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Especial césio-137 - III

23 de Setembro de 2022 às 08:00
Crédito: Hellenn Reis
Especial césio-137 - III
Depósito dos rejeitos do césio-137 em Abadia de Goiás
Controle, prevenção, educação e preservação da memória: conheça as atividades realizadas no complexo que abriga o depósito de rejeitos do césio-137, em Abadia de Goiás, que reúne rigoroso sistema de segurança.

Na terceira reportagem especial sobre os 35 anos do acidente com o césio-137, é apresentado o complexo que abriga o Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste (CRCN-CO), unidade da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), o 1º Batalhão da Polícia Militar Ambiental e o Parque Estadual Telma Ortegal (Peto), unidade de conservação do estado, criada para abrigar os rejeitos do césio-137. 

O texto traz informações diretas de pessoas que participaram dos eventos e de extensa pesquisa nos jornais que cobriram os fatos e seus desdobramentos.

O local reúne diversas atividades dos três órgãos, mas tem no monitoramento do depósito e no controle radiológico ambiental das áreas atingidas pelo acidente parte de sua atuação. A educação, com palestras e visitação de escolas e a preservação da memória, através do Centro de Informações, também são atribuições do CRCN-CO. A criação de uma unidade especializada no policiamento ambiental, também, foi um legado deixado pelo acidente. 

Do alto do mirante no Parque Telma Ortegal, na cidade de Abadia de Goiás, é possível vislumbrar, praticamente, toda a extensão da unidade de conservação. Ainda se divisa pastagens e plantações de propriedades do entorno e casas simples de bairros da pequena cidade, que já se avizinham. Espécies do Cerrado, resistentes à ação humana, também são vistas aqui e acolá e, nessa época do ano, o colorido dos ipês se destaca. Entre eles, uma árvore robusta, frondosa, com uma copa imensa, completamente tomada de flores amarelas, encanta mesmo à distância.  Não à toa é chamado pelos funcionários do parque de “Ipê gigante”.

Mesmo com tantos atrativos visuais, dentro da área do parque, o centro das atenções são dois pequenos morros de terra, cobertos com grama e perfeitamente simétricos. A forma perfeita se explica: os montes são artificiais, construídos por mãos humanas, e o que está embaixo deles foi o que motivou a criação da unidade de conservação e de toda a estrutura ali existente: 6 mil toneladas de rejeitos contaminados com o césio-137.

Se a quantidade por si só impressiona, o conteúdo do chamado lixo radioativo chama atenção também. Tudo, absolutamente tudo que foi contaminado pelo elemento químico e não pôde passar pelo processo de descontaminação virou rejeito: roupas, móveis, utensílios domésticos, fotografias, livros, brinquedos... E mais: entulhos de seis casas que foram completamente demolidas, partes de 50 veículos, como os bancos e carpetes, camadas de asfalto e de terra de 45 ruas, árvores e até animais de estimação, que tiveram que ser sacrificados. 

Todo tipo de material que os aparelhos de medição de radioatividade apontavam ter vestígios de radioatividade foi acondicionado em tambores ou caixas metálicas. Dez contêineres marítimos também receberam as peças maiores, como sofás e outros móveis que viraram lixo. “Ao todo, foram 4223 tambores, 1.343 caixas metálicas e dez contêineres. Depois de fechados, a parte externa dos recipientes era descontaminada e tudo era levado para um depósito provisório”, explica o físico Walter Mendes Ferreira, que há cerca de um ano e meio voltou a Goiás para coordenar o CRCN-CO. 

O físico relata que oito áreas foram consideradas como altamente contaminadas, sendo que 80% dos rejeitos estavam nesses locais. Dois terrenos tiveram que ser concretados, o lote da Rua 57, onde ficava a casa de Roberto Santos Alves, para onde a cápsula foi levada inicialmente, e o lote onde se localizava a casa e o ferro-velho de Devair Alves Ferreira, na Rua 26-A, ambas no Setor Aeroporto. 

