Dia Mundial do Livro

Hoje, 23 de abril, é celebrado em todo o mundo o Dia Mundial do Livro e do Direito do Autor. Instituída pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a data coincide com o aniversário de morte de dois dos mais importantes autores de todos os tempos: William Shakespeare e Miguel de Cervantes.
Mas qual o sentido de se comemorar o Dia do Livro no Brasil, um País em que se lê tão pouco? Segundo a 5ª edição da pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil", realizada no ano passado, pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural, o brasileiro lê, em média, cinco livros por ano, sendo aproximadamente 2,4 livros lidos apenas em parte e 2,5, lidos do começo ao fim. O levantamento também apontou que o Brasil perdeu, nos últimos quatro anos, mais de 4,6 milhões de leitores. De 2015 para 2019, a porcentagem de leitores no Brasil caiu de 56% para 52%. Já os não leitores, ou seja, brasileiros com mais de 5 anos que não leram nenhum livro, nem mesmo em parte, nos últimos três meses, representam 48% da população, o equivalente a cerca de 93 milhões de pessoas. Só para efeito de comparação, os espanhóis leem, em média, 10 livros a cada ano e os franceses, completam, a cada 12 meses, a leitura de 21 obras.
A fragilidade nos hábitos de leitura acarreta muitas consequências, principalmente individuais, mas também coletivas. Resumidamente, especialistas listam que a falta de leitura provoca falhas na comunicação, equívocos na interpretação de textos, vocabulário insuficiente, improdutividade e dificuldade em escrever. Também produz indivíduos menos críticos e alguns estudos já relacionam hábito de leitura frequente à média salarial mais alta. Nem precisa ser um estudioso do assunto para se concluir o inverso: a falta de leitura reflete num desempenho escolar mais baixo e, mais à frente, na dificuldade em romper o ciclo de pobreza. Também é um dos entraves ao desenvolvimento do País.
Diante desse cenário, a pergunta é: como fazer o brasileiro ler mais? Para a jornalista, escritora e editora, Larissa Mundim, a resposta não é fácil, mas já há um caminho estabelecido. “Essa é uma pergunta que vale um milhão de dólares. Para o brasileiro ler, mais é necessário um conjunto de ações de política pública executadas de maneira contínua. (…) A fórmula está pronta e descrita em um documento público, desenvolvido ao longo de 13 anos, o Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL), que embasa a Política Nacional da Leitura e da Escrita (PNLE), já sancionada, no entanto, sem implantação”.
A escritora sabe o que está falando, já que conhece profundamente os vários elos da cadeia produtiva do livro. Leitora assídua na infância, acabou tomando tanto gosto pelos livros que se tornou escritora, anos depois. E para lançar o primeiro livro, se tornou também editora. Antes disso teve uma breve passagem pela escrita poética, ainda na adolescência e, ao ingressar no curso de jornalismo na Universidade Federal de Goiás fez um estágio no Centro Editorial e Gráfico (Cegraf) da UFG, experiência que proporcionou a descoberta do processo editorial da produção gráfica.
E se por um lado, o brasileiro lê pouco, por outro, faltam oportunidades para novos escritores lançarem suas obras, principalmente se estiverem fora do perfil de autores prestigiados pelas grandes editoras. Esse fato prejudica a diversidade na literatura, o que também é apontado por alguns estudiosos, como um dos motivos do distanciamento de muitos da leitura, já que parte do público não se vê representado nos livros. E nesse contexto, Larissa Mundim decidiu "remar contra a maré". É mulher, goiana, ou seja, está fora do eixo Rio-São Paulo, escritora e editora independente. Com a NegaLilu, trava batalhas constantes para contribuir na transformação dessa realidade. Por todos esses motivos, nesse Dia Mundial do Livro e dos Direitos do Autor, a convidamos para um bate-papo sobre várias questões que permeiam esse universo.
Conte como você se tornou escritora. E editora? O que veio primeiro ou as duas vieram juntas?
A leitura na infância me aproximou da escrita na adolescência. Comecei escrevendo poemas e, ao ingressar na universidade, deixei de lado as experimentações poéticas. Cursando jornalismo na UFG, tive a oportunidade de ser estagiária no Cegraf – Centro Editorial e Gráfico e de me aproximar do processo editorial da produção gráfica de maneira muito especial. Hoje avalio essas duas experiências como fundamentais para chegar aonde estou agora. Dediquei um ano à escrita do romance ficcional “Sem Palavras”, que tem coautoria de Valentina Prado, e a publicação dele se tornou uma obsessão pra mim. Publicar o primeiro livro não é uma missão muito fácil por diversos motivos e, do ponto de vista financeiro, só foi possível por meio da Lei Goyazes, um importante marco legal de fomento à Cultura e que precisa ser retomado pelo poder público estadual. A NegaLilu Editora surgiu então por autopublicação, a partir do lançamento de “Sem Palavras”, o título número 1 de nosso catálogo. A ideia inicial era produzir livros lindos escritos por autoras e autores de Goiás, mas em seguida entendi que produzir livros lindos era absolutamente insuficiente.
