminação. Depois disso, eram colocados em caixões lacrados e levados diretamente para serem enterrados, sem direito a velório.
Histórico da pandemia
Antes da declaração da pandemia de covid-19, o então novo coronavírus já vinha ocupando as manchetes mundo afora, desde o mês de janeiro, quando um aumento de mortes por pneumonia, no final do mês de dezembro, começou a ser registrado na cidade de Wuhan, na China.
Por causa desses registros, a OMS já estava em alerta desde 31 de dezembro e uma semana depois, em 7 de janeiro de 2020, as autoridades chinesas confirmaram que haviam identificado um novo tipo de coronavírus. Tratava-se de uma nova cepa do vírus que não havia sido identificada antes em seres humanos.
Em 30 de janeiro, a OMS declarou que o surto do novo coronavírus constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) – o mais alto nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional.
No Brasil, o primeiro caso de covid-19 foi confirmado no dia 26 de fevereiro de 2020, na cidade de São Paulo. Era um homem, de 61 anos, recém-chegado da Itália, país já assolado pelo coronavírus.
Segundo relembra a subsecretária de Vigilância em Saúde da Secretaria de Estado da Saúde, Flúvia Amorim, em Goiás, os primeiros casos tiveram confirmação no dia 12 de março. Três mulheres que também tinham feito viagens internacionais tiveram diagnóstico confirmado de covid-19.
Mas antes mesmo da chegada de pacientes suspeitos, as autoridades de saúde no Estado, avaliando a situação mundial, decidiram por criar o Centro de Operações de Emergência para o Enfrentamento da Pandemia em Goiás. A primeira reunião foi realizada no dia 29 de janeiro, antes mesmo da OMS decretar a emergência internacional. Goiás foi o primeiro estado a montar uma estrutura desse porte para o enfrentamento à doença. “A gente começou a discutir como nos prepararmos para o enfrentamento de algo que a gente não sabia ainda como seria. A gente usou como base o que tínhamos vivido com a gripe suína, em 2009, que era a H1N1. A gente já tinha um plano de contingência, na época. Pegamos aquele plano de contingência e começamos a utilizá-lo como o início mesmo das ações para o contingenciamento dessa pandemia. Ele sofreu várias modificações porque foi muito diferente do que foi a H1N1, mas naquele momento não sabíamoscomo seria. A gente precisava começar a partir de alguma coisa”.
Também antes da doença ser registrada no Brasil, ainda em fevereiro, as equipes de saúde, especialmente do Laboratório de Saúde Pública de Goiás (Lacen), tiveram que enfrentar o primeiro desafio relativo à covid-19.
Com a decisão do Governo Federal de trazer os brasileiros repatriados de Wuhan para a Base Aérea de Anápolis e mantê-los lá em quarentena, ficou a cargo do Lacen a responsabilidade pela coleta e processamento das amostras para o exame de PCR para SARSCoV-2 dos repatriados e da tripulação.
Segundo Flúvia Amorim, equipes da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) vieram para Goiás para treinar os profissionais do laboratório estadual. Naquele momento, em que havia muito mais dúvidas do que certezas com relação à contaminação com o novo vírus, era mais que normal que houvesse muito temor entre os servidores. Para encorajá-los a assumirem a missão, a própria Flúvia, que já trabalhava na Secretaria de Saúde da Capital no serviço de investigação de doenças inusitadas, e o diretor do Lacen, se prontificaram a integrar e coordenar a equipe, formada por oito pessoas.
No dia previsto, a equipe seguiu para a Base Aérea de Anápolis para aguardar a chegada do voo. “Foi muito desgastante porque estava previsto para chegar às dez da noite, depois mudou para meia-noite, depois mudou para duas horas da manhã. Sei que nós conseguimos fazer a coleta era 7h30 da manhã. Nós passamos a noite inteira esperando eles chegarem. E não foi só um dia, durante todo o processo de quarentena deles, fomos nós que coletamos as amostras e processamos aqui no Lacen. Nenhum foi positivo, felizmente, todos deram negativo, mas houve um temor muito grande”.
Essa experiência acabou dando ao Lacen de Goiás o pioneirismo na coleta e no processamento dos exames, no Brasil. “Tivemos a oportunidade, antes de chegar casos no Brasil, de entender como seria, por exemplo, a paramentação para lidar com a situação. Porque lá ativemos que aprender a vestir toda aquela paramentação, aprender técnicas de desparamentação, de higienização, para evitar a contaminação ao coletar amostras de pacientes possivelmente contaminados. Foi uma grande experiência”.
Após a chegada das primeiras pessoas contaminadas ao Estado, já se esperava o crescimento de casos, mas a maior ameaça era se ter um número muito grande de pessoas contaminadas ao mesmo tempo, a ponto de não se ter estrutura de atendimento a todos.