Recolher e acondicionar, de forma segura, esse volume considerável de rejeitos, era somente uma parte do problema. Era preciso dar uma destinação final ao lixo. Entre três locais apresentados à época, os técnicos escolheram a área de uma antiga cascalheira, localizada no então distrito de Abadia de Goiás, pertencente à capital.

Inicialmente os rejeitos ficariam temporariamente ali, até que fosse definido o depósito final. Mas quase uma década depois, optou-se por deixar o lixo onde já estava. E esse foi um dos argumentos para a decisão: evitar novo deslocamento de todo esse material, além das condições favoráveis do terreno. “Entre as características dessa área, aqui não oferecia riscos para a contaminação do lençol freático”, relata o gerente de uso público e regularização fundiária da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), Eric Rezende.

Segundo Walter Mendes, além da profundidade das águas subterrâneas, o local escolhido era o que melhor atendia às condições técnicas para abrigar o depósito definitivo.

Mesmo para quem não conhece a história, não deve ser difícil imaginar que a população do pequeno distrito não aceitou a decisão de bom grado. Ninguém queria como vizinho os rejeitos do pó azul que já havia causado quatro mortes e mais de uma centena de contaminados ou irradiados. Compreensível. Junto com as toneladas e toneladas de lixo vinha outra carga muito pesada: de medo, dúvidas, preconceito, discriminação e, muitas, muitas perguntas sem respostas. 

Foram dezenas de manifestações, reclamações dos moradores, protesto com fechamento da BR-060, reuniões, desgastes, mas o martelo foi batido. Os rejeitos radioativos ficariam onde já estavam há quase dez anos.

Para que o depósito fosse definitivamente instalado na localidade, o distrito foi emancipado politicamente. Pela Lei 12.799, aprovada pela Assembleia Legislativa, em 1995, Abadia de Goiás foi desmembrada da capital e se tornou município. A cidade também passou a receber uma compensação financeira paga pela CNEN a localidades que abrigam esse tipo de depósito. 

Segurança
 
No local, os recipientes com os rejeitos do césio foram concretados. Depois tudo foi colocado em duas grandes caixas de concreto construídas no nível do solo, com paredes de 50 centímetros de espessura. Por cima foram dispostas camadas de brita, areia, terra e grama. Toda essa estrutura gerou os dois “morrotes”, que podem ser avistados de vários pontos do parque. 

A peça que continha a cápsula com césio-137 recebeu atenção especial. Para não movimentá-la mais uma vez e correr o risco de espalhar mais radiação pela cidade, ela foi concretada dentro do prédio da Vigilância Sanitária. Só depois dessa blindagem foi levada ao repositório. Também virou lixo radioativo e está dentro de uma das caixas de concreto. 

Os depósitos foram projetados para que não houvesse nenhum risco de novas contaminações, dessa vez, pelos rejeitos. Nestes anos todos, nenhum problema foi registrado. Walter garante: “Não teve e nem terá. Nós temos cálculos matemáticos que asseguram que a estrutura é mais que segura.”

Mas não são apenas esses cálculos que garantem que os resíduos estão bem guardados e não oferecem riscos. A cada três meses é feita análise da água subterrânea, das águas de superfície, da vegetação e de sedimentos. Tudo é coletado e analisado pelos técnicos do  Programa de Monitoramento Ambiental (PMA) de Rejeitos Radioativos do CRCN-CO. 

Além dos rejeitos, o CRCN-CO também monitora as áreas atingidas pelo césio-137. Esses locais são tecnicamente chamados de áreas remediadas, através do Programa de Monitoração Radiológica Ambiental (PMRA). 

Os resultados de todas as análises vão para um relatório anual que é encaminhado a órgãos como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério Público. 

Mas o trabalho do Centro, que é vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovações, vai além do controle dos efeitos do acidente radiológico. No local funcionam o Laboratório de Radioecologia, o Laboratório de Radioproteção e um Centro de Informações, onde existe uma sala dedicada à preservação da memória do acidente: são fotografias, aparelhos usados para medir a radiação e outros objetos que nos lembram os horrores de 1987, mas que também nos alertam para a necessidade dos cuidados para que a tragédia não se repita.