Como é ser mulher nesse mercado (principalmente como editora, já que me parece que não é muito comum ter mulheres nessa função)?
Verdade. A maioria das editoras do mercado editorial convencional é dirigida por homens. No campo da publicação independente, as mulheres estão bem mais representadas: mulheres cis e trans, brancas, negras e indígenas também. Editar é um exercício de poder. Quando uma mulher define o que publicar, quem publicar e como publicar, o mercado editorial ganha em diversidade.
Há quanto tempo a NegaLilu está em atuação e quantos títulos já foram lançados? Quais os perfis dessas publicações?
A NegaLilu Editora atua desde 2013, de Goiás para o Brasil todo. Até abril de 2021, temos 31 títulos publicados. O catálogo vem sendo formado a partir da publicação de poesia, ficção e não-ficção produzida em Goiás. Um desejo da editora é lançar novas autoras e novos autores, fortalecer a literatura contemporânea daqui. Por enquanto, estamos mantendo este recorte territorial, por desejar que a invisibilidade da produção gráfica e literária do estado seja amenizada, por desejar que o trabalho de goianas e goianos circule mais amplamente por todo o Brasil, chegando inclusive no norte e no nordeste.
A editora tem outros projetos desenvolvidos paralelamente às publicações?
Sim, emprestei à editora uma característica que é minha: ser punk, ou seja, inventar modos próprios de operar, circulando de ponta a ponta nas cadeias produtivas. Sendo assim, a NegaLilu atua tanto apoiando ações de estímulo à leitura e formação de leitores quanto pensa alternativas de circulação da produção gráfica e literária independente. No meio disso tudo, a editora incentiva quem está começando por meio das antologias da coleção e/ou, realiza a feira e-cêntrica de publicações independentes e o projeto Leitura & Resistência, mantém a livraria O Jardim, para a venda livros especiais e zines, além de apoiar a gestão de bibliotecas públicas de Goiás, por meio da Rede Madalena Caramuru, uma parceria com a Casa da Cultura Digital.
Como a NegaLilu tem lidado com a pandemia? Qual foi o impacto?
Primeiramente, foi grande o impacto nas vendas feitas pela própria editora e pelas livrarias parceiras. Para manter o contato aproximado com o nosso público, na ausência das feiras literárias, buscamos fortalecer nossos canais de comunicação e e-commerce. Para nossa surpresa, nesse período de isolamento e distanciamento social, as pessoas resolveram tirar seus escritos da gaveta e publicar. Isso tem criado situações de prestação de serviço importantes para a sustentabilidade da editora.
Fale um pouco sobre o mercado editorial em Goiás. Como ele se posiciona no cenário nacional?
Assim como em outros estados, o trabalho poético e literário de Goiás é vibrante e qualificado. Temos muitos poetas jovens e talentosos por aqui. Além da NegaLilu, têm surgido outras editoras interessadas na alta qualidade criativa, o que não era muito comum antes de iniciarmos nossos trabalhos, em 2013. O desafio dessa produção é a circulação nacional e a comercialização em escala. E isso não se resolve com a contratação de uma distribuidora, por exemplo. É resultado de trabalho de base para a qualificação do trabalho de autoras e de autores que, amparados pelas editoras, ou autopublicados, possam dialogar com leitoras e leitores de outros estados, possam fortalecer suas agendas em eventos e ganhar prêmios, que são excelente vitrine para a venda. Nesse sentido, ainda temos um longo caminho a percorrer, mas já não estamos mais tão paralisados como estávamos há cerca de 10 anos. A julgar pela movimentação das livrarias que surgiram nos últimos cinco anos, em Goiânia e no interior, eu poderia dizer que o mercado editorial de Goiás viveu momentos de bastante fôlego antes do início da pandemia. No momento estamos todos nos reinventando.
Fale também sobre o mercado independente... o que é, como funciona, que caminhos tem trilhado?
