Política de inclusão

A reserva de 20% das vagas de concursos públicos e processos seletivos para pretos e pardos agora é lei. A medida engloba certames do Executivo e Legislativo estadual e começa a valer em 2 de novembro deste ano.
O governador Ronaldo Caiado (UB) sancionou no último dia 6, a Lei nº 23.389/25, proposta pela própria Governadoria e destinada a reservar à população negra 20% das vagas de concursos públicos ou processos seletivos simplificados para o provimento de cargos efetivos e de empregos públicos nos poderes Executivo e Legislativo goianos.
A matéria foi aprovada em definitivo pelo Plenário da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás (Alego) no dia 15 de abril, após discussões não apenas naquela tarde, mas também em Plenário no dia 14 e na Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJ) no dia 10.
O governo de Goiás afirma, na exposição de motivos do projeto, haver sub-representação de pretos e pardos no serviço público. O Observatório da Presença Negra no Serviço Público afirma que os servidores públicos negros – soma de pretos e pardos, conforme dispõe o IBGE – são 37,5% dos servidores no país, embora pretos e pardos sejam 55,5% da população nacional.
O Observatório também aponta outras disparidades, como a de que a população negra ocupa, no serviço público brasileiro, metade dos cargos de nível médio, mas um terço daqueles de nível superior. Além disso, totaliza apenas 15% dos magistrados no Judiciário.
Também entre professores de ensino superior, outro cargo acessível por concurso público, há diferença: o Brasil tem o triplo de professores brancos do que pretos e pardos nas universidades e institutos públicos; em Goiás, a relação é de 2,3 para 1.
A Agência Assembleia de Notícias aborda a seguir os principais aspectos, argumentos e indicadores relativos às cotas raciais no Brasil e em Goiás.
1. Critérios são autodeclaração e análise de comissão específica
A lei não se aplicará aos concursos e aos processos seletivos simplificados com editais já publicados antes de sua entrada em vigor, o que ocorrerá em 180 dias a partir da data de publicação, ou seja no dia 2 de novembro deste ano. Prevê-se na própria lei que ela vigerá por dez anos, portanto até 2035.
É disposto, como na lei federal de concursos públicos (ver tópico 2), que ficam reservadas à população negra 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos ou nos processos seletivos simplificados para o provimento de cargos efetivos e de empregos públicos, sempre que o número de vagas oferecidas for igual ou superior a três.
A terceira vaga de cada cargo do concurso será a primeira reservada como cota racial – havendo três vagas para analista administrativo, por exemplo, a terceira caberá a um cotista.
Havendo mais vagas ou nomeações, segue-se então a regra de 20%, reservando às cotas raciais uma a cada cinco vagas, portanto as do 8º, 13º, 18º, 23º colocados e assim por diante.
A lei estabelece que os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso ou no processo seletivo simplificado.
Isso significa que, na hipótese de o candidato cotista ficar em uma classificação geral acima da cota (primeiro ou segundo lugar, acima daquela cota reservada à terceira vaga, por exemplo), ele ocupará uma vaga da ampla concorrência, deixando a outro cotista a reservada.
O critério para enquadramento nas cotas é a autodeclaração, que deverá ser verificada por uma comissão estabelecida para isso. Nessa verificação, devem ser considerados “somente os aspectos fenotípicos do candidato”, que serão examinados obrigatoriamente na presença desse. Não serão levados em conta ascendentes ou pareceres de outras comissões.
A autodeclaração fraudulenta gerará a eliminação do concurso e outras possíveis sanções.
2. Cotas recém-aprovadas se somam a outras já existentes
As cotas recém-aprovadas se somam a outras que vigoram há anos no Brasil. É válido ressaltar que estados e municípios têm liberdade para legislar a respeito de cotas para os seus concursos públicos, podendo também se basear na legislação federal.
Federalmente, há cotas raciais em concursos públicos nacionais desde 2014, com a lei nº 12.990, que reserva 20% de vagas para pessoas negras nas autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista controladas pela União. Câmara e Senado federais se baseiam nessa lei e utilizam cotas raciais nos seus concursos. O Judiciário federal aplica cotas com base na resolução no 203, de 2015, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Concursos do Judiciário em Goiás também se baseiam na resolução do CNJ e oferecem, como ocorreu nas últimas provas do Tribunal de Justiça goiano (TJ-GO), 20% de cotas raciais.
