Campanha Agosto Lilás

Ações contribuem para conscientização e combate à violência contra a mulher em todo o Brasil. Em Goiás, projetos de lei têm por objetivo prevenir o feminicídio e garantir mais segurança a mulheres vítimas de agressão.
O Agosto Lilás é uma campanha estabelecida pelo governo federal, transformando este mês em um período dedicado à conscientização e combate à violência contra a mulher com o objetivo de sensibilizar e informar a população sobre a identificação de situações de violência e os canais disponíveis para denúncias, promovendo uma rede de apoio e proteção para as vítimas. A escolha da data se deu pela sanção da Lei Maria da Penha (Lei Federal 11.340/2006), assinada no dia 7 de agosto, uma referência fundamental no enfrentamento da violência doméstica no Brasil.
A campanha se destaca pela promoção de eventos e debates em todo o país, envolvendo agentes públicos e meios de comunicação para divulgar informações vitais sobre os tipos de violência — física, sexual, psicológica, moral e patrimonial. Além disso, enfatiza a importância de medidas de prevenção e suporte em todo o país com a integração dos mais diversos órgãos e entidades nacionais e estaduais distribuídos pelo Brasil a fora, formando uma grande rede de proteção com iniciativas essenciais para reduzir os índices de violência e feminicídio.
É fundamental garantir que as mulheres em situação de vulnerabilidade e violência recebam o apoio necessário para romper com o ciclo de violência. A assistência social atua de forma integrada com as políticas de segurança pública e saúde, oferecendo apoio psicológico, jurídico e socioeconômico às vítimas. Além disso, promove a reintegração social e a autonomia das mulheres, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Rede de proteção
No âmbito federal, o Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS) desempenha um papel importante nessa campanha, apoiando iniciativas que visam fortalecer a rede de proteção e atendimento às mulheres. Através do FNAS, são financiados programas e projetos que buscam não apenas a repressão da violência, mas também a promoção de uma cultura de respeito aos direitos humanos. A participação ativa da assistência social no Agosto Lilás reflete o compromisso contínuo do FNAS em garantir a proteção e dignidade de todas as mulheres que vivem no Brasil.
Dentro desse contexto, um documento importante e que pode nortear todas as ações a serem desenvolvidas no combate à violência contra a mulher é o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025. Esse documento explicita todas as particularidades da violência e demonstra a urgência na discussão do tema. Ele é composto por dados fornecidos pelas secretarias de segurança pública estaduais, pelas polícias civis, militares e federal, dentre outras fontes oficiais ligadas à segurança pública.
Na publicação, as pesquisadoras Isabella Matosinhos e Amanda Lagreca analisam os dados relacionados neste relatório, relativos ao ano de 2024, num comparativo com o ano anterior. Para elas, a violência contra as mulheres segue sendo um dos grandes desafios enfrentados pelas políticas públicas brasileiras no campo da segurança pública, tanto em termos de produção e sistematização de dados, quanto em termos de formulação e implementação, especialmente quando se trata das preventivas. “Dados mais recentes demonstram que as leis avançam, mas as violências persistem e as mulheres seguem em risco. E esses riscos são diversos.”
As estudiosas advertem que os dados oficiais de registros policiais indicam aumento de diversas formas de violência contra as mulheres. As análises desta seção se debruçam sobre nove tipos de crime contra mulheres, dentre eles, dois apresentaram queda na taxa nacional em relação a 2023: homicídio doloso de vítimas mulheres (-6,4%) — indicador que inclui os feminicídios —, e ameaça (-0,8%). Lesão corporal dolosa no contexto de violência doméstica apresentou estabilidade. Os demais registraram crescimento expressivo, que variam de 0,7%, no caso do feminicídio, a 19%, no caso da tentativa de feminicídio.
“Assim, ainda que alguns indicadores apontem leve redução, trata-se de diminuições modestas frente à magnitude dos crimes que cresceram, o que escamoteia um primeiro ímpeto de comemoração quando olhamos pela primeira vez para os dados de queda. Destaca-se que a queda no indicador de homicídio doloso se dá em um contexto de queda nacional da letalidade no Brasil, e, portanto, deve ser analisada com cautela”, explicam as pesquisadoras.
Segundo elas, esses dados ajudam a quantificar e qualificar o retrato do que oficialmente se sabe sobre a violência contra a mulher no Brasil. Ainda que os números mostrem uma situação grave, o que eles não mostram compõem um cenário mais amplo que é ainda mais cruel e duro do que nos dizem os registros oficiais. Isso porque, quando falamos de violência de gênero, falamos de um fenômeno que continua sendo marcado por subnotificação, silêncio e naturalização social.
