Trabalho infantil
Nos municípios goianos de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre está localizada a maior comunidade remanescente de quilombos do Brasil, os Kalungas. Nessa região do Nordeste de Goiás vivem duas mil famílias quilombolas, cerca de 8 mil pessoas, que carregam consigo uma história de resistência à violação dos direitos. Desde sua formação, em quilombos distantes para fugir da escravidão, o povo Kalunga está em busca de respeito e liberdade. Quase 130 anos depois da Lei Áurea, porém, persistem muitos problemas, entre eles a exploração do trabalho infantil.
Em audiência pública realizada pela Câmara dos Deputados em maio de 2015, a quilombola Dalila Reis Martins, 29, denunciou que a exploração de crianças e adolescentes ocorre há décadas na região por meio de um tipo irregular de adoção. Meninas são retiradas da comunidade e levadas para morar com famílias de alto poder aquisitivo em cidades de Goiás e do Distrito Federal, sob o pretexto de que assim poderão estudar e ter melhores oportunidades no futuro.
Dalila contou que ela própria foi vítima desse aliciamento. Em vez de estudar na cidade, a jovem precisava realizar todo o trabalho doméstico e ainda sofria abuso sexual.
Titular da primeira Promotoria de Justiça de Cavalcante, Úrsula Catarina Fernandes explica que a banalização do trabalho infantil tem levado à subnotificação dos casos. “Pessoas vêm da zona rural para cá a fim de estudar e, numa troca de favores, fazem os trabalhos domésticos. Por verem nisso uma normalidade, há uma aceitação cultural e, por isso, muitas vezes não é sequer denunciado”.
Promotora-chefe do Ministério Público do Trabalho, Janilda Guimarães diz que essa suposta normalização é gerada por preconceitos. “A classe mais abastada entende que as crianças com pouca condição financeira podem trabalhar. Se, porém, olhassem para seus próprios filhos, elas jamais concordariam com esta condição”, reflete Janilda.
O procurador do Trabalho e vice-coordenador nacional da Coordenadoria de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes (Coordinfância/MPT), Tiago Ranieri, afirma que os males causados pelo trabalho precoce são invisíveis para grande parcela da sociedade.
Tiago Ranieri diz que as condições em que são encontradas as crianças e os adolescentes são degradantes e desumanas. E o pior, diz ele, é que a sociedade prefere acreditar que é melhor que essas crianças e adolescentes estejam ali do que no mundo das drogas ou no crime, como se só existissem essas duas alternativas para o filho do pobre.
"Poucos da sociedade são os que têm consciência de que o trabalho que dignifica o homem é aquele que acontece na idade certa e munido de qualificação. Fora desse binômio, o que temos é exploração, o capital e o lucro acima de seres humanos ainda em desenvolvimento”, alerta o procurador.
Para o presidente da Associação Quilombo Kalunga de Cavalcante e Monte Alegre, Vilmar Souza Costa, o trabalho infantil é uma ameaça constante entre os quilombolas. “A gente não tem infância. A brincadeira nossa é o cabo da enxada. Desde os 10 anos eu ia para a roça com meu pai para ajudar roçar, plantar, colher. E para muitos é assim até hoje. Isso existe por falta de políticas públicas para o setor em nosso Estado.”
CPI
Denúncias dessa natureza, envolvendo também casos de exploração sexual, vieram à tona no ano passado, e o deputado estadual Carlos Antonio (PSDB) protocolou na Assembleia Legislativa de Goiás o pedido de instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar tais crimes contra crianças e adolescentes.
Instaurada em 26 de maio de 2015, a CPI, presidida por Carlos Antonio e que originalmente deveria ser concluída em 120 dias, teve seu prazo de atuação prorrogado por duas vezes e durou quase um ano.
“Os trabalhos precisaram ser prorrogados por causa da amplitude e da disseminação dos crimes investigados. Como não queríamos fazer algo pela metade, reunimos esforços com diversos órgãos e entidades, em busca de resultados práticos”, justificou Carlos Antonio.
Diante da natureza dos crimes relatados e de denúncias em outros municípios, os membros da Comissão deliberaram pela realização de audiências públicas em todas as regiões do Estado para mapear os focos do problema. Os conselheiros tutelares levaram dados sobre a exploração contra crianças e adolescentes e cobraram mais atenção das autoridades.
