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Mulheres no Legislativo

31 de Março de 2020 às 13:37
Crédito: Agência de Notícias
Mulheres no Legislativo
Projeto Mulheres no Legislativo entrevista ex-deputada Isaura Lemos
31 de março de 1964: após um golpe de Estado, militares assumem o comando do País. Para falar um pouco sobre esse período, o projeto Mulheres no Legislativo entrevista a ex-deputada Isaura Lemos. Nas suas memórias, ela revela as dificuldades enfrentadas pela militância da época.

Março de 1968. O Brasil atravessa os turbulentos anos do Regime Militar. Jovens, por todo País, protestam, em luto, o assassinato do secundarista Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos. O crime, cometido, à queima roupa, por policiais militares, no interior do Calabouço, restaurante estudantil que oferecia comida de baixo custo a estudantes de baixa renda na cidade do Rio de Janeiro, choca uma parcela da nação. Notadamente, parcela essa que lutava contra as arbitrariedades da referida ditadura. 

É nesse conturbado contexto social que Isaura Lemos, a entrevistada da 13ª edição do projeto Mulheres no Legislativo, inicia a sua trajetória política. Igualmente jovem, ela conta que era ainda uma adolescente, quando se deram os trágicos desfechos narrados na abertura desta matéria.  

“Eles [os jovens do Calabouço] reivindicavam [naquela ocasião] a manutenção [do preço] das refeições para os estudantes [um aumento no valor da comida havia sido anunciado para ocorrer naquele fatídico 28 de março]. Edson Luís tinha vindo do Nordeste para estudar no Rio de Janeiro e acabou sendo assassinado. E isso foi um estopim para manifestações contra a ditadura. Já tinham se passado quatro anos do Golpe de 1964 e eu, com 14 anos, acompanhava toda aquela movimentação. Meus irmãos mais velhos, já universitários, também estavam participando”, explicou, em certa altura da entrevista.

Criada no interior de São Paulo (Isaura é natural de Jundiaí), no seio de uma família bastante numerosa (ela era a 11ª de um total de 14 filhos), a ex-deputada poria, pela primeira vez, os pés em Goiás, quatro anos mais tarde, em 1972, cumprindo missão dada pela Juventude Estudantil Católica, uma corrente mais progressista da Igreja, ligada à chamada Teologia da Libertação, que opunha forte resistência à ditadura. Isaura, que tinha então 18 anos, havia recém-trancado seu curso de psicologia na PUC de Campinas para prestar apoio aos perseguidos políticos. Percorrer as capitais do País e entregar correspondências aos familiares de lideranças, que já estavam na clandestinidade, era seu dever, na época. 

Mal sabia ela que a estréia no posto viria a selar para sempre sua relação com o território goiano, levando-a, inclusive, a se tornar a mulher que mais mandatos exerceu nesta Casa de Leis (Isaura ocupou cadeira no Parlamento estadual por cinco legislaturas consecutivas - da 14ª à 18ª -, aqui permanecendo, portanto, por precisamente uma década, de 1999 à 2019). Os quatro mandatos iniciais foram cumpridos quando essa ainda integrava os quadros do PDT. Nos demais subsequentes, voltou ao seu partido de origem, o PCdoB, legenda essa que Isaura havia ajudado a reconstruir, em Goiás, após o fim da ditadura militar, estando, nesta época, já ao lado de seu companheiro, o ex-vereador Euler Ivo.

Juventude roubada

O primeiro destino de Isaura, ao cumprir missão que lhe fora, à época, encomendada, foi justamente a Capital do estado: Goiânia. A carta que ela em mãos trazia, naquela ocasião, endereçava-se à jovem Marina Vieira da Paz, estudante de Belas Artes da Universidade Federal de Goiás (UFG), que havia sido presa e torturada pelos militares. 

O remetente, um irmão de Marina, era o jovem Euler Ivo, que atendia, então, pela falsa alcunha de José Moreira Gomes (visto que a sua verdadeira identidade estava na mira do regime ditatorial). E foi, justamente, no período em que estava Euler sob este codinome, que Isaura viria com ele se casar, dois anos mais tarde (ela própria também chegaria a usar o nome de Ana Maria, recebendo sobre este o apelido de Lilia). A união conjugal, que se sustenta até os dias atuais, legou ao casal três filhas: Tatiana, que é atualmente vereadora de Goiânia pelo mesmo partido da mãe (o PCdoB); Maíra, cantora goiana de MPB; e Júlia, jornalista, escritora, doutora em Filosofia e atual representante da União Estadual dos Estudantes (UEE) junto aos 25 conselheiros que integram o Conselho de Educação de Goiás (CEE/GO).  

Para Isaura, o clima de tensão vivenciado por jovens que, como ela, dedicaram-se à luta contra o autoritarismo da ditadura, impediu-os de vivenciar com plenitude os sabores e frescores da própria juventude. Essa é a razão pela qual diz fazer parte de uma parcela da população que teve a sua “juventude roubada”, tantas foram as perseguições, prisões, torturas e até mesmo mortes ocasionadas naquele conturbado período da historiografia nacional. 

“Não se podia falar de flores nem de amor. Uma parcela significativa dos jovens daquela época não tinha essa certa leveza que se vê num estudante de hoje, por exemplo, que luta, mas consegue seguir sua rotina de vida. Pelo contrário, era comum a gente ver jovens abrindo mão da própria identidade, caindo na clandestinidade para seguir sua militância, com a esperança ardente de suscitar alguma mudança na situação política e social do País”, relembra, com contido penar. A referência usada no início de sua fala faz uma conexão direta com a canção "Pra não dizer que não falei das flores", de Geraldo Vandré. Hino da resistência do movimento civil e estudantil à ditadura militar brasileira, a música foi censurada pelo regime e teve a sua execução proibida durante anos. 

A passagem foi extraída de uma longa entrevista concedida pela ex-deputada goiana à Agência Assembleia de Notícias, em abril de 2019. Divulgado um ano depois, o material vem agora relembrar, neste dia que antecede o primeiro de abril de 2020, a data que marca o início dos chamados "anos de chumbo". O movimento, cuja marcha se iniciava há exatos 56 anos, em 31 de março de 1964, foi responsável por destituir o governo, de centro-esquerda, do presidente, democraticamente eleito, João Goulart (Jango). Como uma onda, que cresce e se alastra, vários países da América do Sul também viriam a sofrer, sucessivamente, golpes de Estado, que levariam à implantação forçada de governos militares em seus territórios. 

Acontecimentos similares foram vivenciados, por exemplo, na Bolívia, em 1971 (embora o Estado boliviano já contasse com intervenções militares em seu governo desde 1964); no Uruguai e no Chile, em 1973; na Argentina, em 1976 (o Estado argentino também já havia enfrentado outro golpe militar em 1966). Antes de todos eles, no entanto, havia o caso do Paraguai que, em 1954, antecipa-se ao movimento, tendo o golpe de Estado liderado pelo general Alfredo Stroessner. Seu governo ditatorial durou quase de 35 anos (até 1989) e se destaca como o mais duradouro da história da América do Sul. Com o apoio da Agência de Inteligência dos EUA, os governos militares das seis nações citadas formaram entre si uma aliança para fortalecer as suas respectivas ditaduras e combater os opositores do regime. Esta articulação político-militar ficou conhecida como Operação Condor e se manteve vigente entre as décadas de 1970 e 1980.

No Brasil, o controverso período, que se estendeu por exatos 21 anos e contou com a atuação de cinco chefes militares, teve seu fim, efetivamente, decretado, em 15 janeiro de 1985, com a eleição indireta do então peemedebista Tancredo Neves à presidência da República. O regime ainda hoje divide opiniões no cenário político nacional, encontrando, de um lado, defensores e, de outro, opositores. Para os primeiros, os acontecimentos da chamada ditadura militar brasileira seriam o resultado glorioso de uma vitória revolucionária. Para os segundos, seriam o reflexo doloroso de um golpe que interrompeu o curso da democracia no País e acabou por solapar direitos e conquistas da sociedade civil. 

Dados e estudos recentes tentam dar conta das contradições de um regime que segue revelando aspectos sombrios e obscuros da história do País. O último relatório sobre o assunto confirmou a ocorrência de um total de 434 mortes e desaparecimentos em decorrência da ditadura militar brasileira. O levantamento foi divulgado em 2014 e refletiu os resultados alcançados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), grupo de trabalho criado para os fins anunciados, em 2012, por força da Lei Federal 12.528/2011.  

Os números apresentados pela CNV seguem, no entanto, sendo alvo de questionamentos, tanto pelos que almejam minimizar os efeitos deletérios da ditadura brasileira, quanto por aqueles que advogam o contrário. Os primeiros tomam para si os resultados da Argentina e do Chile. Para eles, o fato dos países vizinhos terem registrado, respectivamente, um saldo de 50 e 40 mil mortos, cada, tornaria mais branda a experiência no Brasil. "Ditabranda" foi um termo que chegou, inclusive, a ser empregado num editorial do jornal Folha de São Paulo, divulgado em 2009. 

Na contramão desse julgamento, estão os argumentos daqueles que lutam para dar ainda mais transparência aos crimes cometidos pela ditadura nacional. Suas perspectivas de investigação se debruçam sobre fontes variadas. Umas das possibilidades mais perturbadoras advém com a publicação, em 2013, do livro-reportagem Holocausto Brasileiro, escrito pela jornalista Daniela Arbex. A obra retrata o cotidiano do Hospital Psiquiátrico Colônia, em Barbacena, Minas Gerais, onde de 1930 a 1980, teriam sidos assassinados, na instituição, 60 mil internos. Dentre esses incluíam-se "epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, mendigos, militantes políticos, ou seja, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder", segundo prefácio assinado pela também jornalista Eliane Brum.

A lista de casos, possivelmente, negligenciados envolveria ainda homicídios supostamente registrados como suicídios ou acidentes de trânsito. Assim como omissões envolvendo outras milhares de mortes de camponeses, sindicalistas, líderes rurais e religiosos, advogados, ambientalistas e indígenas ajudam igualmente a engrossar o caldo da polêmica e da dúvida que permanece atormentando as estatísticas atuais. Informações adicionais sobre o tema podem ser encontradas no portal "Memórias da Ditadura", editado pelo Instituto Vladimir Herzog, com o apoio da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Outro repositório virtual utilizado foi a página eletrônica do projeto "Memória e Resistência na América Latina", desenvolvido pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).

A entrevista a seguir reflete, ainda que numa escala pequena, posto que restrita a experiência individual da entrevistada, a luta daqueles que se recusam a aceitar o autoritarismo e as arbitrariedades legadas pela escalada de violência embutida nesse nebuloso passado. O conteúdo integral da conversa foi dividido em duas partes. Nesta semana, apresentamos a primeira delas, em que Isaura relata a sua trajetória de luta e dedicação em prol das liberdade democráticas no País, revivendo fatos que marcaram para sempre os anos que antecederam a sua ascensão ao plenário do Parlamento goiano. 

Anos esses que tiveram a marca da clandestinidade, quando a jovem Isaura, reinventada na pele da cabocla Lilia, no seu afã militante, passa a viver, às escondidas, nos rincões do País. Do sertão baiano à floresta amazônica, ela e seu fiel companheiro, o também reinventado Zé Mineiro, reconstroem suas identidades na fuga, na saudade de seus familiares, no medo da repressão e na coragem que movia todos os sonhadores e lutadores daquela época. 

"Minha vontade de lutar era mais forte do que qualquer coisa. Mais forte do que a vontade de ser mãe, de fazer uma faculdade ou até de ficar com a minha própria família. Eu fui empurrada para uma situação, frente à qual eu não tive como fugir", confessou a entrevistada.