Também é desenvolvido um programa de educação com a visitação de alunos de escolas públicas e particulares. Os estudantes participam de palestras, conhecem os depósitos dos rejeitos do césio e ficam conhecendo a história do acidente através dos objetos da exposição permanente. Antes da pandemia, o local recebia cerca de 5 mil estudantes a cada ano. Por causa da covid-19, as visitas ficaram suspensas por dois anos, sendo retomadas agora, no segundo semestre de 2022. 

Ainda na área de ensino, o CRCN-CO promove, também, cursos de radioproteção para áreas específicas como a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros. 

Além disso, no local é desenvolvido, em parceria com a Saneago, um programa de monitoramento de águas, realizado, por exemplo, em áreas ricas em mineração e análises em aterros sanitários.

O parque

O espaço que iria abrigar um material potencialmente perigoso, como rejeitos radioativos, precisava de uma proteção especial, sob vários aspectos. E para solucionar questões como a ameaça da expansão urbana chegar muito perto dos depósitos, a solução foi transformar a área em uma reserva ambiental.  

A lei que criou o Parque Estadual de Abadia de Goiás, aprovada em 1995, diz que o local destina-se a atender às normas de preservação do meio ambiente do entorno do depósito, recomendadas pelo Ibama, CNEN e pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente (Cemam). 

Em 1997, a unidade de conservação ganhou o nome de Parque Estadual Telma Ortegal, em homenagem à primeira prefeita do município, que morreu vítima de um infarto, quando ainda estava no exercício do mandato. 

Além de proteger o depósito de rejeitos, a criação do Peto mudou a paisagem dos 155 hectares da unidade. A terra nua, deteriorada pela retirada de cascalhos, teve a vegetação recuperada, tanto por projetos de replantio desenvolvidos na área, quanto pelo crescimento natural de espécies do Cerrado. 

Hoje a unidade está completamente transformada e, apesar de ainda possuir áreas que ainda precisam ser reflorestadas, em uma grande extensão do terreno, a recuperação é visível, tanto que já foi possível criar duas trilhas dentro da mata: uma de pedestre e outra de mountain bike, essa última feita em parceria com o Batalhão Ambiental. 

Segundo Eric Rezende, o retorno da vegetação atraiu, também, espécies da fauna local. “Aqui podemos ver macacos, tamanduás, quatis, veado e até uma jaguatirica já foi vista na área. Ainda falta muita coisa, mas estamos fazendo um grande esforço para dar à unidade todas as características de um parque”, resume o gerente. 

Polícia Ambiental 

A fundação de um policiamento especializado no meio ambiente foi outra “herança” do acidente radioativo. Após a descoberta do césio-137, policiais e bombeiros militares foram designados para fazer o isolamento das áreas afetadas.

Em seguida, foi criada na estrutura da Polícia Militar, a Companhia Independente de Policiamento Especial (Cipoles), que tinha como atribuição o policiamento do Depósito de Rejeitos Radioativos (DRR), em Abadia de Goiás.

Em 2011, foi criado o Comando de Policiamento Ambiental (CPA), responsável pelo planejamento das atividades em defesa do meio ambiente no estado. Entre as unidades subordinadas ao CPA, está o 1º Batalhão PM Ambiental, que tem sua sede dentro do Parque Telma Ortegal. 

O 1º Batalhão tem em sua estrutura quatro Companhias:
1ª Cia/Operacional – Abadia de Goiás: responsável pela área de Goiânia e seu entorno até 100km, na Mesorregião Centro-Oeste. 
2ª Cia/Operacional – Rio Verde: responsável pela Mesorregião Sudeste.
3ª Cia/Operacional – Caldas Novas: responsável pela Mesorregião Sul.
4ª Cia/Operacional – Goianésia: responsável pela Mesorregião Nordeste.

Além do 1º Batalhão, o CPA abarca, ainda, a 1ª CIPMA, com sede em Aruanã-GO e o Núcleo de Educação Ambiental (NEA).

Na próxima reportagem será mostrado como está o bairro onde aconteceu o acidente com o césio-137, 35 anos depois da tragédia. 

Nivia Ramos
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