As audiências também foram momentos importantes para que a CPI obtivesse informações junto às Polícias Civil e Militar e ao Poder Judiciário.
Em reunião ordinária da CPI, o Ministério Público do Trabalho (MPT) apresentou um relatório sobre essa exploração. De acordo com o MPT, Goiás está entre os 10 Estados brasileiros com maior índice de exploração infantil, com quase 46 mil crianças e adolescentes entre 10 e 15 anos que exercem trabalho irregular, sem computar os casos de menores ligados ao tráfico de drogas e exploração sexual comercial.
A deputada Delegada Adriana Accorsi (PT), vice-presidente da CPI, ouviu algumas das vítimas em Cavalcante. “Tem casos de crianças que foram agredidas fisicamente, abusadas sexualmente, que estavam em trabalho escravo e não tinham acesso à educação. Esses foram os que mais chocaram.”
Cavalcante é um dos 33 municípios goianos onde a exploração do trabalho infantil atinge níveis alarmantes.
Cidades com maior índice de constatação de trabalho infantil: Águas Lindas de Goiás, Anápolis, Aparecida de Goiânia, Caldas Novas, Catalão, Cidade Ocidental, Cristalina, Formosa, Goianésia, Goiânia, Goiatuba, Inhumas, Itaberaí, Itumbiara, Jaraguá, Jataí, Luziânia, Minaçu, Mineiros, Morrinhos, Niquelândia, Novo Gama, Padre Bernardo, Planaltina, Quirinópolis, Rio Verde, Santo Antônio do Descoberto, São João D'Aliança, Senador Canedo, Trindade, Uruaçu e Valparaíso de Goiás.
Autoridades de todas essas cidades foram convocadas a depor na CPI para relatar que medidas de combate estão em curso e qual o planejamento futuro para a superação do problema.
A Prefeitura de Quirinópolis, por exemplo, apresentou o projeto Jovem do Futuro, que atende 2.300 crianças e adolescentes de baixa renda, oferecendo cursos, atividades culturais e desportivas; e a Agência de Emprego Jovem do Futuro, que qualifica e encaminha menores aprendizes ao mercado de trabalho. Os projetos tiveram início em 2013 e já contribuem para a redução dos índices de trabalho na infância e adolescência.
No total, foram realizadas 11 audiências públicas, 27 reuniões ordinárias e 15 extraordinárias, entre reuniões de trabalho e visitas técnicas. A Comissão ouviu 323 autoridades e encaminhou mais de 2 mil ofícios requerendo informações e providências acerca das denúncias apresentadas.
“Essa CPI teve um trabalho importante, que foi percorrer todo o Estado, ouvindo as pessoas que trabalham no seu cotidiano no combate a crimes contra criança e adolescente. Chamamos a atenção da sociedade para que se trate como prioridade a erradicação do trabalho infantil. Conhecemos melhor essa realidade e vamos usar as informações para desenvolver projetos de lei e ações parlamentares em prol das crianças e adolescentes goianos”, avaliou Adriana Accorsi.
Acompanhe o histórico da CPI em fotos e em vídeos.
O relatório final da CPI foi apresentado em reunião na Câmara Municipal de Cavalcante no último dia 4. As falas dos participantes no evento evidenciaram a persistência dos principais obstáculos do combate ao trabalho infantil.
O presidente da CPI lamentou o fechamento do Conselho Tutelar de Cavalcante, que ocorreu há três semanas, segundo ele por falta de condições de trabalho e de apoio do município. O parlamentar denunciou que foram cortadas a água, a energia e a internet da sede do Conselho Tutelar, que também está sem combustível para abastecer o veículo.
A presidente do Conselho, Maria Francisco Figueiredo, desabafou que faltam até cadeiras para o atendimento de quem procura a entidade. “A prefeitura não dá nenhum suporte para o Conselho Tutelar”, enfatizou.
A promotora de Justiça de Cavalcante, Úrsula Catarina, assinalou que falta vontade política para resolver tais problemas e relatou a parceria com o Ministério Público do Trabalho, por meio do qual estão sendo adquiridos equipamentos básicos para o Conselho Tutelar do município.
