Cuidado com o coração

A cardiopatia congênita é um termo genérico usado para designar qualquer anormalidade na estrutura ou função do coração, que surge quando o órgão está em formação. Segundo o Ministério da Saúde, é o defeito congênito mais comum e uma das principais causas de mortes relacionadas a malformações congênitas.
Estima-se que 30 mil crianças nasçam com alguma cardiopatia congênita no Brasil todos os anos e que 6% delas morrem antes de completar 1 ano de vida. Muitas delas sem nem mesmo ter sido diagnosticadas.
A detecção da doença pode ser feita ainda na gestação. Foi o que aconteceu com a advogada Martha Camargo. Há 13 anos, quando estava grávida, ao realizar a ultrassonografia morfológica, o médico detectou uma pequena alteração no coração do bebê. Um ecocardiograma fetal confirmou a suspeita: o filho tinha uma cardiopatia congênita das mais graves: a Síndrome da Hipoplasia do Coração Esquerdo, mais conhecida como Síndrome do Meio Coração.
Ainda atordoada pelo diagnóstico, aos oito meses de gestação, ela ainda se deparou com outra notícia igualmente assustadora. Em Goiás não havia tratamento para a doença. “Fiquei muito desesperada. Não só com o diagnóstico, mas com a possibilidade de ter que sair de Goiânia para procurar tratamento.”
Os médicos a orientaram a buscar assistência em São Paulo, estado que oferecia estrutura adequada para as cirurgias e outros procedimentos necessários para garantir a sobrevivência do bebê. Mas ainda havia mais uma dificuldade a ser vencida: o plano de saúde dela, pago rigorosamente em dia, se negou a custear o tratamento do filho, que seria realizado fora de Goiás. Martha teve que recorrer à justiça para que a operadora fosse obrigada a garantir todas as despesas.
Superado mais esse desafio, Martha embarcou para São Paulo, levando na bagagem o medo e as dúvidas sobre a doença ainda um tanto desconhecida, mas também a coragem e a determinação de uma mãe disposta a qualquer coisa para dar ao filho a oportunidade de um tratamento, capaz de garantir a sobrevivência.
Depois de quase seis meses vivendo, praticamente, dentro de um hospital na capital paulista, Martha e Yhan voltaram para Goiânia. Apesar da primeira etapa concluída, o receio pela falta de um acompanhamento adequado ainda assombrava a mãe. “Nós temos excelentes cardiopediatras aqui em Goiânia, inclusive eu sou acompanhada pela doutora Mirna aqui, que é excelente, mas nós não tínhamos tratamento para a cirurgia. E, com 4 anos e 3 meses, meu filho voltou para São Paulo, para fazer a última cirurgia, porque a cardiopatia dele precisava de três cirurgias para poder ter qualidade de vida”, relata a advogada.
O retorno a Goiânia também mostrou a Martha que ela não estava sozinha nessa luta. E que a situação de outras mães de filhos cardiopatas era bem mais complicada que a sua.
Nas idas e vindas em busca de garantir a saúde dos coraçõezinhos de seus bebês, os caminhos de Martha e de Eliade Pontes se cruzaram. As duas trilharam o mesmo trajeto, de Goiânia a São Paulo, para garantir o tratamento dos seus pequenos. Conseguiram e retornaram.
Segundo Martha, ao conhecer Eliade, foi ajudá-la em um projeto de apoio a outras mães.
A ideia inicial era fazer um trabalho social de visita aos hospitais, levando uma palavra de conforto às famílias ou mesmo um presentinho para as crianças. Mas encontraram uma situação muito mais complexa que aquela que elas mesmas haviam enfrentado. “Nos deparamos com uma realidade angustiante, famílias que estavam há meses, algumas há anos, na fila de espera por uma cirurgia cardíaca. A gente não tinha, sequer, o Teste de Coraçãozinho, aqui em Goiânia”, revela.
A partir daí elas viram que era preciso uma ação mais efetiva em favor das crianças cardiopatas terem o diagnóstico e o tratamento adequados e em tempo hábil. Dessa necessidade nasceu a Associação Amigos do Coração.
Martha conta que, já em 2010, a entidade fez um evento público, cobrando a realização gratuita do Teste do Coraçãozinho, o exame capaz de detectar precocemente a condição que caracteriza as cardiopatias.
Primeira vitória. O exame acabou sendo instituído por lei. Mas daí veio um problema ainda maior. “Se antes as crianças morriam na fila de espera por cirurgia, agora, com o Teste do Coraçãozinho, elas morriam com o diagnóstico, uma vez que aumentou a quantidade de crianças procurando por cirurgia, porque elas começaram a ser diagnosticadas no nascimento”, relata Martha.
Estatuto
Na tentativa de garantir esses direitos básicos dos cardiopatas, o deputado Virmondes Cruvinel Filho (UB) apresentou, na Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) um projeto de lei propondo a criação do Estatuto da Pessoa com Cardiopatia Congênita, que visa estabelecer os critérios básicos para assegurar a inclusão social e cidadania participativa plena e efetiva desse público.