Mudança depende da sociedade
Secretária de Projetos Especiais da Procuradoria da Mulher da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego), Cristina Lopes tece considerações sobre o Agosto Lilás e o contexto do feminicídio no Brasil e em Goiás. Ela conclama toda a sociedade para que possa se unir na proteção das meninas e mulheres em todo o Brasil, evitando tragédias e o cerceamento da liberdade feminina.
Como ponto de partida, Cristina Lopes lembra que o país tem a 5ª maior taxa de feminicídio em todo o mundo, conforme aponta a própria Câmara dos Deputados. Segundo o Organização da Nações Unidas (ONU), o país só perde para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato de mulheres. Em comparação com países desenvolvidos, aqui se mata 48 vezes mais mulheres que o Reino Unido, 24 vezes mais que a Dinamarca e 16 vezes mais que o Japão ou Escócia.
Ela lembra que até o século 19, vigorava no Brasil um conjunto de leis que previa a execução de uma mulher adúltera. Era lícito ao homem casado matar a esposa em flagrante delito pelo argumento da defesa da honra. Assim, a Justiça brasileira absolvia maridos assassinos entendendo que os crimes eram motivados “por amor” ou uma “forte paixão”, induzindo o réu a eliminar a vida da vítima. Até hoje, a grande maioria dos casos de feminicídio é cometida pelos companheiros e no ambiente doméstico. Todos esses dados mostram a necessidade urgente de uma mudança de postura de toda a sociedade, ressalta Lopes.
“Enquanto sociedade, por mais que a gente esteja pouco a pouco rompendo com a normalização dessas violências — especialmente entre mulheres, movimentos feministas e alguns setores do poder público —, ainda enfrentamos uma cultura que muitas vezes trata a violência contra a mulher como natural, como algo que decorre da ordem regular das coisas, dentro de uma estrutura arcaica que perdura, ancorada por uma cultura machista” adverte Lopes.
A secretária diz que contra essa lógica é preciso destacar que nenhuma discriminação é natural, muito menos a violência, elas de fato são resultado de construções sociais. “Acredito que um mundo justo, em que os direitos humanos são respeitados, é um mundo em que a violência de gênero é combatida e vista como inaceitável. E ainda que a realidade seja dura é preciso lançar luz a esse problema para que se possa combatê-lo, inclusive de forma a embasar políticas públicas preventivas e de enfrentamento ao fenômeno.”
Anuário
Cristina Lopes assinala que os dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 revelam que as mulheres seguem sendo mortas somente por serem mulheres. Segundo ela, os dados evidenciam uma situação alarmante, ainda que não reflitam completamente a realidade, já que existe subnotificação dos casos. O documento indica que no último ano, todos os dias, ao menos quatro mulheres morreram vítimas de feminicídio no Brasil. No total 1.492 mulheres perderam a vida por feminicídio em 2024. É o maior número já observado desde 2015, quando a lei entrou em vigor, indicando uma alta de 0,7% na taxa de feminicídios em 2024 em comparação a 2023.
A secretária observa que é preciso cuidado ao avaliar esse documento para entender que esse crescimento, mesmo que não tão expressivo em termos relativos, se dá em um contexto de redução geral das Mortes Violentas Intencionais (MVI) — considerando ambos os sexos —, tendência que temos observado ano após ano, conforme analisado no texto “Mortes Violentas Intencionais no Brasil em 2024”, e de diminuição também de homicídios dolosos femininos, que caíram 6,4% entre 2023 e 2024.
“Em números absolutos, no que concerne às mulheres existe pouco a comemorar: 3,7 mil mulheres perderam as suas vidas de forma violenta em 2024; dessas, 1.492 foram mortas em razão de serem mulheres. Apesar da atual legislação ter ampliado a pena prevista para o crime de feminicídio — passou de reclusão de 12 a 30 anos para 20 a 40, essa foi a principal medida, a reforma não incorporou medidas de prevenção à violência nem tampouco outras alternativas de responsabilização para além do sistema penal, centralizando a resposta do Estado apenas no punitivismo”, avalia Cristina Lopes.
Ela entende que essa centralidade na pena parece reforçar a lógica de enfrentar a violência somente depois do seu ápice, a morte, deslocando a atenção das políticas de prevenção e cuidado. A secretaria alerta que o crime de feminicídio, nesse sentido, pode ser visto como uma violência estatal, à medida que é pela negligência e omissão do Estado que as mulheres continuam morrendo, considerando, portanto, o caráter político conceitual que sustenta os números.
É nas realidades estaduais que se evidenciam com mais nitidez as desigualdades territoriais na letalidade contra mulheres. A secretária de Projetos Especiais avalia que, em Goiás, os números dão a verdadeira dimensão do padrão de violência que permanece ainda hoje, pois no período analisado (2023-2024) ocorreram: 393 homicídios, 187 feminicídios, mais de 32 mil ameaças, mais de 26 mil pedidos de medida protetiva, mais de 5 mil medidas protetivas descumpridas. Sem contar o aumento de casos de stalking [perseguição obsessiva e insistente de alguém, seja de forma física ou virtual-cyberstalking] e de violência psicológica.
