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Especial césio-137 - I

12 de Setembro de 2022 às 07:30
Crédito: Carlos Costa/ O Popular
Especial césio-137 - I
Césio 137
Trinta e cinco anos depois do acidente radiológico ocorrido em Goiânia, série de reportagens especiais traz testemunho de pessoas que viveram o drama e rememora fatos da tragédia que causou mortes e muita dor.

Além da chegada da primavera, em Goiás o mês de setembro traz a certeza de muito calor, a beleza da florada de algumas espécies, que se antecipam à estação das flores e a esperança de alguma chuva. Especialmente em Goiânia, setembro também traz lembranças dolorosas de um dos fatos mais relevantes e trágicos da história da Capital: o acidente radioativo com o césio-137.

O elemento vazado de uma máquina de radioterapia é, na verdade, cloreto de césio, um sal usado na radioterapia para o tratamento do câncer. No aparelho de radioterapia, um feixe radioativo é usado para matar as células cancerígenas. O chumbo em volta impede que a radiação atravesse e contamine o que estiver ao redor. Para o ser humano, o elemento oferece riscos, porque emite radiações eletromagnéticas que podem penetrar a pele e os tecidos do corpo humano, interagindo com as moléculas do organismo e gerando efeitos devastadores. Dentro do aparelho, o elemento fica num estado semi-sólido, quase “empedrado”.
 
Nesse triste aniversário de 35 anos da tragédia, o portal da Assembleia Legislativa de Goiás traz uma série de reportagens que relembram a dimensão do acidente, o martírio das vítimas que se estende por estas três décadas e meia, as atividades desenvolvidas no complexo que abriga o depósito dos rejeitos do césio-137 e a vida no bairro, 35 anos depois do acidente. 

Os textos que compõem essa série coligem informações de pessoas que viveram os fatos na época e que foram entrevistadas agora, bem como de reportagens de vários veículos de comunicação que cobriram o dia a dia do episódio e seus desdobramentos.

Na primeira reportagem especial é relatado como aconteceu, como foi a descoberta de que se tratava de um acidente radiológico e as consequências imediatas da tragédia, a partir de entrevistas com o físico que detectou a radioatividade e da mãe de Leide das Neves Ferreira, a menina de seis anos que virou símbolo da tragédia. 

Motovelocidade

O ano era 1987. Goiânia tinha menos de 1 milhão de habitantes. Naquele mês de setembro a rotina da cidade era quebrada pelo ronco de motocicletas e pela babel de pilotos e suas equipes, turistas, profissionais de imprensa e de outras áreas, de vários países, que desembarcavam por aqui para o Campeonato Mundial de Motovelocidade. 

A corrida de motos, marcada para o dia 27 de setembro, trazia para Goiânia ídolos do esporte, que disputariam as categorias 250 e 500 cilindradas, no Autódromo Internacional de Goiânia, famoso por seu traçado, que, segundo especialistas, oferece vários pontos de ultrapassagens, curvas de alta e baixa velocidade, além de possuir a maior reta dentre os autódromos do País.

Enquanto organizadores, donos de hotéis, restaurantes, bares e outros setores se preparavam para receber o circo da motovelocidade, bem próximo aos bairros nobres, que na época centralizavam esses serviços, uma tragédia silenciosa acontecia e só aumentava com o passar dos dias, sem que as vítimas sequer desconfiassem da dimensão do que viria a ocorrer logo a seguir.

Também em Goiânia para um compromisso familiar, na mesma época da disputa do motociclismo, o físico Walter Mendes Ferreira lembra que recebeu telefonema de um amigo, funcionário da antiga Fundação Estadual do Meio Ambiente (Femago), com quem tinha trabalhado anos antes. Era manhã do dia 29 de setembro. O colega informou que o médico Alonso Monteiro havia lhe contado que estava com vários pacientes internados com vômito, febre, diarreia e perda de cabelos. E perguntou se esses poderiam ser sintomas de contaminação por radioatividade.

O físico conta que respondeu afirmativamente, observando, porém, que somente em casos agudos, e que não acreditava que as ocorrências se tratassem de radiação, já que em Goiânia não havia uma fonte capaz de causar contaminação nesse nível. Mesmo assim, o amigo insistiu que Walter falasse com o médico. "Eu concordei", lembra o físico.  

Nessa conversa, também por ligação telefônica, o médico disse que os pacientes informaram sobre uma peça que estava na sede da Vigilância Sanitária (VS) e soltava um pó, que tinha um brilho azul. Eles desconfiavam que ela seria a responsável pelos sintomas, já que eram todos parentes ou tinham algum tipo de convivência.