É assim que ela troca uma vida razoavelmente confortável, na classe média paulista, por uma vida de luta, tentando, modestamente, sobreviver entre as parcelas mais pobres da população brasileira. Nessas memórias, carregadas de empatia por seu povo, ela vai igualmente descortinando importantes fatos históricos, muitos dos quais talvez ainda haja muito o que se reconhecer, como o papel da Igreja e de militantes católicos no combate às tantas arbitrariedades da ditadura.

Em relação a outras questões, no entanto, há ainda muito o que se dizer. É o caso, por exemplo, da chamada Guerrilha do Araguaia. O conflito, deflagrado, entre 1967 e 1974, nos arredores da Amazônia brasileira, às margens do rio que leva seu nome, foi responsável por dizimar a vida de mais de 60 de seus, por volta de, 80 combatentes. Contra eles, um exército, com cerca de cinco mil soldados das Forças Armadas, imprimiria, nas páginas veladas do regime, mais um rastro de sangue e morte. As vítimas desse massacre seguem sendo ainda, em sua esmagadora maioria (mais de 50 delas), meros "desaparecidos políticos".

Foram anos de perdas: de amigos, colegas de militância, familiares. De lutos vividos no exílio de seu próprio País. Do desamparo de uma jovem mãe, de quem foram igualmente roubados os encantos da maternidade. "Minha filha chorava muito e, em um determinado momento, eu cheguei a pensar em doá-la. Nunca imaginei que chegaria a esse ponto. Até então, sempre condenara a mãe que doa o filho. Mas eu estava tão perturbada, tão fraca e deprimida, que eu pensei em dar a minha filha", desabafou sobre os desfechos iniciais de sua primeira gravidez.

Nessa altura do relato, Isaura toca, portanto, num ponto muito sensível e provavelmente ignorado pela geração de mães daquela época. Trata-se da chamada Depressão Pós-Parto (DPP), que permanece sendo alvo de tabu até os dias de hoje. Segundo dados da Fiocruz (2018), o fenômeno acomete, atualmente, uma em cada quatro mulheres brasileiras.

Um pouco de todas essas questões, a leitora e o leitor poderão encontrar nas linhas de conversa a seguir. Elas vão, justamente, desembocar no momento exato em que a entrevistada, finalmente, chega a Goiânia. Era o início dos anos 1980, quando Isaura vinha, aqui aportar, com a segunda filha no colo, embalada pelos frescos ares da redemocratização nacional. 

Até aí vai essa primeira parte. A segunda, a ser divulgada nas semanas subsequentes, dá sequência a essa narrativa. Nela, abordaremos um pouco mais o legado deixado pela parlamentar que gozou da experiência mais duradoura da história das mulheres, até o presente momento, nesta Casa de Leis. O movimento de luta pela casa própria esteve, nesse sentido, entre as suas principais bandeiras. Em meio a esse assunto, ela explora também diferentes questões relacionadas à situação atual das mulheres e nos agracia com uma espécie de aula sobre a história do comunismo mundial, abordando, em profundidade, tópicos que vão desde a queda do muro de Berlim e o fim da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) ao socialismo cubano, por exemplo.

Confira, a seguir, a primeira parte da entrevista da 13ª edição do projeto Mulheres no Legislativo. A iniciativa resgata a memória e os frutos do legado deixado pelo capital político feminino na história da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego).  

A sua entrada na política se deu, por meio da militância contra a ditadura militar, em um momento político bastante tenso da história do País. Como foi viver e atuar politicamente, naquela época, sobretudo para pessoas como você, que faziam oposição ao regime ditatorial? O que a levou a essa atuação?

Olha, antes de tudo, penso ser importante esclarecer que eu venho de uma família que tem os valores cristãos como base. Tive uma mãe muito religiosa e, devido à religião, ela acabou optando por não fazer uso de anticoncepcionais. Como consequência dessa escolha, eu sou a décima primeira filha de uma família de 14 irmãos. Meu irmão mais velho era padre, tendo sido também reitor de seminário e depois diretor de uma Faculdade de Filosofia. Ele era um padre intelectual, muito estudioso, que pregava essas ideias de mudança, especialmente as de justiça social, tendo sempre a aceitação, para tanto, da minha mãe e do meu pai. Assim, a minha formação se deu nesse ambiente cristão, em que a busca por alcançar a justiça social era o maior motivo de realmente se fazer política. Aos 14 anos, eu participei, pela primeira vez, de uma passeata política. Já tinha se passado, naquela ocasião, quatro anos do golpe militar de 64. Estávamos, portanto, no ano de 1968, quando já era perceptível o surgimento de uma resistência mais forte ao regime militar, que era protagonizada, sobretudo, por estudantes, mas que também contou com a adesão da classe trabalhadora (o ano de 1968 foi, inclusive, fortemente marcado por manifestações dessa natureza em todo o cenário político mundial; um dos momentos mais célebres desse período foi a série de protestos que deram origem ao chamado Maio de 68, na França). No Brasil, o estopim, para que o agravamento das mobilizações ganhasse repercussão, foi o fato do estudante Edson Luís Souto ter sido assassinado por forças policiais ligadas ao regime. O episódio ocorreu em março daquele ano, dentro do restaurante universitário então chamado de Calabouço, localizado no campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na ocasião, os estudantes realizavam uma manifestação reivindicando que fosse mantido o preço das refeições. A morte do jovem secundarista, que havia vindo do Nordeste, levou milhares de estudantes às ruas das principais cidades de todo o País, em protestos contra a ditadura. Eu tinha 14 anos, na época, e também estava participando, junto com meus irmãos mais velhos, todos já universitários, de toda aquela movimentação. Nesse mesmo período, eu era integrante de uma organização chamada Juventude Estudantil Católica (JEC), voltada para os estudantes do então ensino médio. Existia também a JUC, que abrigava a Juventude Universitária Católica. Por meio dessas organizações, nós, jovens integrantes, viajávamos o Brasil todo. Eu, no caso, viajava principalmente pelas cidades do interior de São Paulo, organizando a resistência dos estudantes secundaristas contra a ditadura e em defesa das liberdades democráticas, dos direitos sociais. Então, desde nova eu já me vi envolvida com toda essa sorte de preocupação. 

O ímpeto de liderança já se fazia presente desde ali, então?

Não exatamente, porque, na verdade, eu era muito tímida, pessoalmente falando. Mas, como eu sempre participei de grupos da igreja de onde eu morava, que faziam essa discussão, eu fui encontrando pessoas com um atuação já clandestina contra a ditadura, o que acabou me levando, posteriormente, a atuar em defesa delas. Refiro-me, especialmente, no caso, àqueles estudantes secundários que precisavam mudar seus próprios nomes para que pudessem viver em paz, por exemplo.

Seu marido também foi um jovem militante. Foi assim que você o conheceu? Como foi esse encontro?

Sim. Quando eu conheci o Euler, ele estava atuando na clandestinidade, com outro nome, inclusive. Antes, ele havia estudado aqui no Colégio Pedro Gomes, tendo sido removido posteriormente para o Colégio Lyceu e depois para o Ateneu, justamente por movimentar a juventude em prol de causas, como a melhoria nas condições de ensino e por mais democracia na sala de aula  (os três centros educacionais estão localizados em Goiânia, sendo o primeiro e o segundo pertencentes à rede estadual de ensino e, o terceiro, um colégio católico ligado à ordem dos salesianos). Desde 1964, quando houve o golpe, todos os setores da sociedade passaram a conviver com cerceamentos no campo de ideias. Mas isso se tornou particularmente mais grave no período compreendido entre os anos de 1967 e 1968, que foi quando o regime começou a reprimir violentamente qualquer manifestação de ideias contrárias à ditadura, ao autoritarismo do governo ou às interferências norte-americanas aqui no nosso País, que continuava a ser tratado como uma colônia*. Porque também foi justamente nessa época que essa consciência anti-imperialista, crítica, começou a se disseminar no meio estudantil. Essa consciência acabou por questionar, inclusive, o próprio autoritarismo que se fazia presente dentro das escolas. Os grêmios passaram a ser considerados locais subversivos, frequentados por quem não aceitava a ordem. Todas essas questões estavam, portanto, muito efervescentes naquele cenário, o que acabou resultando nessa transição para um regime mais fechado. Então, quando eu encontrei o Euler, ele, que tinha sido vice-presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES) e, por isso, viajado o Brasil todo, já estava na mira do regime. Inclusive, em uma das manifestações contra a ditadura, realizada aqui em Goiânia, na Praça do Bandeirantes, houve o assassinato de um jovem sósia dele. Se você ver a foto, é o mesmo que estar vendo o próprio Euler... 

* O Ato Institucional n.º 5 (AI-5) foi o principal e o mais violento instrumento legal utilizado pelo governo militar para legitimar a suspensão das liberdades civis e institucionalizar a tortura como mecanismo de Estado. O regime editou, ao todo, entre 1964 e 1969, 17 desses decretos.

Você acredita então que a intenção era matá-lo, por ser a liderança mais proeminente do movimento secundarista em Goiás?

Sem dúvida. Mas mataram esse outro rapaz. O nome dele era Ornalino Cândido. Ele era lavador de carros e sua mulher estava grávida. O assassinato ocorreu ali na Rua 4. Alguns populares, que passavam pelo local, testemunharam depois de,  supostamente, terem ouvido um tal, chamado coronel Pitanga, falar: “é para matar... atirem para matar”. Isso foi, inclusive, registrado nos jornais da época, com o nome desses militares. Temos tudo isso guardado. Por conta disso, o Euler acabou tendo que sair de Goiás. 

O que aconteceu depois desse atentado? Ele passou a viver na clandestinidade? 

Exato. E, como eu havia começado a falar antes, foi justo nesse momento da vida dele que nós nos conhecemos. Quando eu o encontrei, ele estava na clandestinidade, com outro nome. Mantinha relações políticas apenas com quem se dispunha a ajudar aqueles estudantes que já estavam vivendo na clandestinidade pelo interior do País. Ele ajudava a organizar essa rede de apoio àqueles estudantes que estavam sendo perseguidos nas capitais, nas grandes cidades, porque todos ficavam em uma situação de fragilidade muito grande, correndo o risco de serem presos, de serem torturados. A minha cunhada, por exemplo, ficou presa nessa época e foi muito torturada. Foi uma das mulheres mais torturadas do Brasil! Marina Vieira da Paz, irmã do Euler, era universitária, estudante de Belas Artes na Universidade Federal. 

E você entrou para dar suporte a essa rede de apoio? Como foi isso?

Sim. Ele, o Euler, precisava de alguém que viesse ajudar a retirar a sua irmã daqui, depois que ela fosse solta, porque Marina estava muito debilitada, tanto física, quanto emocionalmente. Ele precisava, também, de alguém que viesse trazer as correspondências dele, que na época eram retidas. Se ele escrevesse uma carta de qualquer município do Brasil, ao chegar aqui, a polícia achava, por meio delas, onde ele estava. Por isso, ele precisava de alguém que pudesse vir pessoalmente entregar algumas cartas e eu, aos 18 anos, me dispus a fazer isso. Se aos 14 eu havia começado a participar de algumas manifestações, aos 18 eu já estava bem atuante e me destacava, dentro da JEC, como uma apoiadora desses companheiros e companheiras, que eram perseguidos políticos. Fazia parte de um grupo que fora especialmente criado ali para atender a esse propósito. 

