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Em defesa da vida

30 de Maio de 2025 às 14:00
Em defesa da vida

Brasil perde 35 mil vidas no trânsito por ano. Por trás dos números, famílias destruídas e sobreviventes com sequelas permanentes. As campanhas realizadas em maio alertam que mudar essa realidade depende de todos.

O mês está chegando ao fim, mas a preocupação com a conscientização proposta pela Campanha Maio Amarelo deve perdurar por todos os meses do ano. O Maio Amarelo é uma iniciativa internacional, que reúne 27 países, entre eles o Brasil. Atualmente, estão envolvidas 1.425 empresas e 423 cidades nesse projeto, que chama a atenção da sociedade para o alto índice de mortos e feridos no trânsito em todo o mundo.

A campanha foi motivada pelo número alarmante de vidas perdidas e de outras tantas vítimas que ficam com sequelas graves para o resto da vida por causa dos acidentes de trânsito. De acordo com relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), 1,35 milhão de pessoas morrem em acidentes de trânsito no mundo, todos os anos. São cerca de 3.700 mortes por dia, de acordo com a estatística. Esse número representa a oitava maior causa de mortes no mundo. O mesmo estudo revela que esse tipo de sinistro é o principal responsável por mortes de crianças entre 5 e 14 anos e de jovens adultos de 15 a 29 anos, no mundo.

Trânsito brasileiro

No Brasil, de 2015 a 2023, o número de óbitos no trânsito caiu 9,11%, passando de 39.543 vítimas fatais para 35.938. Apesar da redução, quase 100 pessoas morrem todos os dias no trânsito do país. Os dados são do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), disponibilizados pelo Ministério da Saúde.

A Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) também reuniu dados de atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS) para demonstrar as "causas de internações por sinistros de transporte". Em 2024, foram registradas 20.695 mortes por acidentes de trânsito no país, sendo que os motociclistas lideraram o ranking, com 7.811 mortes. Os motoristas de outros veículos vieram em segundo lugar, com 3.902 óbitos e, em seguida, os pedestres, com 2.984 mortes registradas.

As estatísticas da Polícia Rodoviária Federal (PRF) confirmam que, apesar da redução dos números, a agressividade dos sinistros de trânsito no Brasil ainda é preocupante. Levantamento da corporação mostrou que, somente nas estradas federais do país, 6.160 pessoas morreram e 84.526 ficaram feridas, em 73.156 acidentes ocorridos entre janeiro e dezembro de 2024.

É bom lembrar que os números de vítimas registradas como mortes de trânsito não levam em consideração os pacientes resgatados vivos e que morrem dentro de ambulâncias ou nas unidades hospitalares. 

Na Alego

Foram esses números catastróficos que inspiraram o deputado Virmondes Cruvinel (UB) a propor a criação da Política Estadual de Redução de Mortes e Acidentes no Trânsito. Segundo o parlamentar, o projeto visa ao estabelecimento de metas que, ao final do período de dez anos, deve reduzir, no mínimo à metade, o índice estadual de mortes por grupo de veículos e o índice estadual de mortes por grupo de habitantes.

A matéria prevê que a política de segurança no trânsito, no estado, deverá ter como prioridade o cumprimento de metas anuais de redução das mortes nos acidentes de trânsito, dando especial atenção aos dados levantados e às ações realizadas nas vias estaduais, federais e municipais.

Outra previsão do texto é que o Conselho Estadual de Trânsito de Goiás (Cetran-GO) poderá convidar órgãos federais, especialmente, a Polícia Rodoviária Federal e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), assim como entidades e organizações da sociedade civil com atuação na área de trânsito, para contribuírem na execução das metas e obtenção dos dados estatísticos.

As campanhas na mídia e a divulgação das iniciativas ficarão a cargo do Departamento de Trânsito (Detran-GO), que deverá prever, em seu orçamento anual, recursos financeiros para a execução das ações da Política Estadual de Redução de Mortes e Acidentes no Trânsito.

Ao apresentar o projeto de lei, o deputado alegou que a segurança viária pode ser intensificada com o aumento da fiscalização e com o mapeamento dos atuais índices de acidentados. “Com o intuito de promover a segurança e a proteção dos cidadãos goianos nos próximos anos, o presente instrumento proposto servirá de ferramenta estatística para um melhor planejamento de ações de prevenção e de suporte, tornando o trânsito mais seguro e poupando vidas” explicou Cruvinel na proposta.

Dramas reais

Nas emergências, nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), nos corredores e leitos dos hospitais que atendem vítimas de acidentes de trânsito, a frieza das estatísticas se transforma e ganha rostos, identidades, dores (físicas e emocionais), incertezas sobre o futuro e se traduz em histórias reais.

Luiz Gaspar Neves, de 67 anos, é personagem de uma dessas histórias. Ele teve a perna esmagada e precisou amputá-la, depois de ser atingido por um caminhão, no dia 5 de abril deste ano. Ele trafegava em uma moto, no Jardim Balneário Meia Ponte, em Goiânia, quando sofreu o acidente.