A propositura, baseada no Plano Nacional de Assistência à Criança com Cardiopatia Congênita, estabelece como princípios fundamentais promover a melhoria das condições de assistência à saúde das pessoas com cardiopatia congênita; o atendimento humanizado, com a garantia de acesso à rede de serviços de saúde e de assistência social e o direito a atendimento especial nos serviços de saúde, públicos e privados, consistindo no mínimo em assistência imediata, respeitada a precedência dos casos mais graves e oferecimento de acomodações acessíveis, a disponibilização de locais apropriados para o cumprimento da prioridade no atendimento, conforme legislação em vigor, em casos tais como agendamento de consultas, realização de exames, procedimentos médicos, entre outros, e o direito à presença de acompanhante, durante os períodos de atendimento e de internação, exceto em ambientes de UTI.
O parlamentar justifica que a iniciativa se junta ao coro dos profissionais, pacientes, familiares e instituições que atuam tanto na área social quanto na saúde pública, que buscam dignidade aos pacientes diagnosticados com a doença. O deputado diz que, assumindo a posição de legislador, sua missão é dar dignidade às pessoas com cardiopatia congênita, que antes mesmo de respirar pela primeira vez necessitam de cuidados especiais essenciais. "Cuidamos dessas pessoas, mas também acredito que abraçamos suas famílias e toda uma parcela da sociedade que é surpreendida pelo diagnóstico.”
Virmondes Cruvinel afirma que a proposição busca definir diretrizes, normas e critérios básicos que garantam amparo legal para pessoas com cardiopatia congênita atendidas no Sistema Único de Saúde (SUS) em nosso estado. E completa que a proposta busca corrigir injustiças,
simplificar o acesso dos pacientes ao serviço e criar prerrogativas assistenciais, consolidando a proteção às pessoas acometidas por cardiopatia congênita.
Diagnóstico
Apesar da gravidade de algumas cardiopatias, o atendimento adequado e em tempo hábil é capaz de garantir a sobrevivência e uma boa qualidade de vida ao paciente. Mas, para isso, o diagnóstico precoce é o fator essencial.
Quando o pré-natal é feito corretamente, são grandes as chances de se detectar alterações que possam dar sinais da cardiopatia. Em alguns poucos casos, como aconteceu com Martha, a ultrassonografia morfológica já mostra essas alterações.
Mas o exame capaz de confirmar as cardiopatias é a ecocardiografia fetal. Segundo a médica pediatra com atuação em ecocardiografia pediátrica e fetal Beatriz Mariano, do Centro de Diagnóstico por Imagem (CDI), o exame é similar a um ultrassom, mas específico para avaliar o coração do bebê, ainda no útero materno.
A profissional explica que, durante o exame, toda a anatomia do órgão é analisada. Também são verificadas se as estruturas estão no tamanho e lugares corretos, o ritmo e a função do coração. “A malformação cardíaca é a malformação congênita mais comum no feto. A gestante não pode deixar de avaliar o coração do seu bebê”, ensina a médica.
Quando o diagnóstico e o tratamento são feitos a tempo, os cardiopatas podem ter uma vida praticamente normal.
Serviço especializado
Depois de muita luta da Associação Amigos do Coração, o governo do Estado implantou o Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital Estadual de Urgências da Região Noroeste de Goiânia Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol), o primeiro do tipo, totalmente custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em Goiás.
O serviço começou a funcionar em agosto de 2020, com atendimento ambulatorial dos pacientes para a realização de triagem e exames iniciais e, quando necessário, a realização do procedimento cirúrgico.
De acordo com Martha Camargo, a cardiopediatria no Hugol ainda não consegue atender toda a demanda, mas já é uma grande vitória para as famílias, especialmente as de baixa renda, ou pelo menos parte delas, que estão tendo a possibilidade de dar às crianças cardiopatas o tratamento adequado.
E, dessa forma, mais famílias estão podendo ter a mesma felicidade que Martha teve ao sair do hospital com o filho nos braços. Além disso, acompanhadas de uma certeza que ela não teve: de que existe um serviço de referência bem próximo para atender as crianças em qualquer intercorrência.
E o melhor: vê-las crescer com saúde e qualidade de vida.
Hoje, aos 13 anos, Yhan é um adolescente como qualquer outro: estuda, pratica esporte, toca bateria. E a mãe dele manda um recado para os pais que recebem o diagnóstico de cardiopatia congênita para um filho: "Existe vida e vida abundante, além da cardiopatia congênita. O diagnóstico nunca pode ser o fim. É o começo. Talvez não de uma história sonhada, linda, perfeita, do filho correndo na rua, brincando, mas seu filho vai, sim, fazer o que as outras crianças fazem. Essa era a minha preocupação quando eu recebi o diagnóstico: será que meu filho vai correr, será que meu filho vai brincar? Vai, ele vai. Para que isso aconteça é preciso, sim, buscar tratamento adequado em tempo adequado. É esse o caminho da cardiopatia ", ensina Martha.