Essa JEC, ela era ligada a correntes, digamos, mais progressistas da Igreja Católica, como à Teologia da Libertação?

Sim. Era ligada à igreja de esquerda, àquela que não admitia o cerceamento das liberdades nem as injustiças sociais. Um segmento consciente ligado a Dom Hélder Câmara, que, na época, era muito atuante nesse cenário; e a Dom Marcos de Noronha, que também era muito atuante lá em Itabira, localizada em Minas Gerais. Esse segmento também contava com freis e padres perseguidos e presos, que estavam sofrendo torturas. Entre esses estavam alguns dominicanos, como o Frei Betto*. 

* Em tempo: O primeiro nome citado se refere a um bispo católico ligado à arquidiocese de Olinda e Recife.  Por por sua militância em favor dos Direitos Humanos, sobretudo durante a Ditadura Militar, destaca-se ainda hoje como o brasileiro que mais indicações recebeu ao Prêmio Nobel da Paz - quatro, no total. Dom Hélder faleceu em 1999 e, em 2017, foi declarado Patrono Brasileiro dos Direitos Humanos pela Lei Federal nº 13.581. O segundo, Dom Marcos, além de ter sido bispo em Minas, cargo ao qual renunciou em 1970, destacou-se igualmente, enquanto ainda exercia aquela função, como proeminente professor, tendo fundado e dirigido dois centros universitários no interior mineiro. Suas missões humanitárias ao lado da igreja continuaram, no entanto, até a sua morte em 1998. O terceiro, por sua vez, também mineiro, além de frade dominicano, é reconhecido por sua notória atuação como jornalista e escritor. Recebeu premiações literárias por várias de suas obras publicadas, notadamente por "Batismo de Sangue", em que narra os bastidores do regime militar e a resistência protagonizada pela ala da igreja à qual pertencia, na ocasião. O livro foi adaptado para o cinema, em filme homônimo, lançado em 2017, pelo diretor Helvécio Ratton, seu conterrâneo. Carlos Alberto Libânio, o Frei Betto, é também até hoje reconhecido e premiado por sua atuação em prol dos direitos humanos e dos movimentos populares. Foi um dos principais articuladores do Programa Fome Zero, durante a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva. Na década de 1960, destacou-se como dirigente nacional da JEC, tendo sido preso por duas vezes, durante o período militar: a primeira, em 1964, por 15 dias; a segunda, por quatro anos, de 1969 a 1973. A Teologia da Libertação, corrente teológica a qual esses personagens foram, em alguma medida, particularmente devotos, e que tem por premissa o combate à qualquer forma de injustiça, seja ela social, econômica ou política, vem sofrendo forte declínio desde os anos de 1990. Apresenta-se, no entanto, como um fenômeno eminentemente latino-americano e tem, ainda hoje, como principal expoente o teólogo, escritor, filósofo e professor universitário brasileiro, Leonardo Boff. Outro líder católico de destaque naquele contexto foi Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, que faleceu em 2016.

Como administrar o fato de ser tão jovem e ter essa grande consciência de suas responsabilidades enquanto cidadã, sobretudo num momento tão difícil da história brasileira? 

Era sufocante, porque você imaginava que não tinha saída, que isso não ia passar. Era uma juventude que não podia falar de flores, não podia falar de amor. A juventude consciente, que era um segmento, infelizmente, pequeno, vamos dizer assim, acabou abrindo mão da sua própria vida. Era natural ouvirmos, entre nós, comentários como: “eu vou para a clandestinidade, sair e lutar para que essa situação mude”. Acabou que muitos desses jovens tiveram a sua juventude roubada, porque não experimentaram aquela leveza, tão própria dos jovens, de poder estudar numa faculdade, poder viver livremente. Em 1972, eu entrei na PUC de Campinas, para cursar psicologia. Mas fiz apenas um semestre e tranquei a minha matrícula para atuar nesse apoio à militância estudantil. 

É assim que nasce a sua relação com a cidade de Goiânia?

Sim. Mas, inicialmente, essa relação foi muito pontual. Vim para Goiânia trazer cartas e para ajudar essa pessoa (a irmã de Euler Ivo), que era, até então, para mim, apenas uma perseguida política. Ainda em 1972, eu cheguei aqui e encontrei uma família totalmente desestruturada. O carro da polícia não saía da porta da casa deles, que ficava ali na região da antiga rodoviária, nas imediações do Capim Puba (o córrego divide os setores Central e Campinas, em Goiânia). Marina, que viria a ser, futuramente, minha cunhada, estava bastante debilitada física e emocionalmente, devido às torturas que havia sofrido enquanto esteve presa. Ela não falava mais coisa com coisa. Ela tinha uns 22 anos, algo em torno disso, e já fazia faculdade. Havia um pânico generalizado entre os membros da família.

E vocês conseguiram tirá-la daqui com segurança? Como se deu esse processo?

Sim, nós conseguimos tirá-la daqui, logo em seguida. Passada uma semana, depois que entreguei a carta, ela me procurou. Antes, por segurança, fizemos várias mudanças físicas nela. Cortamos o cabelo dela e o pintamos de loiro. Compramos roupas mais chiques para ela, vamos dizer assim, para vestí-la e retirá-la do Brasil, porque a ideia era justo esta: enviá-la para o exílio no exterior. Ela não tinha mais condições de ficar aqui, no Brasil. 

E para onde ela foi levada? 

Ela foi enviada, imediata e primeiramente, para o Chile. Porém, na sequência, houve a queda de Salvador Allende, outro governo de esquerda deposto (por meio de um golpe de Estado, o general Augusto Pinochet assume o comando do país, em setembro de 1973; durante a ocupação do Palácio de La Moneda, sede do governo chileno, pelas tropas militares, Salvador Allende, o primeiro presidente socialista marxista democraticamente eleito na América, é morto. Sua morte fica registrada na história como um suposto suicídio). Marina foi então enviada para o Estádio Nacional (desde que se instalou a ditadura chilena, o local foi usado como campo de detenção e tortura de presos políticos, que ali permaneciam à espera de fuzilamento). Lá ela sofreu um fuzilamento simulado, que acontecia quando eles praticavam assassinados alternados, matando um e deixando vivo outro (para esses últimos casos eram normalmente utilizadas balas de festim). Ela conseguiu sair viva, e, sem condições de ser mantida ali, seguiu para a Argentina. Anos depois (1976), também este país sofreria com a queda de Isabelita Perón, um governo de centro-esquerda, que foi igualmente deposto pelos militares. Sem alternativa, Marina se refugiou na Embaixada Francesa. 

Ela conseguiu asilo político do então governo francês?

Sim, mas, a princípio, encontrou alguma dificuldade, porque não era fácil entrar na Embaixada Francesa. A entrada poderia ser barrada por um policial, por exemplo. O normal seria que não permitissem mesmo, porque o país estava em convulsão. Todo mundo ali queria ir embora. Mas, o que acabou a ajudando, naquele momento, foi o fato de ela ter tido uma crise de apendicite. Por conta disso, ela conseguiu entrar na Embaixada Francesa, e, de lá, foi deportada para viver o seu exílio na França.

E como ela está hoje? Permanece por lá?

Sim, ela continua morando na França, onde se casou com um americano, com quem vive até hoje. Mas ficou com sequelas emocionais e psicológicas graves. Hoje ela está mais estabilizada, mas nunca se recuperou totalmente das crises de depressão e pânico. Como consequência desses traumas do passado, ela chegou a cometer várias tentativas de suicídio ao longo de sua vida. Agora mesmo ela está em pânico absoluto com o que está acontecendo no Brasil*. 

* Na ocasião em que a entrevista foi gravada, Isaura parecia se referir à tensão gerada pelo início da gestão do presidente Jair Bolsonaro e às suas constantes declarações de apoio ao regime militar brasileiro. Em março de 2019, ele havia enviado uma determinação presidencial ao Ministério da Defesa, solicitando que fossem realizadas "as devidas comemorações" pelos 55 anos do golpe militar de 1964.

Marina seria então, para você, um típico e triste exemplo daquelas pessoas que tiveram a juventude roubada, durante a ditadura brasileira? 

Sim, sem dúvida nenhuma. E não só ela, como toda a sua família, que também teve que sair daqui, de Goiás, sendo obrigada a passar muitas dificuldades em outro estado. Os outros irmãos de Euler (eles eram 10, no total) também sofreram muito, porque quem era visto como irmão de comunista, no mínimo, sofria bullying em sala de aula. Comunistas eram considerados, naquela época, um verdadeiro terror. Então, por consequência, várias crianças tiveram a sua infância roubada, por também terem tido contato com essa situação, a qual eles não tinham capacidade de enfrentar. Há até um filme com esse nome*. Foram tantas crianças, tantos jovens envolvidos com essa luta e que, por conta disso, tiveram seus momentos roubados... 

* “Infância Roubada - Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil”, segundo referência encontrada, é o nome de um livro publicado, em 2014, pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, como resultado dos trabalhos da Comissão da Verdade. O filme "O ano que meus pais saíram de férias", de Cao Hamburger, levou a temática para as telas do cinema nacional, em 2006.

E depois de realizar essa sua primeira missão, o que aconteceu? 

Bom, depois que eu cumpri essa primeira missão, tendo vindo aqui trazer essas cartas, eu voltei o interior de São Paulo e comecei a ter contato mais sistemático com uma série de ideais voltados à transformação da sociedade daquela época. Até então eu tinha ideias em relação à necessidade de justiça social, mas, a partir dali, passei a enxergar que, para que isso fosse alcançado, era preciso que ocorressem mudanças estruturais. Compreendi que o sistema capitalista, em si, levava à desigualdade, porque para ele crescer e se fortalecer, era necessário que os recursos fossem concentrados na mão de poucos. Do ponto de vista econômico, o sistema capitalista só sobrevive se houver concentração de riquezas. Isso significa: concentrar a produção, concentrar o comércio, enfim, concentrar tudo. Percebi que, dentro do sistema capitalista, apenas o grande se sobressai e, para que ele se torne grande, ele precisa destruir os pequenos, que não conseguem sobreviver. Um exemplo que podemos citar, hoje, aqui no no estado de Goiás, é a JBS, que é um grande monopólio da carne. Para concentrar a compra da carne in natura, ela fechou vários frigoríficos menores e, hoje, controla um percentual enorme de toda a produção e venda da carne, porque consegue negociá-la por um preço melhor no mercado, quebrando, desta forma, a concorrência dos pequenos. É assim que ela sobrevive como um grande grupo econômico. E essa situação é insustentável, do ponto de vista social, porque não acontece só no ramo da produção de carne, que foi apenas um exemplo, mas acontece em todos os outros setores da produção econômica. Isso foi o que, precisamente, comecei a enxergar de forma mais clara, naquela época, à luz, sobretudo, de estudos sobre as obras de (Karl) Marx*. Também lia muito, naquele período, Marta Harnecker, que é uma socióloga chilena (também educadora socialista, tendo integrado o governo de Salvador Allende). E tinha ainda o Caio Prado Júnior, que é um economista da USP. O (ex-presidente) Fernando Henrique Cardoso também era outro teórico bastante lido pela juventude brasileira de esquerda.  

* Karl Marx foi o escritor do "Manifesto Comunista", junto com Friedrich Engels, e de "O Capital". Esta última, sua obra magna, acabou o consagrando como um dos mais influentes pensadores modernos, figura seminal dos ideais socialistas e comunistas que dominaram parte do pensamento político do século XX, ainda encontrando ressonância nos dias atuais.

Como você disse, eram todos pensadores de esquerda, portanto, considerados subversivos pelo sistema. Você não tinha medo de que também pudesse cair na mira dos militares?

