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Isaura Lemos - 2ª parte

29 de Maio de 2020 às 09:40
Crédito: Agência de Notícias
Isaura Lemos - 2ª parte
Projeto Mulheres no Legislativo entrevista ex-deputada Isaura Lemos
O projeto Mulheres no Legislativo traz a 2ª parte da entrevista da ex-deputada Isaura Lemos. Ela comenta seu legado, construído enquanto parlamentar que mais mandatos teve no Parlamento goiano. Ela explora, ainda, diferentes aspectos da história do comunismo mundial e da atualidade.

Com mais de quatro décadas de história de vida ligadas à política, iniciada em sua militância contra a ditadura militar brasileira (1964-1985), a ex-deputada Isaura Lemos nos apresenta relatos que estão longe de expressar apenas as impressões de uma indelével trajetória de lutas pessoais. O que se revela nesta narrativa, cuja primeira parte foi divulgada neste portal, no último dia 31 de março, parece ter muito a dizer sobre o momento presente, na medida em que explora importantes aspectos, ainda hoje relevantes, da geopolítica mundial. 

Ao abordar temas que perpassam, também, a história do comunismo, ideologia com a qual se mostra profundamente alinhada, Isaura oferece, ao leitor atento, uma importante pista sobre as disputas ideológicas que dividem o mundo contemporâneo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e que marcam a entrada do período conhecido como Guerra Fria. É assim que acontecimentos como o fim da União Soviética, a queda do muro Berlim, o bloqueio comercial imposto a Cuba, dentre muitos outros, vão surgindo como pano de fundo dos relatos apresentados nessa segunda parte da entrevista concedida ao projeto Mulheres no Legislativo da Alego. 

Com memórias que fazem de Isaura um verdadeiro arquivo vivo, a ex-deputada goiana dá continuidade à sua narrativa, tendo agora, como ponto de partida, a sua chegada ao estado de Goiás, o que se deu logo no início dos anos 1980. Demonstrando muita segurança nas suas escolhas, ela responde, com expressiva disposição, os assuntos abordados pelas repórteres da Agência Assembleia de Notícias, passando, com serenidade, até mesmo pelos mais espinhosos, como se poderá notar. 

Isaura aborda, inclusive, a sua proeminente participação no processo de reconstrução do PCdoB em Goiás, após os 20 anos de clandestinidade que lhe foram impostos pelo regime militar. “O partido estava destroçado e dele já não restava quase nada", comentou Isaura, numa espécie de preâmbulo da nova missão que teria pela frente já nesses primeiros anos de sua chegada em Goiânia. 

Para nos dar a exata dimensão das repressões perpetradas pela ditadura, Isaura cita, por exemplo, o desaparecimento do camponês e ex-deputado estadual Zé Porfírio, em 1973. “Ele foi a Brasília tratar de umas questões e simplesmente desapareceu, nunca mais foi encontrado pela família”, comentou. Figura notória e grande líder do campesinato goiano, Zé Porfírio foi deputado na Alego durante a 5ª Legislatura (1963-1967). “Não existe sequer um registro claro da atuação do ex-deputado no Parlamento, porque muitos dos arquivos daqueles tempos foram queimados”, arrematou Isaura, encerrando comentário sobre o caso. 

Ex-integrante da Guerrilha do Araguaia, Porfírio esteve, anteriormente, diretamente ligado ao Movimento Político de Trombas e Formoso. Marco na luta dos trabalhadores rurais em prol da reforma agrária, o evento, deflagrado no Norte de Goiás, a partir da década de 1950, foi totalmente desmantelado durante a ditadura, tendo várias de suas lideranças perseguidas, presas, torturadas e, até mesmo, mortas.

Isaura voltou, inclusive, a lembrar, nessa ocasião, do caso de outros militantes goianos desaparecidos naquele período, tais como Honestino Guimarães, que foi o presidente da União Nacional do Estudantes (UNE), citado na primeira parte dessa entrevista. “Temos um histórico muito grande de casos, aqui em Goiás, que poderiam ser documentados e revelados, sobre essa questão da violência durante o período da ditadura”, frisou. 