A peça levada à sede da Vigilância Sanitária em um saco de linhagem era parte de uma máquina de radioterapia, que pertencia ao Instituto Goiano de Radioterapia. O aparelho estava nas ruínas da antiga Santa Casa de Misericórdia, que ficava no cruzamento das avenidas Tocantins e Paranaíba, no Centro de Goiânia (onde hoje está o Centro de Convenções).

O Instituto Goiano de Radioterapia tinha uma unidade na área do hospital e, com a transferência da Santa Casa para a Vila Americano do Brasil, o prédio foi praticamente todo demolido e o terreno ficou sem uso por vários anos. Esquecido entre os escombros, em uma sala que resistiu à demolição, estava a fonte com a cápsula de césio-137.

Catadores de recicláveis

Duas semanas antes do telefonema recebido por Walter Mendes, mais precisamente, no dia 13 de setembro, essa peça foi encontrada e retirada por dois catadores de materiais recicláveis: Roberto Santos e Wagner Mota Pereira. Por ser um conjunto grande, recoberto por chumbo, parecia ser de grande valor.

Roberto e Wagner usaram um carrinho de mão para transportar a peça até a rua 57, no setor Aeroporto, nos fundos do Mercado Popular da rua 74, onde Roberto morava. Ali tentaram separar algumas partes do conjunto, mas não conseguiram. Com as batidas na peça, o cloreto de césio começou a se soltar. Partículas do sal caíram no pé de Roberto.

No mesmo dia, os dois rapazes começaram a se sentir mal, mas como os sintomas se pareciam com os de uma intoxicação alimentar, a vida seguiu. Dias depois o cabeçote foi vendido para o ferro-velho de Devair Alves Ferreira, que ficava na rua 26-A, distante mais ou menos um quilômetro da casa de Roberto. Foi aí que o césio-137 começou a se espalhar.

Encantado pelo brilho azul emitido pelo elemento e sem saber do que se tratava, Devair levou a peça para dentro do seu quarto. Falava sobre ela o tempo todo e, com ferramentas, como chaves de fenda, retirava porções de césio, que carregava, mostrava e distribuía para vizinhos e parentes.

Em entrevista à TV Globo, em dezembro de 1987, o próprio Devair relembrou: “Eu amava aquela pedra, eu pegava a pedra e levava para fora do depósito. Muitas vezes tomei cerveja com o copo em cima da pedra”, dizia, mostrando o quanto ficou maravilhado.

Não tardou para que a família e funcionários do ferro-velho começassem a apresentar os mesmos sintomas de Wagner e Roberto. O mesmo aconteceu com as outras pessoas que também tiveram contato com o elemento.

Lourdes das Neves, esposa do irmão de Devair, dá seu testemunho sobre os fatos, dos quais ela se lembra com muita nitidez, mesmo passados 35 anos. Quando já havia alguns dias que o cunhado, a esposa e os funcionários estavam com sintomas, ela lembra, o marido foi visitá-los. Ao chegar, se assustou com o estado em que o irmão se encontrava. “O Devair já estava com os dentes moles, ele passava a mão na cabeça e saía aquele tanto de cabelo”, conta a mãe de Leide das Neves.

O brilho

Ao ir embora, Ivo Alves Ferreira também ganhou um pouco de césio, o qual colocou em um pedaço de papel e levou para casa. A esposa conta que ele espalhou o pó em um quarto escuro para ver o brilho. Dois dos seus três filhos tiveram contato com o césio-137. Depois de brincar com o material, Leide foi jantar. Segundo Lourdes, a menina comeu um ovo cozido e como estava com restos de césio nas mãos, acabou ingerindo o material radioativo.

Desconfiada que a causa dos problemas de saúde que se avolumavam estava naquela sucata trazida para sua casa, a esposa de Devair, Maria Gabriela Ferreira, resolveu tirar a peça dali. Com a ajuda de um funcionário do ferro-velho, colocou o conjunto dentro de um saco e o levou até outro depósito na tentativa de vendê-lo. Com a negativa do comprador, pegou um ônibus do transporte coletivo e foi até a Vigilância Sanitária. Ao deixar a peça no local, ela teria dito: “É isso que está matando meu povo”.

Na sede do órgão, o saco com a fonte de césio foi deixada em uma cadeira, onde ficou por três dias. Como as pessoas contaminadas não apresentavam melhora, muitas procuraram atendimento médico, algumas foram internadas, a maioria levada para o Hospital de Doenças Tropicais (HDT). Foi nessa unidade hospitalar que o médico Alonso Monteiro desconfiou do que poderia estar acontecendo.