Sim, eu tinha medo. Inclusive, houve momentos em que eu tive tanto medo que ele chegou a ser, assim, paralisante, sobretudo depois que eu me casei. Aí foi quando percebi, de fato, que eu e o meu marido estávamos correndo o sério risco de sermos presos e torturados. Mas nada disso era suficiente para me fazer parar, porque havia em mim um sentimento muito mais forte, o de que a vida tinha que fazer sentido e que, por isso, nós não podíamos cruzar os braços diante daquela situação. Ainda aos 18 anos, quando eu conheci meu marido, ele era da Ação Popular Marxista-Leninista, que a gente chamava de AP, e integrava também essa organização da qual eu participava, a Juventude Universitária Católica. A primeira vez que o encontrei, ele estava junto com o Honestino Guimarães, um estudante que, na época, presidia a União Nacional dos Estudantes (UNE). Honestino, que nasceu em Itaberaí (GO), era uma pessoa maravilhosa, estudiosa e inteligente. Cursava Geologia na Universidade de Brasília (UNB). Depois de três meses que nós nos encontramos, ele simplesmente desapareceu (após ser preso por quatro vezes pelo regime, sua morte, sem causa definida, ficou registrada como tendo ocorrido em 10 de outubro de 1973). A família nunca mais o viu, nem puderam dar a ele um enterro digno (o atestado de óbito só foi entregue à família de Honestino em 1996). Casos como esse, a gente via todos os dias no jornal. Havia, também, notícias plantadas no jornal: "o terrorista fulano teve um embate com a polícia e morreu", mas você sabia que aquela pessoa não era terrorista. Então não tinha como você viver tudo isso e não ficar sensibilizado. 

Você chegou a ter notícia do paradeiro de alguma dessas pessoas depois? 

De algumas delas, nada mais. Outras eu encontrei na clandestinidade, depois. Houve também muitos jovens que foram estudar fora do Brasil e lá se capacitaram, fizeram pós-graduação, doutorado. Porém, nós tínhamos a ideia, eu e meu marido, de que era preciso ficar no Brasil. Vários grupos foram para o interior do País, porque era difícil sobreviver nas cidades, onde as batidas policiais eram mais comuns. Muitos de nós não tínhamos, por exemplo, documentos básicos para que pudéssemos passar ilesos por uma vistoria dessas. E era muito comum você estar andando pela rua e, de repente, os policiais te mandarem encostar, pedindo documentos, com o intuito de descobrir algum "subversivo". Era assim que eles chamavam pessoas como nós, na época, os "subversivos". E, se você não tivesse os tais documentos, eles te levavam preso, na hora. Havia também muitos espiões nas escolas, travestidos de militantes. Você não sabia quem era da polícia e quem não era.

Deve ter sido um momento difícil de saber em que poder confiar, não?

Sim. A gente não sabia exatamente em quem confiar e, por isso, tínhamos que nos manter sempre muito atentos. Se a pessoa desse algum sinal suspeito, a gente se afastava. E houve muita injustiça, bem como outras situações que foram alvo de total inocência. Por exemplo: namorado entregando namorada. Uma mulher que ele dizia amar, que estava grávida dele e que, de repente, foi presa e torturada por denúncia do próprio companheiro. Assim, quanto mais o cerco começou a fechar para o nosso lado, mais militantes passaram a ir para o interior. 

Tanto você quanto o seu marido fizeram parte de grupos de resistência ligados à juventude católica. Ao que parece, a Igreja Católica, mesmo tendo  apoiado inicialmente o golpe e se silenciado diante de algumas das mais duras medidas do regime, a exemplo do AI-5, desempenhou, por outro lado, um papel fundamental de oposição à ditadura. Como você avalia essa atuação da igreja naquele período?

A meu ver, a igreja desempenhou, sim, um papel fundamental de oposição e resistência à ditadura. Para você ter ideia, até a sala onde a gente fazia as nossas reuniões era da igreja. Inclusive, foi, justamente, em uma dessas salas onde a minha cunhada ficou antes de conseguirmos tirá-la do País. A igreja protegia os perseguidos políticos. Dom Paulo Evaristo Arns era um ícone da luta pela democracia em São Paulo e, por isso, muitos perseguidos políticos procuravam ele. Tudo o que ele falava tinha um boa repercussão (nacional e internacionalmente). Ele organizou, inclusive, a busca de desaparecidos políticos*. 

* No dossiê intitulado "21 mitos sobre a Ditadura Militar", divulgado pela revista Superinteressante, em 2017, o jornalista Marcelo Horta diz, no tópico 15, o seguinte sobre o assunto em tela: "A Igreja não foi um sustentáculo da ditadura. Foi um campo de batalha que oscilou entre o combate ao comunismo e o combate à tortura. A mesma Igreja que apoiou o golpe, e que silenciou diante do AI-5, foi a que denunciou a tortura e gestou os movimentos sociais que definiriam a cena política da redemocratização – incluindo aí uma participação importante na criação do futuro Partido dos Trabalhadores".

Esse apoio foi importante para a decisão sua e de Euler de permanecerem no País? O que vocês fizeram a partir de então?

Sim, esse apoio foi um ponto decisivo para continuarmos na luta por aqui. Eu tinha já 20 anos quando resolvi largar tudo e seguir ele (risos). Isso se deu, mais ou menos, dois anos após termos nos conhecido. Naquela época, ele cumpria uma missão no sertão da Bahia, num lugar chamado Mato Grosso Baiano, que fica na Chapada Diamantina, ali próximo ao município de Nossa Senhora do Livramento. Bem no interior da Bahia mesmo*. Me lembro bem do que ele me falou, na ocasião. “Olha, eu agora tenho uma função a desempenhar nesse município. Seria importante que você fizesse aí, ao menos, o curso técnico de enfermagem, para que nós possamos ficar juntos logo. Não dá para esperarmos você acabar a sua universidade, e nem temos condições de namorar para podermos nos conhecer melhor. Infelizmente, não temos”, foi o que ele disse.

* Sobre esse período, Isaura registra a seguinte passagem em sua página pessoal na internet: "naqueles tempos, Euler Ivo levava uma vida rigorosamente clandestina no sertão baiano, com o nome de José Moreira. Ajudava seus companheiros na preparação ativa de um movimento armado".

E você decide se juntar a ele, então, naquele momento mesmo? 

Sim, porque nós já estávamos juntos, namorando. Como estava tudo muito recente, não era o momento ainda de falar em casamento, mas, como nós queríamos ficar juntos, não tivemos outra alternativa. Eu gostava dele e ele gostava de mim. Então, pronto, ficamos sem alternativa: ou casava ou juntava. Caso contrário, teríamos  que abandonar essa ideia de ficar juntos, porque ele morava em outro estado, outro local, e não podia nem sequer se comunicar comigo. Naquela época, a gente não tinha esse negócio de telefone, com Whatsapp. Era outra situação, completamente diferente. Diante disso, eu acabei chegando até os meus pais e dizendo: “olha, eu gosto de uma pessoa que está numa situação complicada. Para que eu possa conhecê-lo e saber se a gente realmente deve ficar juntos, eu tenho que ir morar com ele agora e queimar, portanto, essa etapa do namoro. Queimarei, inclusive, a minha identidade também, porque ele é militante e está na clandestinidade. A partir do momento que eu me juntar a ele, eu deixarei, automaticamente, de ser eu. Vou ter outro nome e, por isso, vou ter também que abandonar a minha família, porque eu não vou poder mais continuar mantendo contato com vocês”, expliquei a eles. 

Como foi a reação dos seus pais diante disso?

A primeira a se manifestar foi a minha mãe, que perguntou: “esse pessoal com quem o seu namorado está envolvido, eles são comunistas?” Eu respondi: “são”. Então, ela disse: “eu concordo”. E disse mais: “só que eu quero ir, nem que seja no bagageiro do carro, pra ver onde você vai morar” (risos). Digo isso para que vocês tenham uma ideia de quem era a minha mãe. Ela era católica, gente! Mas, na concepção dela, os comunistas que eram os verdadeiros cristãos. A minha família não era rica. Até porque com 14 filhos é difícil ser rico. Éramos, portanto, uma família de classe média. Meu pai era dentista e, como tal, cuidava de toda a família. Ele também concordou, mas exigiu que eu me casasse. Era um pré-requisito para poder sair de casa, eu tinha que me casar. “A Isaurinha não vai sem se casar”, dizia ele. Família religiosa e tal.

Mas naquela época tinha como casar mesmo na clandestinidade, com outra identidade e tudo?

Ter, não tinha. Mas como meu pai insistia, o que nós fizemos? Tivemos que encontrar um padre, de esquerda, que compreendeu a situação e concordou em me casar com uma pessoa com o nome falso. Àquela altura, inclusive, o nome era duplamente falso, pois a própria identidade que a minha família agora conhecia, também já havia sido trocada. Então ficou decidido assim: na certidão de casamento, o Euler assinou o nome que era da nova identidade falsa, mas, durante a cerimônia, o padre tinha que falar o nome que a minha família conhecia. Quando eu o apresentei para a minha família, o nome que ele usava era Paulo, mas, na nova identidade dele já constava o nome de José, que foi o nome que ele assinou nos papéis. E o nome dele, de fato, era Euler (risos). Mas, no caso, só eu sabia que era Euler, ninguém mais ali sabia dessa informação.

Então, vocês trocaram seus documentos, se casaram e foram viver no interior da Bahia. Como foi se deparar com uma realidade completamente diferente da sua?

Isso. Bom, aí você imagine eu, uma menina criada em cidades do interior de São Paulo. Entre Jundiaí e, principalmente, Campinas. Portanto, uma moça absolutamente urbana. Que não sabia nada, nada mesmo, sobre a vida na roça. E que, de repente, chega nesse local, que era praticamente uma aldeia, para vocês terem uma ideia. Imagino que vocês já tenham visto um presépio católico. Pois bem, esse lugar era como um presépio desses, com suas ruas de pedras cravadas no alto da serra. As mulheres casadas andavam, todas elas, de vestidos longos e lenços nos cabelos. O povo era tipo cigano, ao que me pareceu. As jovens não usavam o lenço, mas todas carregavam pendurado nas orelhas o mesmo brinquinho, que acho que até compraram juntas. Talvez porque uma achou bonito, as outras também acharam e todo mundo comprou. Ser mulher ali, era usar aquela roupa. Para não ser diferente, mandei fazer, também para mim, uns vestidos abaixo do joelho. Eu carregava água na cabeça, como todas as mulheres do local, e cozinhava numa boquinha desses bujãozinhos de gás. Mas as mulheres todas de lá cozinhavam no fogão de lenha... Antes, no entanto, de chegar ali eu fui, já com um dos vestidos que tinha mandado fazer para levar, ao cartório de Tatuapé - São Paulo, por onde passam milhares de pessoas por hora, e fiz novos documentos pessoais para mim, como se eu fosse uma menina pernambucana. Tirei a certidão de nascimento primeiro. Depois, com esta, a de identidade. 

E como foi que conseguiu? Foi fácil assim?

Bom, eu tive que encenar um pouco. Entrei de sandália havaiana e vestido abaixo do joelho, com cabelão, brincão e, simulando sotaque nordestino, disse para os atendentes: “vim tirá a minha identidade” (risos). Com a nova certidão e identidade na mão, eu segui para o interior da Bahia. A essa altura eu já era técnica de enfermagem. Havia conseguido me formar na primeira turma da Unicamp. A Unicamp, que até então só oferecia formação em cursos superiores, havia lançado, naquele período, cursos técnico em várias áreas e eu consegui me formar numa dessas primeiras turmas, por que o meu marido fez questão. A ideia é que, com isso, eu pudesse ajudá-lo já que ele atuava como farmacêutico lá naquela região.