Trata-se de um projeto regional no qual o MPT destina ao aparelhamento dos Conselhos Tutelares recursos obtidos a partir de multas e condenações. Mais de 30 conselhos tutelares já foram beneficiados, mas ainda há muito a ser feito.
A relatora da Comissão, deputada Isaura Lemos (PCdoB), apontou a necessidade de fortalecer a Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente. Ela destacou demandas por melhores condições de trabalho e capacitação profissional para os Conselhos Tutelares, que são órgãos primários de identificação do trabalho infantil e estão atuando precariamente, por falta da estrutura mínima necessária.
Isaura Lemos mencionou, ainda, a importância de subsidiar melhor o trabalho nas delegacias especializadas, assim como nos serviços de Saúde, Educação e em toda a rede socioassistencial.
Ações para erradicação do trabalho infantil
Há dez anos, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estabeleceu o Plano Global de Ação, que definiu como meta eliminar as piores formas de trabalho infantil até 2016 e, na Regional Americana da OIT, erradicar a exploração de mão de obra infantil até 2020.
No documento Trabalho Infantil: uma agenda rumo ao cumprimento das metas de erradicação, publicado em março do ano passado, a Organização das Nações Unidas no Brasil menciona que quase 25% das crianças que trabalham na América Latina são brasileiras, o que coloca o país em uma posição decisiva para o alcance das metas.
Tiago Ranieri acredita que o Brasil avançou no combate à exploração do trabalho precoce, com medidas preventivas e punitivas. O procurador do Trabalho explica que, mediante denúncias, o MPT instaura inquéritos civis, que têm resultado em Ações Civis Públicas contra empresas infratoras e Termos de Ajuste de Conduta (TAC), que preveem obrigações dos municípios voltadas à prevenção e à repressão do trabalho infantil. Em Goiás, o MPT já firmou TACs com os municípios de Quirinópolis, Goianésia, Aruanã e Cavalcante.
O Ministério Público do Trabalho em Goiás também integra projetos nacionais como o Políticas Públicas de Combate ao Trabalho Infantil, que tem a finalidade de cobrar a existência de tais políticas e fiscalizar seu cumprimento; o MPT na Escola, por meio do qual os profissionais das redes municipais de educação são qualificados para tratar sobre os direitos das crianças com os estudantes e a comunidade escolar em geral; e o projeto Aprendizagem, no qual o Ministério fiscaliza o cumprimento da cota de aprendizes nas empresas que têm a obrigação legal de empregar formalmente adolescentes a partir de 14 anos, oferecendo qualificação profissional e carga horária conciliável com a continuidade dos estudos.
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), o Brasil lidera o grupo de países que está conseguindo tirar crianças e adolescentes do trabalho. Entre 2001 e 2013, o Brasil apresentou redução de 58%, período em que a média mundial foi de 36%.
Apesar dos esforços e resultados, ainda há um longo caminho a ser percorrido. Para Tiago Ranieri, os principais fatores que determinam o alto índice de trabalho infantil no país são a insuficiência de políticas públicas estaduais e municipais específicas para o combate à exploração de mão de obra infantil.
Ele aponta que falta qualificação para a temática da rede de proteção da criança e do adolescente, educação pública integral e de qualidade, qualificação profissional no âmbito dos municípios e fiscalização dos serviços socioassistenciais, tais como bolsa família, serviço de convivência e fortalecimento de vínculos, dentre outros.
O procurador do Trabalho enfatiza, ainda, a importância do Poder Judiciário. “Considerando as baixas condenações existentes, muitas vezes a utilização do trabalho infantil ainda é rentável para o empregador. A pena deve ser pedagógica, capaz de inibir tal conduta ilegal. E todos devem articular-se setorialmente e intersetorialmente de forma a fortalecer o sistema de garantias de direitos.”
Em entrevista à TV Assembleia, Janilda Guimarães ressalta a importância do trabalho integrado em todo o ciclo das políticas públicas de promoção da igualdade e combate ao preconceito de classe.
Segundo ela, esses são desafios urgentes que o Brasil precisa enfrentar, "tanto para a manutenção das conquistas alcançadas ao longo dos anos, como para avançar em dimensões do problema ainda resistentes às estratégias e esforços utilizados até o momento", conclui o diagnóstico da ONU no Brasil.
Fonte: Redatores: Fran Rodrigues e João Nascimento