Emoção em verso
Onze dias antes do Dia Nacional da Poesia – que desde 2015 é celebrado oficialmente em 31 de outubro, em homenagem à data de nascimento de Carlos Drummond de Andrade –, comemora-se, neste dia 20, o Dia do Poeta.
Trata-se, neste caso, de data extraoficial, referente à reunião, em 20 de outubro de 1976, na casa de Menotti Del Picchia, o pintor, romancista, jornalista e advogado, que havia sido um dos expoentes do movimento modernista meio século antes. Na reunião dos anos 1970, foi fundado o Movimento Poético Nacional.
Dos vincos faciais da quase centenária Cora Coralina (1889-1985) ao copioso bigode do morto precocemente Paulo Leminski (1944-1989) e o cigarro boêmio de Vinícius de Morais (1913-1980), não faltam poetas nacionais para serem lembrados neste dia 20.
Escreve a goiana Cora Coralina em “Todas as vidas”:
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum.
Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai de santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute benfeito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras.
Paulo Leminski era mestre do haicai, a forma curta de poesia japonesa surgida no século 17. O curitibano tinha gosto pelo reflexivo, pelo espirituoso, pelo enigmático:
amar é um elo
entre o azul
e o amarelo
Ou:
viver é super difícil
o mais fundo
está sempre na superfície
Também escreveu famosamente que “haja hoje para tanto ontem”, e deixou como legado poemas como “Bem no fundo”:
No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
Vinícius de Morais, que dispensa apostos, deixou milhares de versos tão musicais quanto “De repente não mais que de repente / Fez-se de triste o que se fez amante / E de sozinho o que se fez contente” (trecho de “Soneto de separação”).
O escritor Ruy Castro recentemente disse, em crônica, invejar o diplomata brasileiro do século XIX Francisco Otaviano pelos versos de “Ilusões da Vida”:
Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu,
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem, e não homem,
Só passou pela vida, não viveu.
Goiás tem, é claro, muito mais que Cora Coralina na poesia. No início de “Composição”, Gilberto Mendonça Teles versifica que:
O amor põe suas mágicas
em funcionamento.
O amor compõe, propõe, supõe,
indispõe e interpõe,
sua adaga entre o ser
e o vazio do vício
(a ser-viço do amor).
(...)
Ganhadora do troféu Jaburu em 2020, Lêda Selma fala, nos primeiros versos de “Goiânia Morena”, da:
Goiânia morena
de corpo esguio
e ancas largas,
de manhãs soltas ao vento,
de tardes acaloradas
de ventre escancarando
a prenhez de sol e flores
(...)
Da geração goiana mais nova, Lucão aposta em poemas curtos de tom tão poético quanto aforístico:
Viver é uma eterna despedida
do que somos agora
para o que vamos ser
em seguida.
O estilo de Lucão lembra o do paulista Zack Magiezi, que poetiza, por exemplo, que:
maturidade
é procurar
profundidade
antes de mergulhar de cabeça
Um representante da vertente mais irônica da poesia entre os escritores é Gregório Duviviver, autor, entre outros, do livro “Sonetos de amor e sacanagem”. Abaixo o “Soneto do confinamento”:
Passamos muitos meses em clausura,
enjaulados tal qual leões ao léu,
cultivando camadas de gordura,
sacolas besuntadas de álcool gel.
Lembro do cheiro eterno de fritura
e Pinho Sol Limão — sabor motel.
A vida pode ser bastante dura
num apê sem nenhum acesso ao céu.
Passamos o ano todo na faxina
esperando surgir a tal vacina
lavando compras com sabão na pia.
Se eu não tivesse uma família enorme,
eu teria bebido Lysoform.
O paraíso, Sartre, é a companhia
Há também, é claro, as poetisas da nova geração, como Luiza Romão, vencedora do prêmio Jabuti de 2022 com “Também guardamos pedras aqui”. Em outro de seus livros, “Sangria”, seu poema “américa” diz:
uma mulher não é um território
mesmo assim
lhe plantam bandeiras
uma mulher não é um souvenir
mesmo assim
lhe colam etiquetas
mais que nuvem
menos que pedra
uma mulher não é uma estrada
não lhe penetre as cavidades
com a fúria
de um minerador hispânico
o ouro que lhe brota da tez
é antes oferenda
que moeda
uma mulher descende do sol
ainda que
forçada à sombra