As pessoas ali tinham conhecimento desse movimento todo? Faziam ideia do que se passava fora?

Não, não, não. Nadinha.

Fez sentido vocês dois trabalharem na mesma área?

Sim, porque lá, naquela época, mal tinha médico ou programa de saúde que atendesse a população local. Então, eu e meu marido passamos a ser a referência da saúde ali. Nós conseguimos muitas medicações, que eram amostras grátis, montamos nossa farmacinha e começamos a salvar vidas ali.

Era uma região muito carente pelo visto...

Sim, era uma região muito carente. Meu irmão, que era médico, deu um livro para o meu marido, da Merck Sharp (mais antiga empresa farmacêutica mundial, hoje presente em mais de 60 países; foi fundada na Alemanha, em 1668). Ali encontrávamos informações sobre todas as doenças e os seus respectivos tratamentos. E, assim, ele o estudava, tendo conseguido, com isso, ajudar muitas pessoas. Ele lia bastante. Sempre foi muito inteligente. Mas, é claro que houve casos em que ele precisou encaminhar a pessoa para um especialista. 

E ninguém por lá nunca levantou nenhuma suspeita sobre vocês? 

Com o tempo, por conta dos diagnósticos precisos, começamos a chamar atenção. Os médicos, que eventualmente passavam pela cidade, começaram a querer saber quem eram aquelas pessoa que estavam dando orientações tão certeiras para algumas doenças. Também chamamos a atenção do padre. Embora eu tivesse fotografia com vestido de noiva para comprovar, o padre da igreja local, que era de direita, passou a desconfiar de nós. Ele queria a certidão de casamento religioso. E isso nem existia, pelo menos não assim, desta forma: certidão de casamento religioso. O que serviu para a gente ver, por trás daquela atitude, a desconfiança dele. Para tentar eliminar a suspeita, nós saímos por uns dias da cidade e fomos atrás da certidão de casamento religioso, que conseguimos e levamos para ele. 

Falando um pouco mais sobre a vida nesse local. Você começou relatando, antes, sobre a situação das mulheres e a necessidade que teve de se adaptar, inclusive nos trajes, passando a usar vestimentas de características mais sertanejas, digamos. Citou também os hábitos culinários, de se cozinhar no fogão à lenha. O que mais chamou a sua atenção em relação à vida dessas pessoas? Que outros hábitos eram comuns naquela região, naquele tempo? Como era a rotina de vocês no local?

Em relação aos hábitos culinários, havia o café, que lá era feito sempre com rapadura. Uma vez por ano, todos faziam um tipo de bolacha que eles chamam de goma. É um biscoito, feito com muitos ovos, que as mulheres iam guardando. Era muito interessante. E todo ano, também, eles davam um jeito de pintar as suas casas, passando uma demão de cal. Por isso, eu falo: casa simples não é sinal de pobreza. As casas eram sempre todas branquinhas. Era a cultura da região. Apesar de eu ser totalmente diferente do meu marido, fisicamente falando, eles achavam que nós éramos parecidos, por causa da cultura, da forma de falar, da linguagem. Frequentávamos a igreja que ficava bem em frente da nossa casa. Morávamos numa casinha bem pequenininha, que ficava no fundo da nossa farmácia. Meu trabalho, geralmente, era voltado a aplicar injeção nas mulheres que precisava de maiores cuidados, especialmente aquelas que tinham acabado de ter neném, as quais eu também sempre orientava. Com isso passamos a ser muito queridos por lá. 

Quer dizer que tanto vocês se adaptaram bem à nova realidade quanto a comunidade também acolheu bem vocês, não é mesmo? 

Sim, certamente. Uma prova disso é que eu comecei a ser madrinha de batismo de muitas crianças, porque lá ser querido é, justamente, isso: ser comadre, ser compadre. Isso foi, inclusive, a razão pela qual o padre começou a pedir a nossa certidão de casamento religioso e a gente teve que dar um jeito de “ir buscar” (faz as aspas com as mãos). Acho que ele percebia que eu tinha cultura religiosa, mas que meu marido não, por isso, insistiu tanto. Quando nós voltamos dessa viagem, dessa em que saímos para buscar a tal certidão, vimos vários sinais no muro da rodoviária, mostrando que aquelas famílias, que tinham ido para lá também por razão das perseguições políticas, já tinham saído de lá, tinham ido embora. Para vocês terem uma ideia, lá tinha, por exemplo, engenheiro que estava trabalhando como consertador de relógio, advogado que estava vivendo como trabalhador rural e outros como comerciantes. Todos pertenciam à nossa organização, estando, portanto, com outros documentos, outras identidades. 

Que organização era essa, exatamente?

A priori, era a Ação Popular Marxista-Leninista, que depois se fundiu com o Partido Comunista do Brasil, o PCdoB (a Ação Popular foi, inicialmente, um grupo político, extraparlamentar, formado por jovens estudantes secundaristas e universitários ligados à esquerda cristã católica; foi criado em 1962). Essa fusão havia se dado justo no momento em que nos ausentamos do vilarejo em que vivíamos, para buscar os papéis solicitados pelo padre do local. Daí quando voltamos e vimos as escritas no muro, indicando que a gente precisava sair da cidade, eu fiquei muito abalada, porque eu havia me apegado àquelas pessoas da região. Como eu havia deixado a minha família, eu acabei construindo ali outra família para mim (Isaura permaneceu, ao todo, quatro meses na comunidade, que, segundo ela, ficava entre os municípios de Rio de Contas e Brumado, nas imediações da Chapada Diamantina).

E como eram exatamente esses tais sinais, que estavam pichados nos muros? Que reação imediata vocês tiveram após esse episódio? 

Entre nós, do movimento, havia sido combinado, que, se tivesse algum problema, alguém escreveria uma frase no muro da rodoviária, ou coisa assim. Quando chegamos à rodoviária, meu marido viu uma dessas frases, no muro. Em seguida, encontramos uma família da cidade, bastante próxima de nós, que nos perguntou:  “agora vocês vieram para ficar?”. E o Euler respondeu: “não, nós só viemos pegar as nossas coisas, porque o pai da Lilia precisa que a gente volte”. Meu nome, naquela ocasião, era Ana Maria e Lilia era o meu apelido. Aquilo ali me abalou profundamente.

Foi difícil sair dali, então? Como vocês fizeram? 

Foi muito difícil. Achei que não ia dar conta. Quando o carro contratado chegou no local, para pegar as nossas coisas e nos levar embora dali, eu perdi o movimento das pernas. Fiquei, pela primeira vez, em pânico, porque eu não sabia o que era isso, até então. Eu falei para o Euler: “eu não vou dar conta de andar, porque eu não estou sentindo nada da cintura para baixo”. Fiquei um bom tempo, assim, completamente paralisada. Até que o meu marido falou: “você vai dar conta, você tem que dar conta”. Um sentimento de perda me invadiu. Eu já tinha perdido uma família, e não queria perder outra. O pior é que comecei a me dar conta de que seria para sempre assim. Fiquei muito abalada. Só consegui levantar no outro dia. Aí botei as minhas coisas no carro. Tudo. Quando nós saímos com o carro, o lugarejo todo veio correndo atrás, chorando, pedindo para gente não ir embora. Foi uma cena de cinema, gente: o povo todo chorando. “Não vão embora, não vão embora", imploravam eles. Foi coisa de cinema, mesmo. Nunca vou esquecer (a título de curiosidade, a região mencionada por Isaura foi usada como cenário de locação para parte das gravações do filme "Abril Despedaçado", de Walter Salles; o filme ganhou projeção nas telas do cinema nacional em 2001).

E vocês conseguiram voltar lá nesse povoado depois?

Não, lá mesmo, não. Voltamos só até uma cidade próxima, que era onde estava morando a família que o Euler havia constituído assim que se mudou para lá, a fim de se integrar à população. Ao aconselhar um e outro, ele acabou ficou muito amigo dessa família, ficou sendo como parte dela, mesmo. A mãe, dona Etelvina, meio que o adotou, na época. Então nós voltamos, muitos anos depois, ao lugar, para visitá-la.

Ainda na ditadura ou depois?

Não. Bem depois, quando eu já era deputada.

E para onde vocês foram quando saíram desse vilarejo no sertão da Bahia? 

De lá, nós fomos para um local de transição, em Santos/SP, que, por ser uma cidade turística, onde circula muita gente, acabava que ninguém olhava muito para essa questão de documentos. Depois, nós passamos algum tempo em um local próximo à Ilhabela/SP. Ali ficamos, à espera de novas orientações. E quando elas chegaram, nós fomos enviados para a região Amazônica.

E como se deu essa orientação? Algum motivo especial para que o partido tomasse a decisão de enviar vocês para lá?

Aconteceu assim: um dia, nós nos encontramos com os dirigentes do partido. E eles falaram: “olha, a guerrilha do Araguaia foi aniquilada. Então, nós estamos achando que é o caso de vocês irem para outro lugar”. Antes, no entanto, eles me perguntaram se eu toparia ir para a região do Araguaia, ver se conseguia identificar alguém lá, que estivesse perdido e isolado. Mas, por já estar casada, eu não aceitei. Além disso, muitos acharam que eu não devia fazer isso, porque realmente ali estava havendo um foco de repressão muito intenso. Já tinha ocorrido toda aquela matança. Não sobrou ninguém, ninguém, ninguém. Raros os casos. Um dos exemplos é o do chamado Zezinho do Araguaia, daqui de Goiás. Ele é um dos poucos sobreviventes da guerrilha, de que se tem notícia até hoje. Na época, alguns conseguiram escapar. Mas foram realmente muito poucos. A maioria da juventude que estava lá morreu.

Você sabe como se deu esse movimento? Quais foram as suas origens e suas ações, até o seu total aniquilamento pelas forças de repressão do regime? 

Eles (os militares) disseram que havia essa guerrilha, que queria derrubar o regime. E usaram isso como pretexto para realizar um verdadeiro massacre. Eram apenas 60 jovens... E a polícia enviou 3 mil soldados! A polícia soube que eles estavam lá e chegou para matar. Ao ser atacado, o grupo revidou, porque não queria morrer de graça, vamos dizer assim. A princípio, o que eles fizeram foi se defender. Nada mais do que legítima defesa, portanto. Depois, resolveram fugir, e essa fuga durou três anos. Eles conseguiram até sobreviver por um tempo, dentro da mata. Isso antes de que o regime enviasse seus três mil soldados para lá. Apesar deles terem sido treinados para sobreviver a ataques da polícia, os números foram muito desproporcionais. Apenas 60 lutar contra 3 mil, não havia a mínima possibilidade.

Desse massacre, há mais algum sobrevivente que você lembre, para citar?

Sim. Por exemplo: o (José) Genoíno, que foi deputado federal pelo PT (de São Paulo; por sete mandatos), é um sobrevivente dessa guerrilha. Ele foi preso, torturado e conseguiu sobreviver. Me lembro também alguns dirigentes (do PCdoB), como o (João) Amazonas. Mas a maioria morreu por lá mesmo, em combate. Um exemplo marcante foi o de Maurício Grabois, que também perdeu dois filhos na guerrilha (um filho, de 27 anos, e um genro, na verdade). Tinha um médico muito querido, que também morreu lá, assassinado (trata-se de João Carlos Haas Sobrinho ou o "Dr. Juca", como era popularmente conhecido; tinha, na ocasião, 31 anos). Das mulheres, que também estavam atuando por lá, não sobrou uma. Foram todas mortas. Dentre elas estavam estudantes e dirigentes da UNE. Helenira Resende foi um desses casos (ela tinha então 28 anos).