“Pensei que o aparelho estava com defeito”

Ao ouvir as suspeitas do médico, o físico Walter Mendes Ferreira conta que, ainda duvidando de que se tratava de contaminação por radioatividade, concordou em verificar. Com um amigo, ele conseguiu um cintilômetro, aparelho detector de radiação e, ao testar a máquina, esqueceu de desligá-la.

Quando estava a cerca de 80 metros do prédio da Vigilância Sanitária, o equipamento disparou o alarme, em uma intensidade que ele achou que o aparelho só poderia estar estragado. “O cintilômetro dispara um ‘bip’ sonoro para alertar que se está em um campo radioativo. Então quando fui me aproximando, ele saturou o alarme. Eu pensei que o aparelho estava com defeito”, conta Walter.

O físico, então, voltou à empresa do amigo, pegou outro cintilômetro e, dessa vez, conferiu se estava funcionando corretamente. Ele voltou à Vigilância Sanitária e, mais uma vez, a uma certa distância do local, o aparelho começou a disparar o sinal sonoro, que ia se intensificando à medida que ele se aproximava. Foi então que ele se convenceu que se tratava de um acidente radioativo. 

Nesse momento, conta Walter Mendes, ele pôde evitar que uma tragédia maior acontecesse. Ao retornar à Vigilância Sanitária, um bombeiro militar já estava de posse do aparelho, para descartá-lo no Córrego Capim Puba. Ele pediu que o material fosse deixado no local e que todo o quarteirão da rua 16-A, onde hoje funciona o Centro de Atenção aos Radioacidentados (Cara), fosse isolado. 

A partir daí, foi uma corrida contra o tempo para cessar a contaminação e minimizar os danos já causados.

Dali, Walter Mendes se lembra que foi para a Secretaria de Estado de Saúde para comunicar às autoridades o que estava ocorrendo. Segundo ele, imediatamente, o titular da pasta, médico Antônio Faleiros, comunicou o fato à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e o levou até o governador do estado.

Mendes relembra que, além de médico, Henrique Santillo tinha sido professor de Física e, por isso, sabia bem da gravidade da situação. Na mesma hora, o governador convocou o Gabinete Militar e pediu orientação ao físico sobre o que deveria ser feito. “Eu disse que tinha de fazer o rastreamento. Como os servidores da VS tinham anotado o nome e o endereço da pessoa que levou a peça, já fomos para o local.”  

Para Walter, a agilidade com que as medidas foram tomadas por Santillo fez toda a diferença para que as consequências do acidente não fossem ainda maiores. Ele continua contando que, naquele mesmo dia, já por volta de 8h30 da noite, Devair, a esposa e os dois funcionários do ferro-velho foram retirados do local.

O físico se lembra que em vários pontos da região a cena do sinal do cintilômetro disparando se repetia. A Rua 26-A e imediações também foi isolada.

Radioatividade ambulante

Em seguida, um grupo se dirigiu à casa de Ivo Alves Ferreira. Segundo o relato de Lourdes das Neves, os técnicos chegaram com o cintilômetro ligado e Leide foi ao encontro deles: “À medida que a menina se aproximava, o aparelho apitava mais forte”. Por ter ingerido o material, Leide se tornou uma fonte ambulante de radioatividade.

Quando se percebeu que o número de pessoas que poderia ter tido algum contato com o césio-137 era muito alto, ainda naquela noite, uma megaoperação envolvendo vários órgãos, como a Secretaria de Saúde, Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e vários outros, foi montada. O Estádio Olímpico foi escolhido como o quartel-general da operação.

Por volta de meia-noite e meia, o físico da CNEN, Júlio Rosenthal, chegou à Goiânia. “Naquela hora mesmo, fizemos uma reunião na pracinha em frente à Vigilância Sanitária e definimos algumas questões. A partir daí, a CNEN passou a gerenciar”, conta Walter Mendes.

Outros técnicos da CNEN também foram enviados a Goiânia, para várias frentes de trabalho. Ao todo, 323 profissionais da Comissão trabalharam no acidente. Junto com os servidores do Governo do Estado e da Prefeitura de Goiânia, mais de 700 pessoas atuaram, conforme registros jornalísticos. 

Na próxima reportagem, será contado um pouco da história das vítimas do acidente com o césio-137. 

Nívia Ramos
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