Essa teria sido, inclusive, uma das razões que levariam a ex-deputada a apresentar, na Casa, no início de seu quarto mandato (2011), projeto de resolução propondo a criação de uma Comissão da Verdade, em Goiás, para colaborar com a Comissão Nacional da Verdade, criada pela Lei nº 12.528, de 2011. Apesar de seus esforços, a matéria não ganhou força entre seus pares e não chegou sequer a ser votada em Plenário, ficando retida na Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Alego (CCJ).

Ao citar esses exemplos, Isaura nos fornece, portanto, a dimensão das motivações que a levaram a atuar no processo de reconstrução, em Goiás, da sigla que hoje preside. Criado em 1962, por dissidência do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o PCdoB foi colocado na clandestinidade em 1965, por intermédio do Ato Institucional n.º 2, que extinguiu o pluripartidarismo e instituiu o bipartidarismo no Brasil. 

Com isso, o regime militar vigente manteve, por 12 anos, na legalidade, apenas dois partidos, sendo um partido de base governista e um de oposição: a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), respectivamente. Mesmo com o fim do bipartidarismo, em 1979, o PCdoB só voltaria, no entanto, à sua plena atuação política em 1985, quando conseguiu, finalmente, disputar novas eleições municipais. No ano seguinte, esse elegeria também uma pequena bancada no Congresso Nacional, tendo contado, posteriormente, com três representantes na Câmara Federal, durante o processo da Constituinte (1987-1988).

Anos mais tarde, porém, divergências políticas levariam a ex-deputada a se ausentar dos quadros do partido. Durante esse período, que foi de 1998 a 2011, ela ficaria filiada ao PDT, onde também atuou como presidente regional, ao longo dos mais de 10 anos anos em que ali esteve. A legenda, considerada de centro-esquerda, portanto, mais moderada do que o PCdoB, está, a nível nacional, fortemente ancorada na figura de seu fundador, Leonel Brizola, falecido em 2004. Figura de notória habilidade política, ele alcançaria um feito até hoje inédito na história do País: foi o único político, eleito pelo povo, a ter governado dois estados brasileiros  (o Rio Grande do Sul, de 1959 a 1963; e o Rio de Janeiro, de 1991 a 1994). 

Foi pelo PDT que Isaura disputou e venceu a sua primeira eleição, em 1998, assumindo uma cadeira como deputada no Plenário da Alego, em 1999. Mais tarde (2011), no final do terceiro dos cinco mandatos consecutivos que viria a exercer nesta Casa de Leis, ela retornaria, finalmente, para o seu partido de origem, o PCdoB, ao qual permanece filiada desde então. Sem se furtar das responsabilidades para com o partido, atualmente, Isaura exerce, pela terceira vez consecutiva, a presidência regional da legenda, em nova gestão iniciada ano passado e que vai até 2021.

Convicta de que o comunismo é uma ideologia política e socioeconômica capaz de promover uma sociedade mais justa e igualitária, portanto, sem divisão de classes sociais, Isaura relembra muitas das suas vivências como uma legítima militante comunista e comenta, em pormenores, os vinte anos vividos dentro do Parlamento goiano (ela se manteve como deputada estadual da 14ª à 18ª Legislaturas da Alego - de 1999 a 2019). Como se poderia esperar, não somente extensa foi a sua passagem pela Alego, como igualmente vastas foram as suas contribuições. Nesse longo período, ela legou, por exemplo, mais de duzentos projetos a esta Casa de Leis.

O primeiro projeto que Isaura prontamente apresentou no Parlamento foi uma resolução para a criação da Comissão de Habitação, Reforma Agrária e Urbana, numa articulação que acabou por levar Sebastião Tejota à presidência da Alego (ele permaneceu no cargo por duas gestões consecutivas, de 1999 a 2003, tendo exercido, ao todo, quatro mandatos como deputado estadual goiano e estando hoje como conselheiro do Tribunal de Contas do Estado - TCE). “Tive um passado marcado pelo trabalho na terra e vi o quanto sofrem pais e mães agricultores”, justificou ao defender a propositura. Isaura se tornaria, então, presidente do recém-criado colegiado, cargo que exerceu por quatro dos seus cinco mandatos.  