O condutor do caminhão não parou para prestar socorro. Como não há câmeras de segurança nas proximidades da avenida onde Luiz foi atropelado, ainda não se sabe detalhes do acidente.

A família do idoso só soube que ele foi atropelado por um caminhão, porque um bombeiro, que estava fora do horário de serviço, passava pelo local, testemunhou o acidente, prestou os primeiros socorros e fez o comunicado aos parentes.

Enquanto o paciente seguia internado na UTI do Hospital Estadual de Urgências Otávio Lage de Siqueira (Hugol), respirando com ajuda de aparelhos, a esposa, Maria Elizabeth, mãe dos dois filhos casal, desabafou: “Ele era independente. Acabou com a vida dele, porque, daqui pra frente, como ele vai voltar a fazer tudo que fazia antes, o serviço que ele fazia”?  Uma pergunta difícil de responder.

A comerciante Taís Cristina de Alvarenga, de 32 anos, também vai carregar para o resto da vida as sequelas de um acidente de trânsito. No dia 19 de junho do ano passado, ela foi atropelada, no Jardim Pompéia, em Goiânia, quando fazia uma entrega, há poucas quadras do comércio da família.

Taís estava retirando fardos de açúcar de dentro da carroceria de uma caminhonete estacionada. De repente, o motorista de um outro carro surgiu na rua em alta velocidade, bateu e prensou a vítima contra a caminhonete. A mulher teve as duas pernas esmagadas. 

Segundo a polícia, o condutor era mecânico de uma oficina, estava no carro de um cliente e tinha somente a habilitação provisória, que estava vencida.

Depois de dois meses internada no Hugol, várias cirurgias para enxerto e colocação de pinos para reparar a estrutura óssea, dores insuportáveis e o medo da amputação, Taís teve alta hospitalar. Porém, a luta da comerciante continuou. A felicidade de voltar para casa se misturou à tristeza da nova realidade: a jovem teve que usar uma cadeira de rodas, temporariamente, passar por outros procedimentos e enfrentar muitos outros desafios. “Está sendo muito difícil. Eu vejo o povo andar, vai para onde quiser e eu não dou conta, eu não posso mais. Eu estou deitada na cama e penso: eu queria tanto ir ao banheiro e não posso, porque eu não consigo. É muito difícil para mim. Do jeito que eu era ativa, fazia de tudo e agora não estou dando conta nem de manter o mercado. É muito difícil", declarou, emocionada.

Histórias parecidas com essas são milhares em todo o Brasil. Só o Hugol, um dos hospitais de urgência de Goiânia, de janeiro a abril deste ano, recebeu 1.731 vítimas de acidentes de trânsito. Em média, dez por cento dos pacientes atendidos na unidade são vítimas desse tipo de sinistro.

São pessoas que passam dias, semanas, meses e até anos em recuperação, acompanhadas de angústia, tratamentos longos, cirurgias complexas, dores intensas. Além dos pacientes, muitas vezes as famílias também são atingidas e têm as rotinas alteradas para sempre.

O diretor-técnico do Hugol, Fabrício Cardoso Leão, explica que, em geral, as vítimas de acidentes de trânsito são pacientes com lesões complexas, sendo as mais frequentes lesões ortopédicas, fraturas dos membros inferiores, como fêmur e tíbia, além de outras associadas, como lesões vasculares, neurológicas, traumatismos raquimedular e craniano. “Isso sem contar outras lesões complexas, que podem deixar sequelas irreversíveis, em muitos casos. O que observamos é que, por conta da alta velocidade no momento do acidente, o impacto é maior e, consequentemente, a gravidade das lesões”, detalha o médico ortopedista.

Se para quem é resgatado e passa por tratamento e reabilitação o sofrimento é grande, pior são as vítimas que nem têm a chance de chegar a um hospital. O entregador Gabriel Ricardo de Araújo Souza, de apenas 24 anos, foi uma delas.

No dia 19 de maio, Gabriel estava na motocicleta, que também era seu instrumento de trabalho, quando foi atropelado, na Vila São Sebastião, em Senador Canedo. Segundo testemunhas, o motorista do carro que bateu na moto do entregador estava embriagado. Ele não respeitou a sinalização e chocou violentamente na moto conduzida pela vítima. O exame feito por um perito do Instituto Médico Legal (IML) constatou a embriaguez. O motorista ainda tentou fugir do local do acidente sem prestar socorro, pulando o muro de uma casa, mas foi alcançado pela Polícia Militar. Gabriel morreu na hora.

Seis dias depois, outra jovem, Maria Clara Moreira, de 25 anos, se tornou mais uma estatística dos acidentes de trânsito. Na noite de 25 de maio, a motocicleta em que Maria Clara e o esposo trafegavam, foi atingida por um veículo de luxo no setor Sítios Santa Luzia, em Aparecida de Goiânia. Maria Clara também morreu no local. O marido foi socorrido e levado para o Hospital de Urgências de Goiás (Hugo).