A lei nº 12.990 continha dispositivo que a extinguia em 2024. O STF, porém, a prorrogou até que outra lei sobre o tema seja sancionada, o que pode ocorrer em breve: tramita no Senado o projeto nº 1.958, de 2021, do senador Paulo Paim (PT/RS), que reserva a pretos e pardos, indígenas e quilombolas 30% das vagas de concursos públicos federais. O texto teve aprovação bicameral, mas necessita nova chancela do Senado por ter sido alterado na Câmara.
3. Especialistas divergem quanto a tipos e aplicações de cotas
Com diferentes argumentos, especialistas questionam a aplicação de cotas raciais em concursos e processos seletivos públicos.
Uma das ponderações é que, já havendo cotas raciais para ingresso no ensino superior, a reserva em concursos e seleções seria redundante. Um dos contra-argumentos para isso é que as cotas não garantem, por si só, a permanência nas universidades (que dependeria de bolsas para cotistas) ou a entrada no serviço público (pelo fato de cargos com poucas vagas não terem cotas), tornando a reserva de vagas nessas duas situações complementar uma da outra.
Há também o argumento que as cotas sociais seriam mais efetivas que as raciais ao focarem na população mais vulnerável, independentemente de cor ou raça.
No caso das vagas reservadas nas universidades públicas, as cotas já são predominantemente sociais. No caso dos concursos públicos é que as vagas desconsideram a renda. O que existem são isenções da taxa de inscrição para candidatos de renda mais baixa.
A promotora de justiça do Ministério Público da Bahia Lívia Sant’Anna Vaz, eleita uma das cem pessoas de descendência africana mais influentes do mundo e autora de “Cotas raciais” (Ed. Jandaíra, 2022), afirma que as cotas sociais, como medida “racialmente neutra”, são “uma dissimulação dos objetivos das ações afirmativas” e desconsideram “o histórico secular de racismo e discriminação racial que, fecundado pelo escravismo e solidificado pelo colonialismo e reproduzido a partir das colonialidades, preservam-se até os dias atuais”. O objetivo maior, a procuradora enfatiza no seu livro, é combater o racismo e não a pobreza.
Notório crítico das cotas raciais, o sociólogo Demétrio Magnoli sustenta, em “Uma gota de sangue: história do pensamento racial” (Ed. Contexto, 2009), que “a ofensiva [dos favoráveis a essas cotas] se deu por meio da importação das categorias raciais bipolares americanas”.
O Brasil teria uma população muito mais miscigenada que a dos Estados Unidos. Em pesquisa de 1976, exemplifica, pesquisadores do IBGE registraram 136 respostas diferentes à solicitação autodeclaratória de cor/raça dos entrevistados. A imensa miscigenação dos brasileiros, diz o autor, é comprovada por geneticistas e não cabe “nas categorias fechadas do Censo”.
A definição de pardo para o IBGE, ele ressalta, varia desde 1940. Em alguns censos, chegava-se a ela por exclusão de outras classificações. A autodeclaração direta como pardo teve início nos anos 2000, mesma época em que, pontua Magnoli, o instituto foi “chamado a unificar os ‘pretos’ e ‘pardos’ no contingente da população afrodescendente’”. Isso teria feito com que “o Brasil estatal” deixasse de “reconhecer a realidade social da mestiçagem”.
Que haja uma grande mestiçagem, argumenta ainda o sociólogo, não significa que haja “democracia racial” no Brasil. Magnoli diz que nem Gilberto Freyre, principal associado a essa expressão, a defendia, inclusive tendo afirmado em entrevista de 1980 que não haveria no Brasil democracia “nem racial, nem social, nem política (...)”.
Sobre a vasta miscigenação brasileira, a procuradora Lívia Sant’Anna afirma ser crucial focar na questão do fenótipo, “o fator, que, socialmente, determina o racismo”, e por isso “também deve ser o critério para a definição das/os destinatárias/os das cotas raciais”.
É isso, argumenta a procuradora, que deve guiar as bancas de heteroidentificação, e não “as experiências e características físicas de nossas/os ascendentes”, as quais “podem ser relevantes para a formação do nosso sentimento de pertença étnico-racial”, mas “não são, de modo algum, determinantes para fins de implementação das cotas”.
