Marco civilizatório

Durante a abertura do 1º Congresso de Direito Constitucional da Alego, a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge destacou os méritos da Constituição de 1988 e refletiu sobre os desafios que a norma enfrenta no século 21.
A Assembleia Legislativa do Estado de Goiás (Alego) sedia, ao longo desta sexta-feira, 22, o seu 1º Congresso de Direito Constitucional, o qual tem como tema "Democracia e Soberania". Dividida em seis painéis, a programação começou com uma palestra ministrada pela ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge, que falou sobre os desafios constitucionais e econômicos para o Brasil no século 21.
Ao se pronunciar durante a abertura do evento, o presidente da Casa, Bruno Peixoto (UB), destacou a necessidade do esforço conjunto na garantia dos direitos previstos pela Constituição. “Temos que entender o que estamos assistindo no nosso dia a dia. Não podemos permitir que a falta de conhecimento nos leve a momentos difíceis em relação à nossa soberania”, pontuou, acrescentando que “a Constituição deve estar no peito de cada cidadão”.
Idealizador do congresso, o subprocurador-geral da Alego, Iure de Castro, agradeceu ao presidente da Casa, Bruno Peixoto (UB), por “atuar de mãos dadas” com a ideia do evento. Além disso, por ter “esse desejo de buscar, por meio da educação, a transformação que a sociedade precisa”. Após a abertura do evento, a ministra do STF, Cármen Lúcia, recebeu o Título de Cidadania Goiana das mãos do presidente da Casa, deputado Bruno Peixoto.
No início da sua fala, Raquel Dodge ressaltou ter nascido em Morrinhos, em Goiás, e sustentou que o povo do Estado “tem muito a oferecer”, sendo uma prova disso o próprio encontro desta sexta. “É um congresso inovador no âmbito do Legislativo estadual e nacional”, declarou. E completou: “São poucos os poderes legislativos interessados em promover o debate, a contrastar ideias em um ambiente como esse, de educação, pesquisa e participação popular”.
Lei Maior
Dodge, que ocupou a Procuradoria-Geral da República entre 2017 e 2019, fez uma ampla defesa da Constituição Federal de 1988. Ao destacar o mérito na consolidação da democracia e na ampliação da cidadania, ela definiu a Carta Magna como “um marco civilizatório no Brasil” que contém “um conjunto de normas imutáveis”.
A Constituição, prosseguiu Raquel, “protege a livre iniciativa, proíbe o enriquecimento ilícito, presume a inocência de cada um de nós. Assegura a todos oportunidades iguais quando exige, por exemplo, processo licitatório, e assegura mecanismos para resolver conflitos com o devido processo legal e a ampla defesa”.
A ex-procuradora-geral da República ponderou que, ainda que os brasileiros eventualmente discordem dos preceitos da Lei Maior e veja nela empecilhos, eles têm nela “um porto seguro para resolver os conflitos da vida social”.
Seria, segundo Dodge, esse conjunto de normas que manteria o Brasil, nas últimas décadas, “consistentemente” como um dos dez países mais ricos do mundo e com um alto índice de desenvolvimento humano (IDH), embora ainda com o desafio da melhora de distribuição de renda.
Em relação ao Brasil da década de 1980, ressaltou a jurista, o Brasil atual é muito melhor: “Essa Constituição gerou efeitos concretos muito positivos que precisamos exaltar”.
Os críticos que argumentam que a Carta Magna atual seria muito extensa e detalhista e, por isso, necessita de reformas, desejam mudanças “justamente em pontos que não preservariam a igualdade de oportunidades entre nós”, refletiu Raquel. Segundo ela, isso daria margem “a um regime mais autocrático”.
A Constituição Federal, complementou, prevê seu próprio processo de alteração, o qual permite tanto a “correção de erros e vícios que muitas cláusulas de fato contêm” como a “adaptação ao novo e às transformações do nosso tempo”, a exemplo das relacionadas à tecnologia. Ao mesmo tempo, prosseguiu Dodge, são as normas constitucionais “e leis aprovadas por um parlamento como este [a Alego]” que reduzem as incertezas causadas pela inovação, sendo “a fonte de segurança jurídica que todos nós precisamos”.
Na opinião da jurista, os países mais ricos seriam justamente aqueles que “conseguem unir segurança jurídica, flexibilidade regulatória e um projeto claro de prioridades para o país”.
Garantias e desafios
Em geral, postulou Dodge, não percebemos com clareza a importância de Constituições como a brasileira para o desenvolvimento dos países. Ao prever investimento público e uma estrutura normativa daquilo que o Brasil decidiu priorizar, a Carta Magna contribui para manter sucessos como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), por trás do crescimento da produção rural.
A Constituição brasileira, afirmou a palestrante, já traz inovação e prosperidade, e para que isso ocorra ainda mais ante “os enormes desafios climáticos, sociais e internacionais deste primeiro quarto de século 21” é preciso ver a ela “não apenas como um estatuto de direitos e deveres, mas como um motor de inovação e desenvolvimento” com um conjunto de princípios que inclui a preservação da floresta e do clima.
É importante, ponderou, que esses princípios não sejam “instrumento de opressão seletiva de um grupo social sobre outro” nem distribuídos de modo desigual entre gerações. A respeito, Dodge citou o caso de lei sobre proteção climática que o Parlamento alemão elaborou por mais de uma década, mas foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte do país, porque previa um “sacrifício muito leve para a atual geração e muito pesado para as futuras”.
Raquel Dodge listou cinco desafios que vê em relação à Constituição atual: federalismo, porque as agendas dos entes federativos “às vezes colidem”; segurança jurídica, afetada por “instabilidade normativa e leis defeituosas, insuficientes e discriminatórias”, assim como por políticas públicas deficientes e corrupção; direitos fundamentais, que precisam alcançar a todos; sustentabilidade, afetada, por exemplo, pela falta de mecanismos de financiamento climático adequado; e equidade social, responsável por demandas como maior garantia de oportunidades e segurança para empreender.
A jurista voltou a ressaltar que o Brasil é um dos países mais ricos do mundo, mas não é considerado desenvolvido porque “para isso falta uma menor desigualdade. Uma maior equidade”, concluiu, “aumentaria a confiança entre nós”.