Considerada uma referência na participação popular dentro da Assembleia Legislativa, Isaura Lemos termina seus mandatos deixando como principal legado décadas de militância junto às camadas economicamente mais vulneráveis da população. Militância que coincide com a sua chegada em Goiás, quando ela se engaja no Movimento Contra a Carestia, o qual buscava a redução dos preços dos produtos da cesta básica, e que culmina com a Luta pela Casa Própria. Essa última se tornaria, inclusive, a sua principal bandeira dentro da Alego. 

Foi graças a tal bandeira que Isaura conseguiu prestar assistência, em seus vinte anos de vida parlamentar, algo que já fazia anteriormente, a milhares de famílias carentes (aproximadamente 40 mil famílias em todo o estado, segundo dados apresentados pela própria ex-deputada). Ajudou a redesenhar, dessa forma, o entorno da Capital goiana e de sua região Metropolitana, contribuindo, com isso, para o surgimento de diversos novos loteamentos em Goiânia, Aparecida e Trindade. 

A região Noroeste de Goiânia foi a que mais cresceu, com o surgimento dos bairros da Vitória, Floresta, Boa Vista, São Carlos, São Domingos, Primavera e Jardim Curitiba. Depois, a região Sudoeste, com o Madre Germana II e a Oeste, com o Lírios do Campo. Já em Aparecida de Goiânia, nasceu o primeiro bairro em sua homenagem: o Vila Isaura. E, além dele, também foi criado, ali, o Madre Germana I. Em Trindade, despontou, por sua vez, o bairro Vida Nova. Segundo a ex-deputada, diversos outros municípios goianos, como Itumbiara, Itaberaí, Luziânia, Senador Canedo, Inhumas, Bela Vista e Anápolis, também receberam o seu apoio na Luta pela Casa Própria.

Isaura informa, ainda, ter conquistado, junto ao Governo de Marconi Perillo (governador, pelo PSDB, por quatro mandatos, sendo os dois primeiros de 1999-2006 e os dois últimos de 2011-2018), mais de quatro mil Cheques Moradia, que foram entregues às famílias de baixa renda cadastradas no programa habitacional citado. Na época, foi estipulado um teto de R$ 3 mil por família assistida. Tal iniciativa acabou servindo como fonte de inspiração para um programa similar lançado, no âmbito federal, durante a gestão do ex-presidente, então peemedebista, Michel Temer (2016-2018).

Por intervenção de Isaura, os recursos da citada política habitacional continuaram a ser destinados especialmente a mulheres, mães solteiras ou chefes de família, consolidando, assim, uma conquista que ela havia alcançado junto ao Governo anterior, de Maguito Vilela (1995-1999). Para a ex-deputada, o critério adotado acabou por tornar mais efetivos os benefícios do programa, ao impedir, com isso, que muitas famílias viessem a perder as moradias conquistadas. "Isso porque, de fato, são as mulheres que fazem mais questão de ficar com a casa. Os homens, em sua maioria, acabam por vendê-la. Basta surgir um problema e a saída que eles encontram é a venda”, explicou, com orgulho, a importância da vitória alcançada.

A entrevistada explicou que essa prática já vinha sendo executada, a nível estadual, desde muito antes de ela ser deputada, tendo sido iniciada nos anos de 1980, durante o primeiro mandato de seu marido, enquanto vereador (Euler foi vereador em Goiânia por dois mandatos, sendo o primeiro em 1982 e o segundo em 1990). Na esfera federal, a política foi regulamentada em 2011, mediante aprovação, dada pelo Governo de Dilma Rousseff, às modificações na Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida. 

Com isso, ficou, desde então, institucionalizada, portanto, a prioridade concedida às mulheres, chefes de família, no âmbito da política habitacional de nível federal. Essas alterações estão sancionadas na Lei Federal nº 12.424/11. Como no estado de Goiás ainda não existe, porém, legislação correlata sobre o assunto, a adoção da medida fica, via de regra, condicionada à discricionariedade do Executivo estadual. Isso pode ser, no entanto, facilitado via negociações diretas com lideranças parlamentares, como a que Isaura informa ter ocorrido entre ela e o Governo anterior.

