Ícone alego digital Ícone alego digital

Art déco: desafios do legado

22 de Agosto de 2025 às 13:23
Art déco: desafios do legado

No fechamento da série especial que comemora o centenário do estilo artístico adotado nos primeiros prédios da capital, a Agência de Notícias aponta as dificuldades na preservação do patrimônio e as iniciativas para protegê-lo.  

O simbolismo e beleza de cada um dos bens abordados no segundo, terceiro e quarto textos da série do Portal da Alego sobre o centenário do art déco são inquestionáveis. O espaço urbano carrega traços da personalidade da capital que transportam à época de sua fundação, quando o estilo foi escolhido para a construção dos primeiros prédios. Assim, a arquitetura funciona como um elemento de conexão entre o que a cidade queria ser, o que ela foi, o que é e o que deseja se tornar. 

É essencial, entretanto, que essas edificações estejam inseridas no cotidiano da sociedade que abrigam. A história não se escreve apenas com concreto armado, simetria geométrica e ideais de modernidade. Ela é feita de pessoas. Após um passeio por todo o acervo arquitetônico e urbanístico de Goiânia tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o especial da Agência de Notícias Yocihar Maeda se encerra com uma reflexão: como unir o cuidado ao passado, a valorização do presente e a preservação do futuro do legado art déco

Espaço urbano e identidade 

O sentimento de pertencer a um espaço urbano singular, de reconhecer-se como um elemento essencial dele ao invés de como um agregado momentâneo, traz uma perspectiva única ao habitante. Sob essa ótica, o indivíduo tende a voltar a sua atenção para a preservação dos atributos que conferem singularidade ao lugar onde ele mora. E é precisamente na harmonia entre o histórico e o contemporâneo, na busca pela preservação da herança coletiva, que essa simbiose entre pessoa e ambiente compartilhado se revela crucial e serve como um catalisador para o apreço pelo legado e identidade comuns.

Na opinião do doutor em Planejamento Urbano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fred Le Blue Assis, o principal desafio para alcançar essa realidade é o predomínio de uma perspectiva baseada apenas no olhar do que chama de “arquitetura do patrimônio oficial”. “A concepção modernista do planejamento urbano era pretensiosa em acreditar que o novo espaço, criado em uma página no papel do arquiteto, conseguiria criar sozinho a ancoragem poético-espacial que desenvolvemos com nosso habitat natural e social”, explica. 

A noção de patrimônio precisa, segundo ele, ganhar novos contornos para que não acabe restrita a um reconhecimento oficial vazio de significado prático. Assis complementa: “O ocultamento desses lugares de memória com fachadas de lojas bufônicas revela, na verdade, não somente interesse comercial desmedido, mas o desinteresse público, em um processo de “esquecimento esclarecido” como prática social de apagamento da identidade”.

Ao caminhar no Centro de Goiânia, é possível observar prédios com características do art déco escondidos pela poluição visual que predomina na região (Crédito: Carlos Costa)

Para o presidente da Comissão de Cultura, Esporte e Lazer da Assembleia Legislativa de Goiás, deputado Mauro Rubem (PT), o art déco ligou a capital aos melhores espaços estéticos e arquitetônicos e a princípios que deram início ao processo de modernização e desenvolvimento do Estado. Por isso, afirma que ações ativas e integradas entre os poderes e a sociedade são essenciais para proteger o merecido lugar de destaque dos bens goianienses.

No mesmo sentido, a secretária de Estado da Cultura, Yara Nunes, aponta que todas as esferas do poder público têm papel nessa tarefa do cuidado material, mas também na de educar e envolver a população. “Além disso, é fundamental contar com os meios de comunicação, as escolas e as universidades nesse processo de formação de consciência coletiva. Quando o cidadão compreende a importância histórica e cultural daqueles prédios, passa a vê-los com outros olhos — como parte de sua própria identidade”, analisa. 

Desenvolver esse senso de pertencimento é indispensável para garantir que o patrimônio seja valorizado pelas futuras gerações, reflete Nunes. “Goiânia é uma referência mundial em arquitetura art déco, e isso deve ser motivo de orgulho para todos os goianos. Esse sentimento nasce do conhecimento, da vivência e do diálogo constante entre a cidade e sua história”, conclui.  

Celebrar o centenário art déco é reconhecer a importância desse patrimônio como parte essencial da identidade goiana. É o que defende a presidente da Agência Municipal de Turismo e Eventos (GoiâniaTur), responsável por organizar as celebrações oficiais da Prefeitura, Nárcia Kelly.  

“A população valoriza a arquitetura da cidade, porque acredito que muitos moradores admiram o patrimônio arquitetônico, mesmo que nem sempre conheçam a fundo a sua história ou importância”, considera. Por isso, argumenta: “O nosso papel com [a comemoração do] centenário é justamente fortalecer essa conexão, trazendo à tona narrativas por trás desses prédios, valorizando a memória coletiva e ampliando o acesso e o conhecimento para todo mundo”.