Como se tratava de uma doença altamente contagiosa e com transmissão predominantemente pelo contato entre as pessoas, o Centro de Operações de Emergência começou a traçar uma estratégia capaz de desacelerar o contágio. Com base na experiência italiana, que passou por uma fase crítica da pandemia e adotou medidas que produziram um retardo nesse processo, o Estado decidiu pela adoção de uma quarentena, com a suspensão de todos os serviços não essenciais.
Flúvia conta que essa decisão foi fundamental para que o Estado preparasse uma estrutura de assistência, especialmente, hospitalar, para atendimento dos infectados que evoluíssem para quadros mais graves. Entre as medidas tomadas estavam a ampliação de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) no interior e a implantação de um hospital de campanha em uma estrutura já existente. A opção foi pelo antigo Hospital do Servidor Público, que na época, pertencia ao Ipasgo. A unidade foi emprestada ao Estado e se tornou o HCamp, o maior hospital de campanha do Estado.
A partir daí as reuniões do Centro de Operações passaram a ser semanais. Todas as questões referentes à pandemia eram discutidas pelo colegiado, integrado pelas autoridades de saúde, Tribunal de Justiça, Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal, Universidade Federal de Goiás, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Secretaria de Estado da Educação, além de vários sindicatos. As sugestões de medidas definidas pelo grupo eram levadas ao governador Ronaldo Caiado, que tomava as decisões.
Depois do primeiro decreto, as medidas de isolamento social eram avaliadas constantemente e, de acordo com o cenário, algumas atividades foram sendo liberadas para voltarem a funcionar. Quando o número de casos voltava a subir com mais velocidade, vinham novas determinações sobre restrições de funcionamento.
Período mais crítico
Mas mesmo com todas os esforços para a contenção da doença, houve momentos em que a estrutura de atendimento não foi capaz de absorver a alta dos casos. Segundo a subsecretária, o período entre o final de 2020 e início de 2021 foi o pior momento da pandemia de covid-19.
Não só em Goiás, mas em todo o Brasil, o primeiro trimestre do segundo ano da crise pandêmica, foi marcado por um crescimento de infectados pelo coronavírus, que levou aos números mais trágicos da doença no País. Segundo o Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), no dia 7 de janeiro o Brasil alcançou a marca de 200 mil mortes pela doença e se tornou o segundo país do mundo com maior número de óbitos, atrás somente dos Estados Unidos.
Em pouco mais de dois meses depois, o País teve mais 100 mil mortes por covid e, em 24 de março o Brasil atingiu a marca de mais de 300 mil mortos pela doença. Nos tornamos também o País com o maior número diário de mortes por covid-19. De acordo com os dados da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos, naquele momento, o Brasil respondia por 11% de todas as mortes por covid-19 no mundo.
Em Goiás, o período também foi o mais sinistro de toda a pandemia. Flúvia Amorim relembra que a explosão dos casos levou ao que mais se temia, que era o colapso da rede hospitalar.
Segundo ela, houve um momento em que mais de 900 pessoas aguardavam na fila por uma UTI e não havia vagas disponíveis. Flúvia recorda ainda de outras cenas que mostram a extensão da tragédia vivida naquele período. “A UTI chegou a ter 100 pacientes entubados em respirador. Eu nunca tinha visto isso na minha vida, em nenhum momento: a gente ter tanto paciente grave, ao mesmo tempo, com a mesma doença dentro de uma UTI. Essa foi uma cena que chocou bastante. Outra foi o dia em que eu cheguei ao HCamp e eu contei dez carros de funerária na porta para pegar corpos. Dez carros”.
A situação ficou tão crítica que as funerárias também saturaram a capacidade de sepultamentos dos corpos. “Foi quando optamos por alugar câmaras frigoríficas e colocar dentro do HCamp para colocar os corpos, porque as funerárias não estavam dando conta de tirar em tempo hábil e nem de sepultar, porque era muitos corpos para sepultar”.
Para a subsecretária, o sentimento, naqueles meses, foi de total impotência, diante da situação, já que não havia como se abrir mais leitos de UTI. “Não tinha profissional disponível. Chegou um ponto que chegamos no limite. Espaço físico poderiamos até conseguir, mas teve uma época que faltou respirador, não tinha onde comprar. Faltou medicamento anestésico para entubar paciente. Chegou a ponto de entubar paciente consciente, porque ou entubava ou ele morria. Era uma situação de guerra”.
Além de todas essas questões estruturais, os profissionais que trabalhavam no combate à covid tinham que lidar ainda com o equilíbrio mental, já abalado por tudo que vinha ocorrendo desde o início da pandemia e, agravado pela perda de colegas. Nesse momento da entrevista, Flúvia Amorim, se emociona. “Vários colegas morreram. Tivemos uma situação, que foi a mãe e a filha. A mãe trabalhou aqui. A filha morreu às 20 horas, a mãe, morreu às 10 horas. E toda hora recebiamos as notícias... morreu, morreu... um biomédico que trabalhava aqui nesse prédio e o irmão que trabalhava no Lacen, os dois morreram, também em um curto espaço de tempo. Nesse momento, eu dei uma baqueada. Foi muito difícil, muito difícil”.
