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Linguagem e cultura

10 de Junho de 2024 às 08:58
Linguagem e cultura
Língua oficial de oito países, além do Brasil, o português é falado por 260 milhões de pessoas. Derivado do galego, o idioma foi e continua sendo matéria-prima de grandes escritores ao longo dos séculos.

 “Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte”. Assim o moçambicano Mia Couto (1955-) abre o romance “Terra Sonâmbula”.

“A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância”, prossegue, relatando a fuga de um menino e um idoso da guerra civil que assolou Moçambique entre 1976 e 1992.

Publicado no ano em que a guerra terminou, esse premiado livro de Mia Couto é um dos patrimônios que podem ser celebrados neste 10 de junho, Dia da Língua Portuguesa.

Falado por mais de 260 milhões de pessoas, o português é língua oficial no Brasil, em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, Timor-Leste e São Tomé e Príncipe, todos integrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP.

O dia 10 de junho foi escolhido por ser a data da morte do poeta português Luís de Camões (1524-1580). Um dos personagens de “Os Lusíadas” (1572), a epopeia em que Camões relata feitos dos navegadores lusitanos, é o cético Velho de Restelo, autor de uma crítica relacionável à feita por Mia Couto 420 anos depois: “A que novos desastres determinas / De levar estes reinos e esta gente? / Que perigos, que mortes lhe destinas / Debaixo dalgum nome preeminente? / Que promessas de reinos e de minas / D’ouro, que lhe farás tão facilmente? / Que famas lhe prometerás? Que histórias? / Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?”

Um exemplo literário mais recente, brasileiro, também crítico e tão digno de celebração quanto os anteriores, é “Um defeito de cor” (2006), romance de Ana Maria Gonçalves vencedor do prêmio Casa de las Américas. O livro conta a saga de Kehinde, mulher negra que, aos oito anos, é sequestrada no Reino do Daomé (hoje Benin) e trazida para ser escravizada na Ilha de Itaparica, na Bahia. “Naquele momento, e durante toda a vida, tive que lidar com duas sensações bastante ruins, a de não pertencer a lugar algum e o medo de me unir a alguém que depois partiria por um motivo qualquer”, diz a certa altura a protagonista do livro.

Há datas comemorativas semelhantes à de 10 de junho, como 5 de maio e 5 de novembro. A primeira, o Dia Mundial da Língua Portuguesa, foi instituída pela CPLP em 2009; a segunda, o Dia Nacional da Língua Portuguesa, é uma comemoração brasileira estabelecida em 2006, escolhida para essa data em homenagem ao nascimento de Rui Barbosa (1849-1923).

Das línguas gerais ao português

A língua de Mia Couto, Camões e Ana Maria Gonçalves, diferentemente do que se costuma pensar, não deriva diretamente do latim, mas do galego – este, sim, proveniente do latim.

Outro fato que pode surpreender a muitos é que, no Brasil, o português não se disseminou de forma simples a partir do início da colonização, como explica o tradutor e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Caetano Galindo no livro “Latim em pó – um passeio pela formação do nosso português” (2022). Na verdade, o português “correu, muitas vezes e durante muito tempo, o risco de desaparecer, suplantado por línguas nossas, que, ao menos até o século XVIII, eram, em muitas situações, as mais usadas nas cidades do Norte e na vasta região dominada por São Paulo, tanto entre brancos quanto entre não brancos”.

Essas “línguas nossas” eram as chamadas línguas gerais, que consistiam basicamente em “uma versão de uma língua tupi, apropriada pelo aparato colonial/catequético europeu e com seu uso incentivado por ele”, especifica Galindo.

Houve “ao menos” a língua geral derivada do tupiniquim de São Vicente, que veio a ser conhecida como língua geral do sul, da costa, ou paulista e se generalizou no litoral e sertão brasileiros até poucas décadas antes da Independência; a língua geral que veio a ser conhecida como nheengatu, derivada do tupinambá paraense, usada “com algum vigor até o século XIX” e hoje uma das línguas oficiais do município de São Gabriel da Cachoeira (AM); e a Língua Geral da Mina, surgida nos anos 1700 entre populações escravizadas.

Marcado por séculos por essas línguas, o Brasil só começaria a se tornar um país unificado que fala português um ano após a declaração da Independência, em 1823, “quando o Estado do Grão-Pará e Maranhão, área que, grosso modo, compreendia a nossa atual região Norte e onde ainda se falava muito nheengatu, decide se unir aos independentistas do Sul”.

O nheengatu teria sobrevida. Seu número de falantes só diminuiria com massacres na revolta da Cabanagem, entre 1835 e 1840, e com o alistamento forçado para a guerra do Paraguai, três décadas mais tarde. Migrantes do Nordeste que repovoaram o Norte, em parte como mão de obra para o ciclo da borracha, ampliaram o uso do português na região. “A Amazônia só passaria a ser terra fundamentalmente lusófona lá pelos anos 1920”, pontua Galindo.