Os obstáculos que surgem em função da raça, portanto, “dizem mais respeito a como as pessoas são percebidas e classificadas racialmente pela sociedade do que à autoidentificação racial, isoladamente considerada”, uma vez que “se um indivíduo branco se autodeclarar negro, não passará a ser percebido como tal e, consequentemente, não deixará de gozar dos privilégios que a cor da sua pele lhe outorga numa sociedade racialmente hierarquizada”.
Ela concede que “pode haver fronteiras fluidas na percepção social a respeito da raça de um indivíduo, sobretudo no caso dos pardos claros”, mas é possível afastar boa parte das “dúvidas razoáveis” com a análise fenotípica dos candidatos dentro dos “contextos relacionais locais”.
Para Magnoli, o essencial seria o enfoque na questão da pobreza.
4. Acesso ao estudo ainda repercute desigualdade histórica
Em “Cotas raciais”, Sant’Anna resume a evolução do ensino no Brasil sob a perspectiva racial. A responsabilidade da educação básica, durante a maior parte do Império, coube aos estados (então chamados de Províncias), que em vários casos dispuseram que somente pessoas livres podiam frequentar as escolas. Em Goiás, a proibição de ensino dos escravos se deu já em 1835, com a Primeira Lei de Instrução Pública. Em 1869 a legislação goiana foi além, interditando o ensino aos escravos não somente nas escolas públicas, mas também nas escolas privadas.
“Mesmo com a Proclamação da República”, escreve Sant’Anna no livro, “a Constituição republicana de 1891 não se preocupou com a expansão do direito à educação, realidade que perdurou por muitas décadas, atingindo sobretudo a população negra recém-liberta já submetida a um pós-abolição marginalizante e excludente de direitos”.
Depois de 131 anos, o Censo de 2000 do IBGE ainda apontava discrepâncias educacionais de cor ou raça. Em Goiás, embora o total de brancos fosse quase idêntico ao de pretos e pardos, aqueles somavam 91 mil estudantes frequentando o ensino superior, e esses, 26 mil.
Duas décadas após o início da aplicação de cotas no ensino superior goiano (tópico 7), pretos e pardos (agora 63% da população estadual) totalizam 125 mil alunos do ensino superior goiano, e brancos (36% da população estadual), 98 mil.
Com universitários representando uma composição racial mais próxima da verificada na população, os especialistas focam na persistência da diferença nos cursos mais disputados. No Brasil há, por exemplo, duas vezes e meia a mais estudantes de medicina brancos, 125 mil, que pretos e pardos, 51 mil. No direito o contraste é menor, 347 mil ante 274 mil.
Permanece também, como mencionado, a diferença do total de professores de ensino superior por cor ou raça.
Lívia Sant’Anna postula ainda que “o processo de sucateamento das universidades públicas – notadamente de suas políticas de permanência – parece revelar o paulatino desinteresse das elites brasileiras por essas instituições, que, assim, deixam de merecer efetivo investimento público” (itálico no original). O mesmo teria ocorrido, afirma, com as escolas públicas quando cessaram as mencionadas restrições e proibições de acesso às pessoas negras.
Por fim, o Censo Demográfico 2022 revelou haver, em Goiás, o dobro de pretos que brancos não alfabetizados, 8,7% em contraste com 4,3%. Entre pardos, o índice é de 5,7%.
5. Renda de pardos, mas não a de pretos, reduz diferença para a verificada entre brancos
Demétrio Magnoli problematiza o uso de indicadores nacionais de rendimento por cor e raça argumentando que eles refletem desigualdades mais regionais que raciais. Ou seja, o fato de o rendimento médio em um estado como a Bahia, que tem população majoritariamente negra, ser muito menor que a de um estado como Santa Catarina, majoritariamente branco, reduz o rendimento médio nacional de pretos e pardos em relação ao dos brancos.
A desigualdade dentro de cada estado, de fato, segundo dados do IBGE, tende a ser menor que a nacional. Ela, de todo modo, segue relevante: enquanto os pardos brasileiros ganham 59,5% do que ganham os brancos (R$ 2.653 ante R$ 4.458), os pardos em Goiás ganham 68,7% do que ganham os brancos (R$ 3.301 ante R$ 4.409), percentual ainda distante da paridade.
Além disso, há casos em que mesmo dentro de um só estado a disparidade repete o padrão do país. É o caso da população preta justamente em Goiás, que terminou 2024 com 57,0% do rendimento da população branca, indicador semelhante ao nacional, 57,7%.