Desafios para além do patrimônio

Os núcleos pioneiros de Goiânia fazem parte do conjunto art déco reconhecido pelo Iphan, assim, naturalmente, o Centro possui imóveis históricos não tombados e que também carregam as características icônicas do estilo. Mas, fatores como o crescimento urbano contínuo e descontrolado e a ausência de manutenção da infraestrutura pública e segurança não apenas desvalorizaram a região como também acabaram escondendo verdadeiras joias da história goianiense atrás de fios e fachadas de lojas. 

A Lei Complementar Municipal nº 326/2020, mais conhecida como Lei das Fachadas, criou o Programa de Ordenação dos Engenhos Publicitários nos Núcleos Urbanos Pioneiros de Goiânia. Com a norma, instituíram-se uma série de regras para a instalação de publicidades nessas regiões da capital. O cumprimento, inclusive com a previsão de multa caso desrespeitado, está valendo desde 2021. Todavia, a realidade nos bairros não corresponde ao ideal desejado pela lei, que “não saiu do papel”. 

A Agência de Notícias conversou com diversos comerciantes quando esteve no Centro e em Campinas e os argumentos foram unânimes: a revitalização é imprescindível, mas a responsabilidade não pode ficar apenas com eles. É um trabalho que exige técnicas específicas e investimentos altos, então é preciso unir forças entre entes públicos e privados, além de oferecer contrapartidas aos que se dedicam à causa. 

Para o representante da Alego na Comissão Organizadora da Comemoração do Centenário do Art Déco criada pela Prefeitura de Goiânia, Virmondes Cruvinel (UB), preservar não é frear o progresso, é dar sentido a ele. É, segundo o parlamentar, compreender o passado que contribuiu para a formação da sociedade goiana como um todo. 

Cruvinel julga ser possível conciliar o desenvolvimento urbano com a preservação da história. “Com planejamento, leis bem-feitas e diálogo. É importante ouvir estudiosos de arquitetura, urbanismo e observar exemplos de outras cidades que conseguiram cuidar do antigo sem travar o novo”, sugere. 

Segundo levantamento realizado pelo jornal O Popular, de 2001 a 2025, entre iniciativas do Executivo e Legislativo municipais, do Estado, do Iphan e da iniciativa privada, foram apresentadas dez propostas diferentes para promover a revitalização do Centro de Goiânia. Nenhuma delas alcançou o objetivo. 

Apesar dos desafios relacionados ao bairro, o urbanista Fred Le Blue Assis defende que a população possui um sentido de pertencimento afetivo à região, a qual passa por uma onda de renascimento cultural. Isso ocorre especialmente em locais como a Rua do Lazer (entre a Avenida Anhanguera e a Rua 3), que foi toda reformada, inclusive com as suas tradicionais luminárias em estilo art déco, e que tem atraído a população com bares e quiosques. Ou então a Rua 8, cujo tráfego de veículos passou a ser proibido nas noites de sexta-feira e sábado a fim de atrair e dar mais segurança aos frequentadores de estabelecimentos na via. 

“Após tantos projetos de revitalização, nos quais o acervo art déco sempre é posto em evidência, sou levado a crer que não dá para dizer que não houve vontade política. Na verdade, o excesso de iniciativas públicas descontinuadas é o principal responsável pelo fracasso em devolver à cidade este bem comum que é o sítio arquitetônico”, opina Assis. 

A proposta da gestão anterior que tramitava na Câmara Municipal para criar o Centraliza, mais um esforço para reviver o Centro, foi retirada de pauta pelo atual prefeito de Goiânia, Sandro Mabel (UB). O chefe do Executivo municipal prometeu enviar novos textos com o mesmo objetivo à Casa de Leis goianiense a partir deste segundo semestre. A Prefeitura adiantou que vai valorizar a gradualidade do plano e sua divisão em diferentes projetos legislativos, com prioridade a novidades passíveis de implementação mais ágil, e a atração de parceiros, inclusive com a concessão de incentivos fiscais, para viabilizar economicamente as ideias.   

Durante o evento “Art Déco em Debate: Encontro entre História, Arquitetura e Identidade Cultural”, realizado no Sesc Centro este mês, Mabel anunciou uma linha de ônibus especial que percorrerá os principais marcos art déco da capital, incluindo o Teatro Goiânia, a Antiga Estação Ferroviária e o Lyceu. O itinerário proposto recebeu a chancela do Iphan, da Universidade Federal de Goiás (UFG), da Universidade Estadual de Goiás (UEG), do Instituto Federal de Goiás (IFG) e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Como etapa seguinte, sem data definida, está prevista a organização de um passeio solene com a participação de autoridades para o lançamento oficial do roteiro.