Uma aula magistral

Essa luta incessante de Isaura em prol da justiça social parece ser fruto de sua educação essencialmente católica. Criada com base nos preceitos da ala considerada à esquerda da igreja, Isaura aprendeu, desde cedo, a valorizar os princípios cristãos que buscavam o bem comum e a dignidade humana. Inscritos na chamada Doutrina Social, esses valores se encontram descritos, até o presente momento, num conjunto composto por 19 encíclicas papais, das quais as duas últimas são de autoria do atual Papa Francisco. Ao revisitar muitas das teorias que fundamentaram esses textos, a ex-deputada Isaura nos fornece, nessa parte da entrevista, uma aula magistral sobre os problemas que afligem o capitalismo contemporâneo. 

Com seu olhar peculiar, ela nos convida a empreender uma breve viagem no tempo, para, assim, estabelecer também uma primeira revisão crítica do próprio socialismo moderno. O seu ponto de partida é a Rússia de Lênin,  em um período que sucede a Revolução de 1917. “Naquele momento, a Rússia era muito atrasada e predominantemente agrária, igual ao Brasil tempos atrás. Precisava ainda haver o incremento do capitalismo, do desenvolvimento das forças produtivas dentro do sistema, para que se pudesse, então, passar a um Estado socialista, dirigido por um partido comunista. Porém, na época, não havia essa sabedoria por parte do movimento russo. Com eles, era tudo 8 ou 80. Por terem forçado muito a barra, acabaram cometendo muitos erros", observou.

Isaura sugere, com isso, que os erros decorrentes da ideologia apregoada pelos revolucionários russos (representados, em sua maioria, pelos chamados bolcheviques) seriam, em linhas gerais, frutos de uma certa incompreensão sobre a própria origem dos modelos sociopolíticos que defendiam. Isso se deu, explica ela, porque eles (os bolcheviques liderados por Lênin) não foram capazes de perceber, por exemplo, que tanto o socialismo, quanto o comunismo, eram etapas de um processo único de desenvolvimento social, a serem gradualmente alcançadas com a evolução do próprio capitalismo. 

"Qual o rumo do socialismo? É o que direciona as forças produtivas, principalmente as estratégicas – produção de minérios, alimentos, tecnologia, a favor das grandes massas, da maioria, do povo. E, depois, organiza bem para que tudo o que se consegue com o desenvolvimento dessas produções seja colocado na saúde, na educação, na ciência. Enfim, atua, primeiramente, portanto, na direção da distribuição de renda. Só mais na frente é que esse sistema socialista pode chegar ao seu amadurecimento e, assim, não precisar da figura do Estado. Aí, sim, teríamos, de fato, o comunismo. O socialismo é, portanto, uma transição do capitalismo para o comunismo. No entanto, em cada país que se instala, esse sistema vai se desenvolvendo e tomando uma forma diferente", explicou.

A entrevistada lamentou, no entanto, que a derrocada do socialismo soviético, consagrada na emblemática queda do muro de Berlim (1989), tenha contribuído para propagar, no imaginário de diversas nações, uma visão negativista acerca dos regimes que defende. "Esse acontecimento ficou reverberando na cabeça das pessoas e, com ele, veio também, de certa forma, a ideia de que o modelo socialista não dá certo. Até hoje há muitas pessoas (e países inteiros) que pensam assim. Entretanto, apesar da Rússia ter passado por uma degradação muito grande, ela foi, aos poucos, reconquistando a sua economia e atualmente é uma das mais ativas e fortes do mundo", arrematou. Dados divulgados, em 2017, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), apontam a Rússia como sendo a 12ª no ranking econômico mundial.

Por outro lado, segundo Isaura, os equívocos cometidos pelo antigo socialismo russo podem ser melhor compreendidos quando se estabelece um comparativo com o atual modelo chinês que mescla hoje, por exemplo, elementos dos dois principais sistemas políticos e socioeconômicos em vigência no mundo contemporâneo. "Os chineses conseguiram desenvolver essa sabedoria dentro do partido comunista e a China tem agora um Estado que atua de forma híbrida: é comunista, mas, lá dentro, tem, por exemplo, indústrias com sistema de produção capitalista, onde o lucro é importante”, continuou, com segurança. 