Vítimas
Se para quem lidou, profissionalmente, com a pandemia de covid-19 foi um período doloroso, de dúvidas, de exaustão, ansiedade pelo medo de se contaminar, e, pior, levar a doença para casa, para as vítimas e, principalmente, para famílias de mortos pela covid, a pandemia foi de um sofrimento ainda maior.
Segundo dados do Ministério da Saúde, até hoje, 715.488 pessoas em todo o Brasil morreram de covid-19. Em Goiás, foram 12.946 óbitos. Várias foram as famílias que viram mais de um membro perder a luta para a doença.
A família da comerciante Rhea Sílvia Alvares foi uma delas. Entre os dias 8 e 29 de março de 2021, ela e outros sete parentes foram diagnosticados com covid-19, entre eles, o pai e a mãe, de 75 e 83 anos. Das oito pessoas infectadas pelo coronavírus, uma irmã e duas sobrinhas não tiveram complicações, as outras cinco, tiveram o quadro agravado e foram internadas, três foram parar na UTI. A mãe e uma irmã de Rhea tiveram que ser entubadas e nunca mais voltaram para casa.
A comerciante conta que ela e as irmãs cuidavam dos pais idosos e, com a chegada da pandemia, tomavam todos os cuidados para ninguém se contaminar. A cautela era porque, além da idade, os pais tinham outros fatores de risco: a mãe tinha comorbidades e o pai, era fumante.
Infelizmente, mesmo com todas as precauções, a covid-19 bateu à porta da família. A primeira a ter os sintomas foi a irmã mais velha, Rosângela. No dia 8 de março, já com a doença agravada, ela teve que ser internada em uma UTI. “Nós ainda não sabíamos, mas meu pai e minha mãe também já estavam contaminados e mesmo com todo esforço que fizemos, separando tudo e indo cuidar deles, eu e minha irmã também nos infectamos”.
Mesmo depois de cinco anos, Rhea não esquece detalhes desse dia. “Depois de todos os trâmites que são feitos ao deixar um parente na UTI, eu olhei nos olhos assustados dela e disse: - Irmã, se esforça para ficar boa logo. E, ela como uma mãe tão amorosa, falou: cuida da minha filha até eu receber alta”.
Naquele momento, a comerciante, que já tinha perdido um tio, no mês anterior, para a doença, acreditava que Rosângela ficaria bem e que a covid não faria mais estragos na família. Mas, dias depois, ela e os outros parentes descobriram que também estavam infectados com o vírus.
Rhea também foi internada e, além dos sintomas da doença, ela sofria com a preocupação com os pais. “Não queríamos que eles fossem internados. Achávamos que eles não aguentariam uma intubação”, relembra.
Mas o que a comerciante mais temia aconteceu. Os pais também tiveram que ir para o hospital. Depois de dois dias internadas, a mãe foi entubada e, em 23 de março de 2021, ela morreu. A morte da mãe foi um baque, mas a família nem cogitava que o mesmo fosse acontecer com Rosângela. “Mesmo sofrendo muito eu pensei: Deus levou minha mãe para poupar minha irmã. Ela já estava entubada, mas era mais nova, não tinha comorbidade e precisava cuidar da filha de 16 anos. Mesmo no hospital eu e minhas outras irmãs fazíamos planos para quando ela recebesse alta. Nós só iríamos falar da mamãe quando ela estivesse mais forte”.
Mas, seis dias depois, Rosângela, também não suportou o agravamento da doença e faleceu. Rhea Sílvia, o pai e a outra irmã ainda estavam internados, respirando com a ajuda de respiradores e, nesse momento, ela relata ter perdido as esperanças. “Só o que eu pensei foi: vamos todos morrer, ninguém vai sobreviver”. Felizmente eles sobreviveram, mas as cicatrizes da covid na família são incuráveis. “Não pude velar minha mãe, não pude velar minha irmã. A dor da perda pela covid é imensurável. É muito solitária. Talvez por isso eu não consiga passar as fases do luto: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação... como alguém consegue chegar à fase cinco? Aceitar tudo que aconteceu”?
Cinco anos se passaram e a família ainda tem dificuldades para falar sobre a tragédia daquele início de 2021. “Esse é um mês muito difícil para a gente e eu ainda não consigo falar sem chorar”.
Perfeitamente compreensível
O início de 2021 só não foi pior, porque ao mesmo tempo, em que havia um agravamento da pandemia, chegava ao país, a única esperança de se combater, de forma eficaz, a covid-19: a vacina. E é isso que você vai conferir na próxima reportagem, além de relatos de profissionais que estiveram na linha de frente no atendimento aos pacientes de covid e como a Assembleia Legislativa ajudou no enfrentamento à pandemia.