Havia muitas mulheres no movimento comunista revolucionário? Elas eram normalmente bem-vindas ou havia muito preconceito também? 

Olha, o que posso dizer, a princípio, é que havia uma relação diferenciada entre os gêneros. Diferente do contexto geral, digamos. Existia um respeito. Tanto que a minha irmã, por exemplo, quando conheceu o meu marido, ficou admirada de ele ir lavar a louça. Isso, na época, era raro: ver homem que lavava a louça. Na verdade, a maior parte da sociedade, inclusive, achava mesmo era um absurdo homem lavar louça. Isso não existia. Mas, claro, todo sujeito é reflexo da sociedade de seu tempo. Uma mudança radical só vai haver quando realmente houver também outro sistema, com outra mentalidade. Digo isso para concluir, contudo, que obviamente havia machismo naquele contexto também. Mas o respeito era muito maior do que o que a gente via na maior parte dos lugares. Existia uma divisão de tarefas domésticas, no geral, muito mais equilibrada no meio dessas organizações de esquerda. Havia também, consequentemente, um maior respeito às mulheres. Mas não posso dizer que não existia machismo, só por se tratar de um partido comunista ou socialista.

Continuando a história… Então, vocês foram transferidos para a região Amazônica. Para qual local, exatamente?

Isso. Fomos para a capital do Acre, Rio Branco. 

E qual foi a sua primeira impressão ao chegar ali?

Engraçado, na época, o que era a capital do Acre? Era... (pensativa) Sabe o centro de Goiânia? Era como o centro de Goiânia. Como essa parte aqui do Palácio administrativo, com jardins e tudo muito bem estruturado, sabe? O centro era bem bonito mesmo, mas havia uma periferia extremamente pobre, com ruas de terra, completamente sem asfalto. E nós moramos numa parcela de terra que ficava no meio da estrada que ligava Rio Branco e Porto Velho (capital de Rondônia), num local sem nenhuma segurança (o lugar que o casal ficou, entre os anos de 1974 e 1979, ficava às margens da BR 364). Éramos, ali, dois casais, sendo que o outro marido, que constituía o segundo casal, já havia chegado antes. Nisto, ele comprou uma pequena parcela de terra sem escrituras. Tinha, portanto, apenas a posse de terra. Ficamos num paiol, por alguns dias, até meu marido e esse outro companheiro, que também era intelectual, construírem a casa para onde mudamos. As casas, nessa região, eram todas feitas de material da própria mata. Então, os esteios, as paredes eram de madeira de açaí, a cobertura de um tipo de palha mais resistente, que não ressecava tanto, e o chão de paxiúba (um tipo de palmeira encontrada na Bacia Amazônica cujas ripas, bastante resistentes, são utilizadas na construção de casas rústicas). 

Quer dizer: fica clara a necessidades que todos tiveram de sair das suas respectivas zonas de conforto. E como foi essa nova adaptação? Como levaram a vida por lá?

Bom, passamos a ter convivência com os seringueiros, que eram as pessoas que moravam às margens dessa estrada. A cada 500 metros, a gente encontrava a casa de um desses seringueiros. Esses trabalhadores viviam da venda da bola de borracha, que eles faziam a partir da extração do látex do seringal. Esse produto era vendido ao dono do seringal e, em troca, os seringueiros recebiam arroz, feijão e outros produtos, mas nunca dinheiro. O que acontecia ali, era exatamente aquilo que a gente estudava mesmo: a troca de mercadoria para a simples subsistência. Uma subsistência que era caríssima, inclusive. Cada trabalhador que levava, por exemplo, umas três bolas de borracha, voltava com alimento suficiente apenas para suprir as necessidades daquela semana. E toda semana ele tinha que fabricar novamente essa mesma quantidade de borracha, a fim de trocá-la pelo alimento que iria precisar consumir durante aquele mesmo período. Enfim, coisas de sobrevivência mesmo. 

E nesse local, morando à beira da estrada, vocês voltaram a trabalhar na área da saúde? Como vocês fizeram para sobreviver, desta vez?

Não, ali nós começamos a trabalhar com granja. No começo, a gente se reunia à noite, à luz de lamparina a querosene, para discutir o que nós íamos fazer. E nós decidimos então montar uma pequena granja. Para isso, nós voltamos até São Paulo e compramos as galinhas, dessas de raça americana mesmo. E levamos para criar lá no Acre. Ao final, a granja acabou dando muito certo. Nós conseguimos vender bem os ovos, principalmente, e, depois, investimos ainda no cultivo de feijão, que também deu muito certo.

E vocês faziam esse comércio com os donos dos seringais ou com os seringueiros?

Com as famílias, mesmo, que viviam na beira daquela estrada. Elas iam buscar pintinho, frango e ovos. Chega a ser até engraçado, porque a gente, que é criada na cidade, tem uma certa tendência a imaginar a estrada como um lugar vazio, ou onde as pessoas não têm contato umas com as outras, não? Mas ali há vida: festinhas, aniversários, batizados, mesmo as famílias morando distantes umas das outras. É assim: você vai andando oito quilômetros para chegar numa festa, três quilômetros para visitar sua comadre, entende? Há vida ali. Você pensa que não, porque geralmente passa e não vê ninguém na estrada.

Pelo visto, o movimento não dava nenhuma orientação nesse sentido, de como sobreviver nos lugares. Vocês eram mandados para locais distantes de suas origens e tinham que aprender a se virar por lá, é isso?

Sim. Nós tínhamos que aprender a desenvolver qualquer atividade para sobreviver. Primeiro nós chegávamos no local e, só assim, víamos o que era possível fazer ali. A gente sempre precisava se adequar à realidade. 

Na casa da Amazônia, quando vocês chegaram, houve algum tipo de estranhamento por parte dessas pessoas que lá moravam?

Sim, isso aconteceu principalmente comigo. Eu era a que mais chamava atenção, porque, a princípio, eles acharam que eu fosse cigana. Eu me recordo de umas cenas que ocorreram logo que a gente chegou, quando ainda estávamos no paiol, antes da gente ir para nossa casa definitiva. Lembro de, por exemplo, sempre que íamos acender o fogão à lenha, aparecerem uns menininhos da vizinhança. Eles chegavam, sentavam e falavam assim, apontando para mim: “ó os dentão dela”. (risos) Porque lá, gente, naquela época, era muito comum ver menina de 15 anos arrancar todos os dentes da boca e botar dentadura. Era como se isso fizesse delas pessoas mais valorizadas, digamos assim. Era uma tristeza. Agora deve ter evoluído, mas, naquela época, há 40 anos, era exatamente isso que ocorria lá.

Mas porque isso? Era por falta de acesso a tratamento dentário? 

Creio que sim, porque até já existia essa figura de dentista, na região, mas era só a elite que tinha acesso. Então, o pessoal da zona rural, os pais das meninas, especialmente, se sentiam na obrigação de pôr dentadura nas suas filhas. "Senão, elas vão acabar ficando encalhadas, porque senão o namorado vai ter que pôr, e eles não vão querer ter esse custo a mais", diziam.

Além dessa particularidade, como era a realidade das mulheres, no local?

Tudo era muito difícil. Mas tinha uma questão cultural muito peculiar, relacionada a esse assunto. As mulheres, ao mesmo tempo que eram muito oprimidas, também eram muito livres. Por exemplo: o caso de uma mulher casada que, de repente, se simpatiza com outro moço. Se o sentimento fosse recíproco, ou seja, se o moço também se interessasse pela mulher, ele a aceitaria, mesmo ela estando casada com outro. A aceitaria, inclusive, com os filhos dela e tudo. Ele chegaria bem perto dela e diria assim: “eu venho te buscar amanhã, tudo bem? E eu vou te roubar”. E ela responderia: “tudo bem”. E, assim, sem mais delongas, ela arrumaria as coisas dela, deixaria o marido e iria embora com o outro, levando os filhos.

E havia casos em que ela deixava os filhos com o marido ou ela sempre os levava?

Levava ou deixava com o marido. Mas o ponto chave é que ela sempre fazia a vontade dela, entendeu? Interessante, não? Mas, por outro lado, era, ao mesmo tempo, uma situação muito difícil, porque tinha seus riscos. Na medida que ela fazia isso, ela também ficava na mão daquele outro homem, fosse bom ou mau. Ela ficava sujeita àquele novo marido, porque era muito difícil voltar atrás, uma vez que o marido anterior ficava humilhado perante a comunidade. “A minha mulher fugiu com outro e tal”, a gente ouvia eles comentando. E a palavra usada era justo essa: fugir. 

Então, vocês foram sobrevivendo com os lucros da granja?  

Sim. Essa granjinha foi o que garantiu a nossa sobrevivência, minha e do Euler, naquele local. No caso do outro militante, esse que eu falei que era intelectual, ele passou a tirar fotografias, com um monóculo e uma câmara escura de tecido que a mulher dele fez. Acho que ele já fazia isso no outro local onde eles estavam. Ele tinha também aqueles líquidos que revelavam as fotografias. Ele também se saiu bem como fotógrafo. Fazia quadros de pessoas, daqueles tipos antigos, em que a foto ia para São Paulo e voltava o quadro com a fotografia, como se houvesse sido pintado (ela provavelmente se refere aqui à moldura em pôster de madeira).

Então, quer dizer que, por uma questão de sobrevivência, além de militantes, vocês também precisavam ser bons empreendedores? 

Tipo isso, mesmo. Fomos bons empreendedores. Mas, no início, a gente sempre passava muita dificuldade. No caso da granja, por exemplo, no começo, rolava até discussão para saber quantos ovos cada um podia comer, porque o objetivo maior era vender. Com o feijão foi a mesma coisa, tanto que o que era bom a gente vendia tudo. O que sobrava, o carunchado, era o que a gente comia (risos).

Vocês ficaram quanto tempo lá no Acre?

Nós ficamos cinco anos, de 1974 a 1979. Em 1978, nasceu a minha primeira filha, esta que hoje é vereadora, a Tatiana. Ela nasceu lá no Acre.

E como que foi ter uma filha num lugar assim com tão poucos recursos? 

Foi terrível, porque, além da gravidez, eu estava vivendo um profundo luto pela pela perda da minha mãe e de um irmão. Primeiro foi o meu irmão, que morreu num acidente de carro, junto com a esposa. Ele era recém-formado em Medicina. Minha mãe morreu três dias depois, vítima de derrame. Isso tudo ocorreu em 1976, mas fui saber de tudo só dois meses depois que minha mãe havia morrido. Ela sempre dizia que ia morrer se um filho dela morresse antes e, de fato, ela não suportou a morte do meu irmão. 

Como você recebeu essa notícia? 

Depois que o nosso companheiro foi a São Paulo e voltou com as cartas dando essa notícia. Eu fiquei um ano doente, muito transtornada, fumando muito. Fumava dois maços de cigarro por dia. Passado esse ano, meu marido chegou e falou: “agora chega. Já faz um ano que você está de luto, chega". 

E, após engolir o luto, você acabou engravidando, foi isso?