Caminhos para o futuro 

Ainda que, segundo as fontes consultadas para este texto, a população precise estreitar os seus laços afetivos com o patrimônio art déco, já existem muitas pessoas se dedicando continuamente à tarefa. São cidadãos que se esforçam para deslocar a percepção do patrimônio construído de uma posição passiva e camuflada para uma de maior visibilidade e reconhecimento ativo, provocando a memória afetiva e a interação das pessoas com a cidade.

Realizado anualmente desde 2018, sobrevivendo à pandemia da Covid-19 com edição virtual em 2020 e híbrida em 2021, o Goiânia Art Déco Festival é uma das evidências disso. O evento é sempre no mês de agosto e une os segmentos da cultura, educação e turismo. São promovidas, por exemplo, exposições artísticas, seminários e passeios em grupo. Por iniciativa do deputado Dr. George Morais (PDT), o festival foi incluído no Calendário Cívico, Cultural e Turístico do Estado de Goiás a partir da Lei nº 23.209/2025

Voltado ao público infantil, o livro “Goiânia e o art déco”, da professora e arquiteta Isabel Rodrigues, convida crianças a conhecerem as riquezas de Goiânia. A protagonista Carmen, uma capivara, descobre o estilo artístico enquanto caminhava pela Praça Cívica. Com isso, ela fica curiosa sobre a história por trás dele e convida o leitor a passear pela cidade e conhecer os principais monumentos art déco. Para adquirir um exemplar, entre em contato com a autora aqui.

Uma iniciativa que não é exclusivamente focada no estilo pioneiro na capital, mas também busca estimular esse novo olhar sobre as construções históricas é o Projeto Pigmentos. Trata-se de um perfil no Instagram que utiliza a edição digital de fotografias para criar ilustrações de edifícios e elementos urbanos icônicos de Goiânia, isolando-os de interferências visuais da paisagem e destacando suas paletas de cores únicas.

O projeto não foi concebido como ferramenta educacional, mas acabou por fomentar espontaneamente um diálogo sobre valorização patrimonial conforme o público passou a compartilhar experiências, sugerir locais para serem retratados e demonstrar um renovado interesse e afetividade pela arquitetura goianiense. 

O arquiteto e urbanista Fred Le Blue participa do Goiânia 100 por Centro, um grupo que visa a funcionar como um observatório comunitário de defesa, salvaguarda e zeladoria da região. A ideia é que a comunidade local atue ativamente na reconquista, gestão e democratização total e participativa do patrimônio histórico e arquitetônico do Centro. 

Atualmente, o Grupo de Trabalho Goiânia 2030 está produzindo o documentário de oito partes “8X Centro”. Tendo em vista a educação patrimonial, a produção quer criar um mosaico plural da região a partir de pontos de vista invisibilizados do comportamento espacial local. 

Um caso de sucesso, que mostra como a iniciativa privada pode ser parceira da conservação do patrimônio histórico, é o do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG). A Casa Rosada de Goiânia, como ficou conhecida a sede da entidade, foi totalmente restaurada, inclusive com a recuperação das características art déco originais, a partir de um acordo com o Sicoob UniCentro Br. 

A sede do IHGG foi construída em 1939 e fica em frente à Praça Cívica, entre as Avenidas 82 e 85 (Crédito: Carlos Costa)

A cooperativa de crédito investiu R$ 2,5 milhões na reforma, iniciada em 2021 e entregue em 2022. Por isso, pôde firmar um contrato de cinco anos, renovável, para instalar uma agência dentro do prédio histórico. A instituição financeira paga um aluguel mensal ao instituto.

O IHGG nasceu para reunir e preservar toda a memória da cultura goiana, registrada em documentos históricos de Goiânia e de Goiás, e é simbólico que esteja funcionando dentro de um edifício construído no estilo arquitetônico adotado para os primeiros prédios da capital. 

Em uma situação quase poética em sua representatividade, os ponteiros do relógio dentro da Torre da Avenida Goiás, recuperados completamente em 2021, já não se movem mais. Resta agir para que o centenário do estilo possa marcar a hora da virada quanto ao legado art déco de Goiânia. Antes de finalizar o especial produzido pela Agência de Notícias Yocihar Maeda, recorde o primeiro, segundo, terceiro e quarto textos, publicados às sextas-feiras desde o dia 25 de julho. Esta série usou como fundamento, além dos previamente citados, o livro “Goiânia art déco: acervo arquitetônico e urbanístico – dossiê de tombamento”, da Prefeitura de Goiânia, e elaborado por Celina Manso (2004). 

Agência Assembleia de Notícias - Repórter: Izabella Pavetits
Compartilhar

Nós usamos cookies para melhorar sua experiência de navegação no portal. Ao utilizar você concorda com a política de monitoramento de cookies. Para ter mais informações sobre como isso é feito, acesse nossa política de privacidade. Se você concorda, clique em ESTOU CIENTE.