Segundo a PM, no interior do carro, foram encontrados dois copos, o que pode indicar que os ocupantes ingeriram bebidas alcóolicas. Testemunhas da ocorrência também afirmaram que o motorista do veículo estava visivelmente embriagado. O rapaz, de 23 anos, tem várias passagens criminais, não tinha carteira de habilitação e fugiu sem prestar socorro às vítimas.

Além da dor da perda, o avô de Maria Clara, Anilvado Rodrigues, vai ter que conviver com a falta de uma verdadeira cuidadora. Com 66 anos, ele tem somente 3% da visão de um olho, o outro ele perdeu na infância. Além disso, a mobilidade do idoso ficou ainda mais comprometida depois que ele sofreu três AVCs. Era Maria Clara quem fazia de tudo para o avô. “Ela era muito carinhosa comigo. Tudo que eu pedia, que eu precisava, ela fazia. O remédio que eu tomo, que é difícil de tirar do envelope, por causa da dificuldade de enxergar, ela ia na farmácia, comprava, arrumava, deixava tudo dentro do copo arrumadinho. Na hora de eu beber, estava tudo prontinho. Meu celular sempre dava problema, ela arrumava tudo pra mim, colocou os contatos tudo na tela pra mim, aí eu já sabia pra quem eu queria ligar’, conta seu Anivaldo.  Ele resumiu o que estava sentindo: "Uma revolta muito grande. É fácil... pode matar todo mundo de carro, porque não dá nada", desabafou o avô.

O médico Fabrício Cardoso Leão, que lida diariamente com as tragédias provocadas pelas imprudências no trânsito, insiste que é preciso investir na prevenção de acidentes: “Principalmente porque todas essas lesões complexas são também lesões evitáveis. No momento em que o motorista tem cuidado e responsabilidade no trânsito, ele está evitando que lesões como essa ocorram”.

Ele afirma que, além de tratar os pacientes acidentados, o Hugol tem a função social de promover alertas de prevenção para que essas lesões sejam evitadas. E no próximo mês, o Hugol deve se unir ao Detran, ao Corpo de Bombeiros Militar de Goiás (CBMGO) e ao Batalhão de Polícia Militar de Trânsito (BPMTran) para a realização de um programa de prevenção, conscientização e educação para o trânsito.

A Campanha "Pare", que significa Prevenção de Acidentes e Reeducação no Trânsito, será voltada para os públicos interno e externo do Hugol. Com a mensagem principal “Um PARE pela vida”, o hospital espera conscientizar as pessoas por meio de alertas e materiais educativos a serem distribuídos no hospital e em vias públicas com alto índice de acidentes.

Ações contínuas

Durante o Maio Amarelo, o Detran-GO, órgão responsável pela execução da política de trânsito no estado, realizou diversas campanhas educativas, em parceria com a Polícia Rodoviária Federal (PRF), a Guarda Civil Metropolitana (GCM), o Serviço Social do Transporte e Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Sest Senat) e outros órgãos.

Segundo a assessoria de comunicação do órgão, foram mais de 60 ações, sendo 12 ações educativas em vias públicas, cinco palestras do Detranzinho, duas blitzes educativas, cinco cursos, 21 palestras em empresas ou órgãos públicos e muito mais. “O nosso maior objetivo em relação ao Maio Amarelo é fortalecer a conscientização de que o trânsito precisa ser um lugar seguro”, afirmou o presidente do Detran-GO, Waldir Soares.  

O órgão também veiculou uma campanha publicitária educativa, batizada de Trânsito Selvagem. Com o slogan “Sem respeito às leis de trânsito o bicho pega”, a ideia foi comparar o comportamento dos condutores com alguns animais selvagens. “Dizem que Goiânia é uma fazenda, mas na verdade parece que estamos numa selva, com motoristas pavão, aqueles que maquiam parado no sinal, outros são como vaga-lume que liga o pisca-alerta em qualquer lugar e até pedestres zebras, que acham que podem atravessar fora da faixa. O que queremos é que, no trânsito, esses comportamentos sejam extintos”, destacou delegado Waldir.

Os vídeos destacam as crianças observando o hábito que os adultos têm ao conduzir o veículo, em especial, os pais e responsáveis, cobrando deles uma direção correta e segura. Outra ação realizada foi um safari em Goiânia, em que o guia chamava a atenção dos “turistas” para o tipo de atitude que motoristas, ciclistas e até pedestres cometem no trânsito da capital.

Soares assegurou ainda que, independente do fim da campanha, as ações educativas do órgão vão continuar: “O nosso trabalho com a segurança continuará depois que as ações do Maio Amarelo acabarem”.  

Independente de campanhas, é necessário que cada cidadão, seja motorista ou pedestre, faça sua parte para reduzir o número de acidentes, mortes e feridos no trânsito, porque qualquer um de nós pode se tornar uma dessas vítimas. É como lembra o médico, que, todos os dias, acompanha o sofrimento das vítimas e de suas famílias. “É importante pontuar também que os acidentes de trânsito podem parecer distantes, mas são um grande problema social, que pode atingir pessoas que amamos, como entes queridos, familiares e amigos”, reflete Fabrício Leão.

Agência Assembleia de Notícias - Reportagem: Nivia Ramos
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