Para quem gosta de saber mais sobre origem e evolução das palavras e das línguas, o livro do professor da UFPR é repleto de explicações etimológicas acessíveis para leigos. Coerente com essa abordagem, o autor defende a democratização do português, a ideia de que “as regras de uso de uma língua não podem ser mais determinantes do que o coletivo dos seus usuários”. Portanto, “se uma maioria expressiva de falantes se comporta de forma contrária ao que a regra prevê, isso aponta para a necessidade, sim, de alterar a regra e fazer com que ela expresse mais adequadamente os usos da língua na sociedade”.

 Português para estrangeiros

Entre os projetos de lei relativos ao tema a tramitarem no Legislativo goiano em anos recentes, um dos destaques é o de Cristiano Galindo (Solidariedade), dispondo sobre o direito à educação de qualidade da língua portuguesa e democratização ao acesso à saúde para crianças e adolescentes brasileiras, descendentes de refugiados, apátridas e imigrantes (no 926/23). A matéria teve relatório favorável na Comissão de Educação e segue em trâmite.

Para garantir os dois direitos mencionados, devem ser considerados, “dentre outros aspectos, a situação de vulnerabilidade social e dificuldade de integração socioeconômica de crianças e adolescentes descendentes de refugiados, migrantes e apátridas”.

A ratificação desses direitos se daria, conforme a proposição, com aulas, mentorias, oficinas, atividades lúdicas, rodas de conversa e atendimento individualizado. Podem ser disponibilizados profissionais das áreas da língua portuguesa, pedagogia e serviço social, bem como outros, a critério do Poder Executivo, prevê Galindo na matéria.

O deputado sublinha o potencial de inserção econômica e cultural do projeto. Economicamente, ele antevê “uma maior capacidade de inserção no mercado de trabalho, de modo a ensejar a procura por empregos que permitam a independência financeira, pessoal e familiar”; culturalmente, sustenta que a interação maior promovida pelo domínio da língua pode “minimizar o choque de culturas como um todo na sociedade” e gerar “uma compreensão melhor do ambiente a que os refugiados chegam e [no qual] seus filhos nascem e crescem, sendo acolhidos pelo país em que nasceram”.

O projeto de lei no 2167/19, da ex-deputada Lêda Borges (PSDB), buscou introduzir a matéria “redação” na rede pública de ensino goiana a partir do 3º ano do Ensino Fundamental I. A proposta se justifica, segundo a parlamentar, porque a língua portuguesa “possui um número enorme de regras”, é cada vez mais demandada em concursos públicos como matéria obrigatória para “praticamente todos os cargos” e valorizada pelas empresas.

 Uso de linguagem neutra ou inclusiva motiva projetos

Cairo Salim (PSD), por seu turno, pretende garantir, com a matéria no 5045/20, “o aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta e orientações legais de ensino, como as estabelecidas pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e da gramática elaborada em consonância com o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Isso se aplicaria a toda rede de educação básica, superior, profissional, científica e tecnológica, pública e privada, em Goiás, bem como a provas de exames de ingresso no ensino superior e concursos públicos para acesso aos cargos e funções públicas no Estado.

O art. 2º da proposta, em particular, proíbe expressamente a chamada “linguagem neutra” na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas, assim como em editais de concursos públicos. Arquivado ao final da última Legislatura, a matéria foi desarquivada pelo deputado no primeiro ano da atual, em 2023.

Preocupação afim demonstrou Amauri Ribeiro (UB) com o projeto no 8546/21, que no art. 1º veda “no âmbito do Estado de Goiás a utilização de pronomes de tratamento neutros, primando pelo emprego e ensino correto da língua portuguesa”. Na justificativa da proposição, o parlamentar critica a troca do uso do plural masculino por “‘x’, ‘@’ ou outro símbolo que supostamente afaste a marcação binária de sexo masculino ou feminino”, dizendo se tratar de “uma tentativa forçada de modificação da Língua Portuguesa, capitaneada por alguns movimentos sociais, com a falaciosa bandeira de democratização da linguagem”.

Desdobrando o argumento, Ribeiro reverbera a alegação da linguista argentina Alicia María Zorrilla de que “tal modelo não possui qualquer apoio científico, carecendo de fundamento linguístico, o que o coloca fora do sistema gramatical” e sublinha que a utilização do gênero masculino para generalizar um grupo de pessoas advém, segundo outros linguistas, do latim, não caracterizando, assim, “uma marcação preconceituosa”. Os deputados ainda não votaram a matéria. 

Projetos de teor semelhante tramitam em inúmeras casas legislativas no Brasil. Em 2022, a chamada “linguagem inclusiva” foi proibida nas escolas de todos os níveis em Buenos Aires. Na França, o Senado aprovou, em novembro de 2023, a proibição do uso dessa linguagem em documentos oficiais.

Thiago Momm
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