Não. Antes ainda, nós tivemos malária, porque lá é a região da malária. Nesse momento, nós já morávamos em outra casa, porque, a princípio, nós construímos uma casa para esse casal, onde também ficamos, por um tempo, e, só depois, é que construímos a nossa própria. E a nossa era do mesmo jeito, muito linda a casa. Se vocês entrarem no meu site, vocês vão ver. Era uma casa, assim, enorme, toda de palha e conectada a uma sacaria, que era o lugar onde nós armazenávamos todo o feijão, por nós mesmos, colhido. 

E, depois da malária, a gravidez? 

Isso. Engravidar, na verdade, era um plano que vínhamos tendo, naquele momento, somente porque, em 1978, começou a haver uma certa abertura política. Até então eu não tinha autorização para engravidar, porque, quando eu entrei no movimento, eu tinha me comprometido a não engravidar. Minha vontade de lutar era mais forte do que qualquer coisa. Mais forte do que a vontade de ser mãe, de fazer uma faculdade ou até de ficar com a minha própria família. Eu fui empurrada para uma situação, frente à qual eu não tive como fugir.

Essa determinação para não engravidar era uma espécie de medida de segurança adotada pelo movimento? 

Isso, para não fragilizar a luta. Porque foi o que acabou acontecendo com a guerrilha do Araguaia, inclusive. Uma menina ficou grávida e acabou desencadeando todo o processo que levou à derrota do movimento e à morte dos militantes envolvidos. Aconteceu que ela engravidou e não quis ficar mais por lá, quis voltar para Pernambuco, que era de onde ela tinha vindo. Quando ela voltou, acabou sendo presa com o marido, apesar de eles terem adotado todas as medidas de segurança. Ele foi tão torturado que acabou entregando várias coisas, porque os militares voltaram com ele para o local onde estavam escondidos e fez com que ele mostrasse tudo. Li o livro de um militar que fala sobre isso, sobre as torturas que fizeram com que esse jovem contasse tudo o que acontecia lá naquela região do Araguaia. O livro traz o relato desse militar. Coronel Pedro Lima, era o nome dele, se eu não me engano. Inclusive, em sua visão, ele chega a apontar excessos na condução daquela situação por parte dos seus colegas militares. “Por que fizeram desse jeito? Por que tinham que matar esse jovem? Ele já tinha entregue, já tinha falado...”, reflete, em certa altura.

Podemos considerar essa relato uma espécie de autocrítica, ou mesmo uma demonstração de arrependimento, por parte desse militar?

Bem… Ele falou que não conseguia dormir, por isso que ele escreveu o livro. Raro um militar não conseguir dormir. E você veja só, ele não conseguia...

Houve algum momento, durante esse período em que esteve na clandestinidade, que você se viu sozinha para enfrentar uma situação muito difícil? 

Sim. Eu me lembro de uma ocasião, em especial, que aconteceu quando estava grávida, inclusive. Numa certa altura da gravidez, houve um dia, em que meu marido estava fora, e chegou na minha casa um homem bêbado. Ele chegou e foi logo deitando lá na varanda. Aí eu peguei um pau de lenha, que era como a gente falava por lá. Era um desses pedaços de madeira que eu cozinhava no fogão à lenha. “Quem é esse homem? Vou dar uma paulada na cabeça dele”, pensei. E ele estava falando alto, sabe? “E se eu não der conta de dar essa paulada, ele vai me pegar”, pensei, logo depois. Então eu pulei a janela, que era alta, e corri para a casa da minha vizinha, que ficava dentro da mata. Meu marido havia feito, no caminho, uma bica para nós. Então era 100 degraus para descer e 100 para subir. Eu consegui chegar na casa da minha vizinha e falei: “comadre, tem um homem lá em casa". E expliquei como ele era e tal. Ela falou: “nossa, ainda bem que você veio, eu tava preocupada porque é um homem que tá estuprando todas as mulheres aqui na beira da estrada”. Com isso, deu tempo do meu marido chegar... 

Depois desse susto, como decorreu a sua gravidez? 

Com esse pulo pela janela, eu comecei a ter ameaça de parto prematuro. Embora, na opinião da médica, o problema maior não tenha sido o pulo, em si, mas sim o susto. Tive que ir para a cidade e fiquei na casa dessa outra amiga nossa, cujo marido era fotógrafo. Eles estavam morando lá, nessa época. Tive anemia, coisa séria. Quase morri no parto, que fiz com uma parteira, porque a médica que estava disponível por lá me cobrou 12 mil não sei o quê. Acho que era o cruzado, na época (entre os anos de 1967 e 1986, a moeda em circulação, no Brasil, foi o Cruzeiro Novo). Enfim, era um valor muito alto. Embora eu tivesse o dinheiro, eu pensei assim: "se a minha mãe teve filho com parteira, por que motivo eu vou gastar meu dinheiro? Eu vou comprar enxoval, coisas que eu preciso, berço, carrinho, essas coisas”, e dispensei a médica e fiquei só com a parteira, no hospital. Tive uma hemorragia tão intensa que durante todo o parto, praticamente, eu só ouvia o barulho do sangue.

E como você se recuperou desse parto difícil?

No dia seguinte ao parto, eu não conseguia levantar. O que não era normal, porque, quando tudo sai bem, é natural que a mulher, pouco tempo depois, consiga levantar e vá tomar banho, para que possa então pegar o neném. Mas eu saí do hospital na cadeira de rodas. E, desta forma, eu fui levada para casa. Passou uma semana e, ainda assim, eu quase não conseguia levantar. Depois de 15 dias, meus pontos ainda não tinham caído, e eu voltei ao hospital. Chegando lá, encontrei uma enfermeira, que falou assim: “você perdeu meio balde de sangue, como é que você acha que pode estar de pé?”. Aí eu desabei a chorar, tamanha a indignação que senti, naquele momento. Fui até a diretora do hospital, que me atendeu muito bem: tirou meus pontos e me receitou várias injeções de ferro. Eu fiz tudo conforme ela havia recomendado, mas não adiantou. Dois meses depois, eu tive que tomar sangue e só então fiquei melhor.

E como fez para cuidar da sua filha, Tatiana, nessa situação?

Olha, enquanto mulher, eu passei por uma situação que sequer imaginava. Nesse tempo, eu passei a morar em outra casa, na cidade, mas continuávamos mantendo a casa lá da estrada. Essa casa da cidade era pequenina, e eu ficava lá o tempo todo, cuidando da Tatiana.  Ficava sozinha com a minha filha, porque o meu marido tinha que passar o dia trabalhando. Ele passou, nesse período, a trabalhar também como fotógrafo. Nós passamos muita necessidade, nessa época. Eu tomava muito remédio para curar a anemia e acabei desenvolvendo uma alergia ao medicamento. Por isso, eu tinha que tomar Fenergan. Minha filha chorava muito e, em um determinado momento, eu cheguei a pensar em doá-la. Nunca imaginei que chegaria a esse ponto. Até então, eu sempre condenara a mãe que doa o filho. Mas eu estava tão perturbada, tão fraca e deprimida, que eu pensei em dar a minha filha. “Eu não dou conta. Não vou dar conta”. Lembro-me direitinho do momento em que eu que comecei a pensar assim, que eu não daria conta de criar ela. Às vezes, a gente vê uma mulher que toma esse tipo de atitude, porque passa por dificuldades, e a condena. A gente nem imagina o quão difícil é viver uma situação dessas. Só vivendo algo do tipo para conseguir compreender essa sensação. E eu posso dizer, porque passei por isso. Era uma fraqueza tão grande, que eu fiquei mesmo, assim, meio fora da realidade. Estava realmente bem deprimida. 

Você tinha quantos anos quando teve a sua primeira filha?

Eu casei com 20, e tinha 24 quando eu tive a minha primeira filha. Ou seja: quatro anos depois (Tatiana Lemos nasceu em 28 de dezembro de 1978 e foi registrada em Campinas/SP). 

Parece que existe uma incidência grande de depressão pós-parto entre as mulheres...

É, há mesmo. E hoje eu sei, porque todas as minhas filhas tiveram. Todas as minhas três filhas. Mas eu sobrevivi, e elas também. 

Mas, voltando à história… Antes, você estava dizendo que resolveu engravidar, em 1978, porque aquela altura o regime começa a dar sinais de abertura política...

Isso. Em 1978, começou a haver sinais de mudança. A gente ouvia muito rádio. Era através dele que a gente sabia o que estava acontecendo no mundo da política. Nós tínhamos um rádio potente, que a gente comprou especialmente para ouvir as notícias de nosso interesse. A gente ouvia rádio chinesa, de Pequim; e até da Albânia, que, na época, também era um país socialista*. Foi ouvindo, por exemplo, a rádio Bandeirantes que eu fiquei sabendo das manifestações de operários que estavam ocorrendo no ABC Paulista, e que estas estavam sendo lideradas por um metalúrgico, o Lula**.

* Durante a Guerra Fria, período histórico que se estendeu do final da segunda Guerra Mundial (1945) até a extinção da URSS (1991), o mundo socialista era composto por todos os países que faziam parte do Pacto de Varsóvia. Liderados pela União Soviética  (Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e Transcaucásia), integraram esse bloco: a Polônia, a Alemanha Oriental, a Tchecoslováquia, a Hungria, a Romênia, a Bulgária e a Albânia, todos esses países do leste europeu; assim como a China Comunista (até a década de 1960, quando houve um afastamento dos soviéticos), Cuba, o Vietnã  e a Coréia do Norte (que se aproximaram após o sucesso de suas revoluções). Como havia também movimentos revolucionários, apoiados pelos soviéticos, espalhados por quase toda África e Oriente Médio, as forças políticas de muitos países da região, como o Afeganistão, Angola, Moçambique e os membros da ANC (principal e um dos mais antigos partidos políticos da África Sul, que teve Mandela como grande expoente), por exemplo, apoiavam ou eram apoiados pelos socialistas.

** Levado pelo  seu irmão, Frei Chico, já, à época, um militante comunista, Lula começa as suas atividades como sindicalista em 1968, de onde sai, no ano seguinte, eleito para ocupar o primeiro cargo de um dos sindicatos dos metalúrgicos do ABC Paulista. Mas, só viria, no entanto, a se destacar no cenário político nacional em razão da abertura dada pelo militares a partir de 1978, quando passa a liderar as amplas greves e manifestações operárias que tomaram conta da região até 1980. Liderados por Lula, os grevistas do ABC, que protestavam, sobretudo, contra as políticas de arrocho salarial vigentes no período, acabaram influenciando outras categorias ao redor do país, como bancários, petroleiros e professores, a se organizarem em movimentos trabalhistas similares, o que acabou aumentando ainda mais a pressão pela redemocratização no Brasil.

O Lula já era uma grande figura da oposição naquela época? 

Sim. Ele tinha sido preso*. Depois foi solto e tal. Foi ouvindo essas notícias, que eu comecei a acreditar na possibilidade de estar havendo uma abertura política. Na época, tocava muito aquela música do Chico (Buarque), "Cálice". Eu lembro de ter ouvido muito essa música tocar. Eu ouvia tudo quanto é música, adorava MPB! Logo veio uma orientação dizendo que nós já podíamos voltar.

* Por liderar, a partir de 1978, greves em larga escala dos metalúrgicos do ABC Paulista, Lula foi preso, cassado como liderança sindical e processado em nome da Lei da Segurança Nacional (na época, estava em vigência a Lei 6.620, de 17 de dezembro de 1978). Recebeu, na ocasião, apoio de outros sindicalistas, intelectuais, representantes dos movimentos sociais e militantes católicos da Teologia da Libertação. Desse amplo apoio viria a criar, então, o Partido dos Trabalhadores (PT), do qual foi o primeiro presidente e pelo qual viria a se eleger Presidente da República anos mais tarde (em 2002). Lula permanece fiel aos quadros da legenda até os dias atuais.