Afora esses dados, quando analisados os 50 municípios com maior número de estupros e estupros de vulneráveis, o estado aparece com seis municípios neste ranking: Aparecida de Goiânia, Formosa, Itumbiara, Jataí, Luziânia e Trindade. As cidades de Jataí, Luziânia e Trindade seguem listadas em 2024 (posições 35, 13 e 15, respectivamente). Os outros três deixaram o ranking e foram substituídos por Planaltina, Rio Verde e Novo Gama (posições 18, 31 e 44, respectivamente). Ao todo, o estado permanece, infelizmente, com seis municípios na lista.
Parlamento goiano
Reconhecendo seu papel de caixa de ressonância social, tramita na Assembleia Legislativa de Goiás projetos que tratam dessa temática, dentre eles, pode-se destacar os dois últimos apresentados pelos deputados Veter Martins (UB) e Virmondes Cruvinel (UB).
O projeto de lei 19018/25, de Martins, prevê a instituição do Cadastro Estadual de Agressores de Violência Doméstica e o Programa de Inteligência Artificial para Prevenção ao Feminicídio, com foco prioritário em famílias e filhos de vítimas em situação de vulnerabilidade social, e dá outras providências.
Ele propõe a adoção de uma abordagem inovadora, orientada por dados, associando tecnologia, integração institucional e foco social. O parlamentar defende que a medida seja ancorada pelo tripé a ser estabelecido: a criação de um Cadastro Estadual de Agressores, ampliando o escopo da Lei nº 20.501/2019; a instituição do Programa de Inteligência Artificial para Prevenção ao Feminicídio (PREV-FEM-GO), voltado à antecipação de riscos com base em perfis, reincidência e padrão de conduta; e ainda, a priorização de políticas para famílias de baixa renda, especialmente aquelas atendidas por programas sociais estaduais ou com histórico de acolhimento institucional.
No escopo da matéria, o legislador destaca que a cidade de Goiânia já experimentou uma iniciativa pioneira de uso da inteligência artificial no combate à violência contra a mulher. Em novembro de 2019, foi apresentado à capital a robô Glória, projeto coordenado pela professora Cristina Castro Lucas, com apoio de Cristina Lopes, que então era vereadora por Goiânia.
Veter Martins relata que Glória é uma inteligência artificial (IA) que interage com mulheres vítimas de violência, registrando relatos, gerando dados anonimizados e construindo relatórios para análise e formulação de políticas públicas. Essa IA permite segmentar padrões de ocorrência de violência com base em dados sociodemográficos, realizar análises por local, faixa etária, e construir indicadores preditivos. Essa experiência demonstra que o uso de IA não apenas é viável, como já começou a ser adotado em nível municipal — e pode agora ser ampliado para o âmbito estadual com estrutura institucional, recursos permanentes e foco estratégico na prevenção.
O legislador entende que o projeto, portanto, não cria apenas mais um cadastro ou ferramenta isolada, mas propõe uma rede articulada, tecnológica e sensível à realidade socioeconômica das vítimas, com base em evidências e gestão de risco.
A propositura de Virmondes Cruvinel, disposta no projeto de lei 6216/25, trata da garantia de segurança e condução por viatura policial das mulheres vítimas de agressão física e tentativa de feminicídio até sua residência ou a um local seguro de sua escolha, após a denúncia do infrator na delegacia.
Cruvinel sinaliza que, no contexto goiano, a implementação de uma política pública que garanta a condução segura dessas mulheres representa uma evolução significativa na proteção aos direitos fundamentais e reforça o compromisso do Estado com a erradicação da violência de gênero. Segundo ele, trata-se de um instrumento essencial para garantir a efetividade das medidas protetivas previstas no ordenamento jurídico brasileiro.
O deputado pontua que além da garantia de segurança, a medida prevista no projeto também contribui para fortalecer a confiança da população feminina nas instituições de segurança pública, incentivando mais vítimas a denunciarem seus agressores, sem receio de ficarem vulneráveis logo após o procedimento policial.
Em sua justificativa, o legislador defende que considerando a complexidade e gravidade do problema, a implementação dessa política não deve ser vista como um custo adicional, mas sim como um investimento na preservação da vida e na dignidade da mulher goiana.
Por fim, Cruvinel sinaliza que a urgência dessa iniciativa se justifica pela necessidade de evitar tragédias que poderiam ser prevenidas com a simples disponibilização de um transporte seguro para a vítima, impedindo que ela fique exposta a novos episódios de violência logo após a formalização da denúncia.
Ambos os projetos estão na Comissão de Constituição, Justiça e Redação, prestes a encaminhamento para votação em plenário.