A variável aqui destacada é o rendimento médio mensal das pessoas de 14 anos ou mais de idade ocupadas com rendimento de trabalho, efetivamente recebido em todos os trabalhos.
Os números são do quarto trimestre de 2024 e pertencem à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD Contínua), do IBGE, cuja série histórica teve início no primeiro trimestre de 2012, mesmo ano em que a lei nº 12.711 institui ou reafirmou o sistema de cotas em 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia.
Entre o início de 2012 e o final de 2024, tanto no Brasil como em Goiás, o rendimento médio aumentou sobretudo para os pardos. Nacionalmente, o rendimento dos pardos aumentou 18,7% nesses 12 anos; dos brancos, 12,8%; dos pretos, 11,8%.
No caso da população goiana, os aumentos foram de 22,7%, 21,2% e 16,3% para pardos, brancos e pretos, respectivamente, no mesmo período.
Os indicadores do primeiro trimestre de 2025 serão divulgados neste mês de maio. Na publicação “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil”, de 2022, o IBGE aborda indicadores de mercado de trabalho e distribuição de renda; condições de moradia e patrimônio; educação; violência; e participação e gestão.
6. Para funcionarem, cotas demandam reforços de outras medidas
A promotora Lívia Sant’Anna faz críticas a limitações das cotas raciais em concursos, que por diferentes motivos gerariam resultados aquém dos desejados.
Um desses motivos é o que ela chama de departamentalização das vagas oferecidas. Quando as vagas ofertadas não chegam a três, não há cota para pretos e pardos.
Esse problema, ela aponta, é comum em processos seletivos para professores universitários, que comumente, mesmo quando ofertam de dezenas de vagas, as oferecem por departamento, às vezes resultando na falta de uma vaga de cota sequer na seleção inteira.
Outra limitação destacada por Sant’Anna é a da pontuação extra atribuída, em etapas de títulos dos concursos, a mestrado e doutorado, que vêm dispondo de cada vez menos bolsas de estudo e são menos acessíveis para a população com menos recursos.
Em Goiás se verifica uma diferença bem menor que no país como um todo nesse aspecto. Há 8% a mais de mestrandos e doutorandos brancos que pretos e pardos no estado, enquanto no Brasil essa diferença ainda é de 65%.
Quanto a cotas em universidades, o maior problema seria a falta de políticas de permanência, que dariam suporte material e financeiro para que cotistas concluam a graduação.
7. Cotas universitárias são para escolas públicas e, secundariamente, raciais
Universidades e institutos de ensino superior passaram a aplicar cotas de forma autônoma nos anos 2000, até que a citada lei federal nº 12.711, de 2012 – depois alterada pela lei nº 14.723, de 2023 –, unificou o que é disposto sobre o tema.
Nesse caso, são previstas cotas para alunos de colégios públicos e, entre essas, as raciais.
Funciona assim: de cada 100 vagas da UFG, 50 não se enquadram em nenhuma cota e 50 são para alunos que cursaram integralmente o ensino médio em colégio público. Essas últimas 50 são distribuídas conforme a proporção de autodeclarados pretos, pardos, indígenas e quilombolas e pessoas com deficiência (PcDs) em Goiás, segundo o último censo do IBGE.
Abrangendo os quatro primeiros grupos, as cotas raciais somariam, de acordo com o Censo Demográfico 2022, 33 das 50 vagas reservadas a cotistas. As 17 restantes caberiam a um PcD e a 16 alunos egressos do ensino médio público independentemente de cor ou raça.
Determinada a quantidade de vagas de cada grupo, reserva-se metade delas aos alunos que ao mesmo tempo se enquadram no grupo e integram famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo per capita. No caso de uma família composta de pai, mãe e dois filhos, isso significaria atualmente uma renda total de até R$ 6.072,00.
Em resumo, as cotas raciais corresponderiam hoje a 33% de todas as vagas da UFG. Todos esses cotistas, enfatize-se, são oriundos de colégios públicos.
Há também as cotas das universidades estaduais. Em Goiás, o tema foi regulamentado pela lei nº 14.832, de 12 de julho de 2004. A divisão – que se aplica a UEG – é simples: de cada 100 vagas, 25 são para alunos que concluíram a educação básica em escolas públicas; 20, para estudantes negros (pretos ou pardos); e cinco, para indígenas e portadores de deficiência.
No caso da UFG, as cotas começaram a ser aplicadas em 2008.