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Emoção em verso

18 de Outubro de 2024 às 16:00
Emoção em verso
Outubro é o mês dedicado à celebração dos poetas e da poesia. Goiás e o Brasil possuem grandes expoentes desse gênero literário. Conheça alguns dos grandes versos de escritores do passado e do presente.

Onze dias antes do Dia Nacional da Poesia – que desde 2015 é celebrado oficialmente em 31 de outubro, em homenagem à data de nascimento de Carlos Drummond de Andrade –, comemora-se, neste dia 20, o Dia do Poeta.

Trata-se, neste caso, de data extraoficial, referente à reunião, em 20 de outubro de 1976, na casa de Menotti Del Picchia, o pintor, romancista, jornalista e advogado, que havia sido um dos expoentes do movimento modernista meio século antes. Na reunião dos anos 1970, foi fundado o Movimento Poético Nacional.

Dos vincos faciais da quase centenária Cora Coralina (1889-1985) ao copioso bigode do morto precocemente Paulo Leminski (1944-1989) e o cigarro boêmio de Vinícius de Morais (1913-1980), não faltam poetas nacionais para serem lembrados neste dia 20.

Escreve a goiana Cora Coralina em “Todas as vidas”:

Vive dentro de mim

uma cabocla velha

de mau-olhado,

acocorada ao pé do borralho,

olhando para o fogo.

Benze quebranto.

Bota feitiço...

Ogum.

Orixá.

Macumba, terreiro.

Ogã, pai de santo...

 

Vive dentro de mim

a lavadeira do Rio Vermelho.

Seu cheiro gostoso

d'água e sabão.

Rodilha de pano.

Trouxa de roupa,

pedra de anil.

Sua coroa verde de são-caetano.

 

Vive dentro de mim

a mulher cozinheira.

Pimenta e cebola.

Quitute benfeito.

Panela de barro.

Taipa de lenha.

Cozinha antiga

toda pretinha.

Bem cacheada de picumã.

Pedra pontuda.

Cumbuco de coco.

Pisando alho-sal.

 

Vive dentro de mim

a mulher do povo.

Bem proletária.

Bem linguaruda,

desabusada, sem preconceitos,

de casca-grossa,

de chinelinha,

e filharada.

 

Vive dentro de mim

a mulher roceira.

- Enxerto da terra,

meio casmurra.

Trabalhadeira.

Madrugadeira.

Analfabeta.

De pé no chão.

Bem parideira.

Bem criadeira.

Seus doze filhos

Seus vinte netos.

 

Vive dentro de mim

a mulher da vida.

Minha irmãzinha...

Fingindo alegre seu triste fado.

 

Todas as vidas dentro de mim:

Na minha vida -

a vida mera das obscuras.

 

Paulo Leminski era mestre do haicai, a forma curta de poesia japonesa surgida no século 17. O curitibano tinha gosto pelo reflexivo, pelo espirituoso, pelo enigmático:

amar é um elo

entre o azul

e o amarelo

 

Ou:

viver é super difícil

o mais fundo

está sempre na superfície

 

Também escreveu famosamente que “haja hoje para tanto ontem”, e deixou como legado poemas como “Bem no fundo”:

No fundo, no fundo,

bem lá no fundo,

a gente gostaria

de ver nossos problemas

resolvidos por decreto

 

a partir desta data,

aquela mágoa sem remédio

é considerada nula

e sobre ela — silêncio perpétuo

 

extinto por lei todo o remorso,

maldito seja quem olhar pra trás,

lá pra trás não há nada,

e nada mais

 

mas problemas não se resolvem,

problemas têm família grande,

e aos domingos

saem todos a passear

o problema, sua senhora

e outros pequenos probleminhas.

 

Vinícius de Morais, que dispensa apostos, deixou milhares de versos tão musicais quanto “De repente não mais que de repente / Fez-se de triste o que se fez amante / E de sozinho o que se fez contente” (trecho de “Soneto de separação”).

O escritor Ruy Castro recentemente disse, em crônica, invejar o diplomata brasileiro do século XIX Francisco Otaviano pelos versos de “Ilusões da Vida”:

Quem passou pela vida em branca nuvem

E em plácido repouso adormeceu,

Quem não sentiu o frio da desgraça,

Quem passou pela vida e não sofreu,

Foi espectro de homem, e não homem,

Só passou pela vida, não viveu.

 

Goiás tem, é claro, muito mais que Cora Coralina na poesia. No início de “Composição”, Gilberto Mendonça Teles versifica que:

O amor põe suas mágicas

em funcionamento.

O amor compõe, propõe, supõe,

indispõe e interpõe,

sua adaga entre o ser

e o vazio do vício

(a ser-viço do amor).

(...)

 

Ganhadora do troféu Jaburu em 2020, Lêda Selma fala, nos primeiros versos de “Goiânia Morena”, da:

Goiânia morena

de corpo esguio

e ancas largas,

de manhãs soltas ao vento,

de tardes acaloradas

de ventre escancarando

a prenhez de sol e flores

(...)

 

Da geração goiana mais nova, Lucão aposta em poemas curtos de tom tão poético quanto aforístico:  

⁠Viver é uma eterna despedida

do que somos agora

para o que vamos ser

em seguida.

 

O estilo de Lucão lembra o do paulista Zack Magiezi, que poetiza, por exemplo, que:

maturidade

é procurar

profundidade

antes de mergulhar de cabeça

 

Um representante da vertente mais irônica da poesia entre os escritores é Gregório Duviviver, autor, entre outros, do livro “Sonetos de amor e sacanagem”. Abaixo o “Soneto do confinamento”:

Passamos muitos meses em clausura,

enjaulados tal qual leões ao léu,

cultivando camadas de gordura,

sacolas besuntadas de álcool gel.

 

Lembro do cheiro eterno de fritura

e Pinho Sol Limão — sabor motel.

A vida pode ser bastante dura

num apê sem nenhum acesso ao céu.

 

Passamos o ano todo na faxina

esperando surgir a tal vacina

lavando compras com sabão na pia.

 

Se eu não tivesse uma família enorme,

eu teria bebido Lysoform.

O paraíso, Sartre, é a companhia

 

Há também, é claro, as poetisas da nova geração, como Luiza Romão, vencedora do prêmio Jabuti de 2022 com “Também guardamos pedras aqui”. Em outro de seus livros, “Sangria”, seu poema “américa” diz:

uma mulher não é um território

mesmo assim

lhe plantam bandeiras

 

uma mulher não é um souvenir

mesmo assim

lhe colam etiquetas

 

mais que nuvem

menos que pedra

uma mulher não é uma estrada

 

não lhe penetre as cavidades

com a fúria

de um minerador hispânico

 

o ouro que lhe brota da tez

é antes oferenda

que moeda

 

uma mulher descende do sol

ainda que

forçada à sombra

Thiago Momm
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