Se fosse para resumir, em poucas palavras, a missão de vocês, nesse período, o que diria?

A gente construía uma base e mantinha uma integração com o povo local, sempre buscando respeitar, ao máximo, tudo o que eles faziam. Com isso, procurávamos sempre dar o apoio e a ajuda que se fizessem necessários. Em suma: ser solidário. Isso tudo para que, caso houvesse qualquer possibilidade de repressão popular, nós estaríamos ali junto com eles, dando-lhes o devido apoio. Por exemplo: quando nós chegamos lá (no Acre), o Euler acabou sendo preso. Um pessoal de Cuiabá estava lá na região, tomando terra daqueles posseiros humildes. Chegaram colocando fogo em todos os barracos. Estupravam as meninas jovens. Então, os gaúchos que moravam lá - e tinha muito gaúcho morando naquela região - chamaram o meu marido para ajudar a defender o povo local. Mas, quando meu marido chegou lá, os gaúchos já tinham acabado com os cuiabanos. Acontece que a polícia chegou, prendeu todo mundo, os cuiabanos e também os gaúchos. E o Euler acabou indo junto por ser confundido com um gaúcho também, provavelmente, visto que ele é alto e de pele clara. Não conseguiram identificar quem ele era, de fato. A documentação dele passou, tranquilamente. Então, era importante que estivéssemos lá para poder ajudar a enfrentar situações como essas, inclusive, que, em outras palavras, envolvia a aplicação, na prática, da teoria da justiça social, que tanto defendíamos, no movimento.

Até que viesse a abertura política, vocês continuaram no Acre? O que fizeram nesse período?

Na verdade, permanecemos por lá por mais quase dois anos depois que a Tatiana nasceu. Depois de alguns meses na cidade, com ela recém-nascida, nós voltamos para a nossa casa de posse, aquela que ficava na beira da estrada. Nessa época, eu lembro que comecei a entrar na mata sozinha. Até então eu nunca tinha feito isso. Mas aprendi a entrar, para fazer o que tinha que ser feito: ajudar a tirar palhas para levar para os frangos pisarem. Assim eles não sujavam tanto o terreno, porque a gente ia trocando as palhas. Então, dessa forma, aos poucos, eu fui conseguindo superar aquela depressão inicial da maternidade. Na sequência, nós começamos também a plantar tomates para vender, apesar desse tipo de plantação lá ser dificílimo, por causa dos insetos. Mas, ainda assim, nós conseguimos produzir alguns tomates, que vendíamos lá nos restaurantes da beira da estrada. Desta forma, nós fomos conseguindo sobreviver por mais um tempo. Mas houve momentos de grande escassez, em que a gente só tinha banana para comer, por exemplo. Se vocês um dia tiverem acesso às minhas fotos dessa época, especialmente aquelas tiradas durante a minha chegada de volta a Campinas, poderão ver o quanto eu estava esquelética. Só tinha pele e osso, sobretudo porque, nesse período, realmente houve ocasiões em que eu deixava de comer para poder dar à minha filha.

Quais recordações a sua filha guarda deste período? Já chegaram a conversar sobre isso?

Sim. Ela fala que lembra de me ver guardando as papinhas no armário e que ficava com vontade de comer. Olha que ela era pequenininha mesmo e, ainda assim, consegue lembrar disso. Acontece que, lá no Acre, não se produzia legumes. Tomate, alface... Nada disso era produzido lá, por causa dos insetos, como eu estava falando. Tudo vinha de São Paulo e era vendido no único supermercado, de melhor qualidade, que havia lá na cidade. As únicas coisas que a gente conseguia produzir bem por lá eram jiló, quiabo, abóbora e mamão. Inclusive, a gente fazia mamão verde como se fosse chuchu, não sei se vocês sabem disso. Assim, o que a gente comia, no dia a dia, era basicamente isso: chuchu com arroz. E, para complementar, a gente comprava, eventualmente, um peça de charque, que é aquela carne salgada e prensada. Frango, a gente só comia de vez em quando, porque, no geral, o que se tinha, nós guardávamos para vender. No período que nós moramos na cidade, nesses poucos meses em que a minha filha era ainda neném, eu peguei o hábito de comprar para ela aquelas papinhas, que ela hoje diz lembrar, não sei bem como, de me ver guardando quando eu chegava do supermercado. Eu lembro de dar a papinha e ela comer desesperada. Nunca vi até hoje uma criança comer assim! Mal dava tempo de eu levar a colher à boca dela.... Para você ver o tanto que ela estava desnutrida. 

E quando vocês saíram de lá? Voltaram para o interior de São Paulo ou vieram ficar com a família do Euler, em Goiás? 

Isso foi lá para o final do ano de 1979, quando Tatiana já tinha um ano e oito meses. Foi quando tivemos a segurança de que, de fato, já havia mais abertura política e sentimos que poderíamos voltar. Nós fomos primeiro para Campinas. Chegando lá, eu pensei: “agora eu tenho que fazer uma faculdade, para ter a minha profissão com carteira assinada”. Só que meu marido queria vir logo para Goiás, porque fazia 12 anos que ele não colocava os pés aqui, que não via a família dele. Aí eu tomei a seguinte decisão e disse para ele: “olha, eu vou tentar conseguir um emprego aqui em Campinas. Eu fico um tempo aqui, até conseguir ter uma experiência com carteira assinada. Depois disso, eu posso ir para Goiânia e tentar arrumar um emprego por lá”. Porque a verdade é que nós voltamos com uma mão na frente e outra atrás. Umas panelas 'véia', umas roupas 'véia' e uma filha para criar...

Nesse momento você já tinha recuperado a sua identidade verdadeira?

Sim. Quando eu voltei para São Paulo, o meu nome já era Maria Isaura. Já estava, portanto, com a minha documentação original. Só o Euler que não, e eu continuava casada com o José Moreira (risos). Ele não tinha conseguido recuperar ainda a documentação dele. Na prática, então, eu era casada e ele, solteiro. Porque quem era casado comigo era o tal José. O Euler mesmo não tinha nenhuma certidão de casamento em seu nome, percebe? 

Como foi esse recomeço de vida depois de sair da clandestinidade? 

Quando voltei para Campinas e reencontrei os meus irmãos, percebi que todos tinham “virado classe média”. E aí chega a Isaura: a irmã pobre, lascada (risos). E fui morar com o meu pai (segundo Isaura, seu pai também chegou a ter um certo destaque na carreira política, como vereador no município de Jundiaí). Ele tinha um apartamento, onde morava sozinho, desde a partida de minha mãe. Então, ele acabou achando até bom que eu fosse morar com ele. O problema passou a ser o Euler, que ficava o dia inteiro lendo. Ele não podia arrumar um emprego, visto que ainda vivíamos na ditadura militar.

Ele ainda era procurado?

Sim, apesar da abertura, ele ainda podia ser preso. Isso foi ainda em 1979. Então, sobrou para mim ter que sair em busca de emprego. Fui trabalhar, na época, no hospital Santa Casa de Campinas. Aluguei então um barracãozinho perto da casa da minha irmã. O Euler, que logo recebeu sinais de que poderia começar a procurar emprego, veio para Goiânia ver o que conseguia. Eu trabalhava das seis da manhã às três da tarde, chegando em casa às quatro. Aí surgiu o novo dilema: quem cuidaria da Tatiana enquanto eu trabalhava? A minha irmã, que estava grávida, passava mal o tempo todo. Tive que sair na rua procurando pessoas que pudessem cuidar da minha filha, porque, na época, não tinha esse negócio de creche. Até havia, na verdade, mas era para pouquíssimas crianças. Depois de um tempo procurando, eu encontrei uma mulher que disse: “eu posso olhar a sua filha, só que você tem que deixar ela passar o dia aqui comigo, porque eu despacho meus filhos para a fábrica logo cedo e preciso fazer as marmitas deles. Enquanto eu cuido dos meus afazeres, eu consigo olhar ela para você”. Imagina, minha primeira filha! “Não, não dou conta, não”, pensei. Saí da casa da mulher e, quando eu estava dobrando a esquina, a minha irmã, que estava junto comigo, falou assim: “aceita, você não tem outra saída”. Então, eu voltei chorando até a casa da mulher e perguntei: “do que você precisa?”. Ela respondeu: “traz um berço”. E eu comprei um bercinho e pus lá para ela. No primeiro dia, eu deixei a minha filha lá, chorando, e fui embora, de coração partido. 

Todos os dias você levava sua filha para ficar na casa dessa senhora? 

Sim. E depois, todos os dias, ao final do trabalho, eu ia direto à casa dessa senhora para pegar Tatiana. Quando chegava na minha casa - esse era o momento mais interessante, a casa limpinha, porque essa mulher também arrumava um jeito de ir lá todos os dias. Ela organizava tudo direitinho e ainda deixava uma comida deliciosa para mim na panela, normalmente uma sopa. A roupa, que ela também lavava, ficava igualmente perfeita, bem limpinha. Ao ver tudo isso, eu pensei: “gente, que sorte que eu tive”! Mas, sabe o que aconteceu, então? Nessa peleja toda, eu descobri que estava grávida de novo. 

Nossa, justo quanto parecia ter encontrado certo sossego! Como foi encarar essa outra gravidez, ainda em meio a tanta dificuldade?

Fiquei morrendo de vergonha por ter engravidado de novo, em meio a toda essa dificuldade. É outra coisa que a gente, por ser mulher, passa. "Como é que eu ia me manter no serviço"? Eu, então, me perguntava. Não tinha nem tempo de experiência suficiente ainda… Um dia, tive que chegar nas enfermeiras do hospital e falar: “olha, vocês vão ter que deixar passar meu exame de urina”. Elas opuseram: “não, nós não podemos”. E eu pressionei: “vocês vão passar sim. Ou vocês não gostam de mulher? Porque eu estou grávida, mas preciso trabalhar”. Por conta desse meu apelo, elas deixaram passar o tal exame, que, por isso, não chegou ao conhecimento do diretor. E, assim, eu consegui permanecer no hospital trabalhando. Não bastasse isso, aos seis meses e meio de gravidez, eu comecei a incitar uma manifestação no hospital, por causa da diferença de salário que havia entre as enfermeiras, onde umas, como eu, chegavam, inclusive, a ganhar metade do que outras ganhavam. Fiz um abaixo-assinado para igualarem o nosso salário e fui pega, nesse dia, pela direção, de barrigão e com o abaixo-assinado nas mãos (risos). As minhas colegas, que já tinham sido pegas pela diretoria, sob pressão, acabaram me entregando. Isso foi o que me disse a coordenadora do hospital, na ocasião: “olha, as suas colegas estão falando que a ideia do abaixo-assinado foi sua”. E eu assumi: “admito, foi mesmo. Elas não têm nada a ver com isso. A ideia foi minha”. A coordenadora emendou, então, dizendo: “pois a senhora vai ser demitida”. E fui. Eles pagaram meus direitos até nove meses, fora os três meses de licença a que tinha direito, na ocasião. Com isso, eu fiz minha mudança para Goiânia. Eu tive a Maíra lá, em Campinas, e depois, quando ela completou, mais ou menos, 20 dias de nascida, eu me mudei para cá (Maíra Lemos, a segunda filha do casal, Isaura e Euler, nasceu em 19 de julho de 1980 e seria registrada já na Capital goiana). 

(...)

Essa história não acaba aqui. A continuação dessa interessante narrativa você poderá acompanhar, nas próximas semanas, também, aqui, no site oficial da Alego. 



Redação: Luciana Lima
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