O mercado editorial independente é aquele que atua de maneira independente do sistema instalado no século 19 e ainda vigente. Sinais dessa obsolescência podem ter grande responsabilidade na crise hoje vivenciada em toda a cadeia produtiva do livro. Essa independência se manifesta mais claramente na produção de alta qualidade criativa, na representatividade de grupos diversos (mulheres, negros, indígenas, LGBTQIs, pessoas com deficiência, idosos também), na revisão de processos produtivos e na busca por circulação alternativa da produção. A NegaLilu é originária deste território e, por ser uma editora independente, repensa modos de operar, recria a lógica do negócio também, favorecendo a propriedade intelectual e dialogando com o leitor como agente político.
Como a pandemia impactou esse universo da leitura, dos leitores e do mercado editorial?
As pesquisas do mercado nos mostram que houve avanço no fortalecimento da cibercultura, um caminho sem volta. As pessoas estão mais adeptas ao e-commerce. Se isso favoreceu o setor de alimentos, durante a pandemia, favoreceu também o mercado editorial. As editoras relatam que é maior a venda de e-books agora do que em período anterior. Um ano após o início do isolamento social devem chegar pra gente dados mais consistentes. Aparentemente, esse tempo que estamos vivendo estimulou a escrita (como eu disse anteriormente) e a leitura, um par indefectível.
Em 2019 houve um movimento de retorno das pequenas livrarias de rua se contrapondo ao fechamento de grandes lojas. Esse movimento continua?
Não há movimentação expansiva por parte dos livreiros, no momento. As livrarias estão tentando não fechar as portas, no momento. Mas nos últimos cinco anos, especialmente em Goiás, vivenciamos algo extraordinário com a abertura da Livraria Palavrear e a Pomar Livraria em Goiânia, seguida da abertura da Avoar Livros, em Pirenópolis, e da Leodegária Livraria na Cidade de Goiás. Em março de 2019, a NegaLilu também abriu seu ponto de vendas, O Jardim, uma vitrine para a produção gráfica-literária do Brasil inteiro.
A proposta de reforma tributária que está no Congresso propõe o fim da isenção de impostos para livros. Como você avalia essa proposta?
Como toda editora e livreira, não apoio esta iniciativa. Na base, a argumentação do ministro Paulo Guedes é frágil e não se confirma como coerente. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada em setembro de 2020, não confirma que livro é artigo de luxo que atende à população rica, porque o maior número de leitores está nas classes C, D e E, proporcionalmente. Com a taxação de 12%, os custos de produção deverão impactar o preço de capa do livro ampliando processos de exclusão e levando à falência de livreiros e das pequenas editoras, especialmente as independentes que ampliam a bibliodiversidade. O Governo federal fala em doação de livros para a população empobrecida, livros selecionados para reforçar um projeto político patriarcal, homofóbico e racista.
Você concorda com que o livro é um “produto” caro no Brasil?
O custo médio do livro tem se alterado muito pouco ao longo dos anos, também segundo a pesquisa Retratos da Leitura do Brasil, inclusive com queda no preço de capa desde 2018. Considerando a longa cadeia produtiva que envolve profissionais diversos, a durabilidade como produto e a possibilidade de uso coletivo enquanto objeto, em comparação a outros produtos de consumo menos durável e com menor valor simbólico agregado, posso afirmar que o livro não é caro. Além do mais, o livro é um dos suportes para a leitura, uma das atividades mais estratégicas para a construção de uma sociedade crítica – e isso não tem preço.
A média de leitura dos brasileiros é de 5 livros por ano, um índice baixo. Além disso, a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil mostrou que o Brasil perdeu, nos últimos quatro anos, mais de 4,6 milhões de leitores. De 2015 para 2019, a porcentagem de leitores no Brasil caiu de 56% para 52%. Como fazer o brasileiro ler mais?
Esta é uma pergunta que vale um milhão de dólares. Para o brasileiro ler mais é necessário um conjunto de ações de política pública executadas de maneira contínua. Na minha visão, a população de leitores pode crescer se houver investimento nas bibliotecas públicas, na formação de mediadores de leitura, nas estratégias em conjunto com a Escola, fomento à formação e publicação de novos autores por meio de editais, estímulo à economia do livro (e não a taxação do setor). A fórmula está pronta e descrita em um documento público, desenvolvido ao longo de 13 anos, o Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL), que embase a Política Nacional da Leitura e da Escrita (PNLE), já sancionada, no entanto, sem implantação.
Livro físico X livro digital. Eles podem “caminhar” juntos ou um outro vai se sobressair?
Acredito que haja espaço e mercado para o suporte físico e o digital. A cultura está se transformando rapidamente neste início de século, com o fortalecimento da virtualidade, mas enquanto a humanidade mantiver relações presenciais e afetivas o livro físico terá lugar em nossos corações. A nossa batalha é que seja no coração de todos. Porque a leitura é um direito social.
Na sua avaliação, há o que se comemorar nessa data?
Há de se comemorar a vida.