Para a entrevistada, essa sabedoria chinesa, que soube aproveitar, digamos, o melhor de ambos os modelos citados, tem contribuído para impulsionar o desenvolvimento econômico chinês. Dados do Departamento Nacional de Estatísticas da China demonstram que o país, que se destaca hoje como sendo a segunda maior economia do mundo (os EUA ocupam o primeiro lugar do ranking), mesmo tendo apresentado, em 2019, o pior desempenho dos últimos 30 anos, registrou, ainda assim, com seus apenas 6,1%, o maior crescimento econômico observado a nível mundial.

"Atualmente a China está se posicionando dessa forma e precisamos observar a sua trajetória, pois isso me parece ser especialmente importante. Quando olhamos para o contexto mundial, observamos que os EUA estão sob ameaça porque exerceram, por muito tempo, um poder unipolar. Agora existem vários polos que se opõem aos EUA. Temos a China, a Rússia, a Índia, países que já estão com uma economia bastante avançada e vêm contribuindo para equilibrar um pouco a balança da economia mundial”, concluiu, convicta. 

Mal saberia ela que essas suas análises ganhariam ainda mais relevância, meses mais tarde, na esteira aberta pela pandemia do novo coronavírus (a entrevista com Isaura foi realizada em abril do ano passado).  Mesmo tendo sido epicentro da crise sanitária que, em pouco tempo, se alastraria por outros países, o grande gigante asiático, como a China também é conhecida, deverá continuar avançando em sua liderança frente à economia mundial. 

Isto é o que aparentemente revela o recente relatório sobre o assunto, divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Embora a previsão geral, para esse e o próximo ano, seja de crise no mercado global (PIB mundial deverá ter crescimento de apenas um décimo), a China deverá atingir, ainda assim, uma taxa de expansão próxima dos 5%, enquanto a dos EUA ficará em torno dos 2%, apenas. A liderança chinesa deverá ser seguida, respectivamente, pela Índia e Indonésia, outros dois países asiáticos. Para o Brasil, o crescimento anunciado para o período será inferior aos 2%.

A análise de Isaura nunca esteve tão atual, mesmo agora, após um ano de ter sido proferida.

A mulher na política

A participação da mulher na política brasileira foi outra questão bastante discutida nessa segunda parte da entrevista. Valendo-se da sua experiência como deputada na Alego, Isaura aproveitou, então, a ocasião para falar um pouco sobre as dificuldades enfrentadas nas diferentes esferas do Poder Legislativo. Quando se trata de representatividade nos Parlamentos, a realidade é, segundo ela, nada animadora. “O nosso País está muito atrasado, está lá na rabeira, em termos de participação política da mulher. Fica atrás, inclusive, de muitos países africanos ou árabes”, pontuou. 

Dados de monitoramento apresentado pela Inter-Parliamentary Union (IPU), organização global dos Parlamentos Nacionais, com sede na Suíça, revelaram que, em 2018, o Brasil ocupava a 152ª dentre os 190 países pesquisados, ficando, portanto entre os 40 últimos lugares do ranking. “A participação da mulher se dá muito mais ao nível das comunidades do que na política parlamentar. Subir esse degrau parece ser uma responsabilidade ainda muito grande para as mulheres brasileiras. A nossa cultura, infelizmente, não ajuda a melhorar essa confiança”, ponderou. 

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), se nada for feito para mudar, com urgência, essa realidade, a sub representação feminina no Parlamento federal, por exemplo, deverá ser mantida até, pelo menos, o ano de 2254; por mais de dois séculos, portanto. Segundo pesquisadores da área, o quadro afeta diretamente as políticas públicas destinadas às mulheres, dificultando avanços no campo da justiça e das demais melhorias que lhes são de direito.

Em termos regionais, a realidade parece não muito diferente. Isso é o que revela pesquisa divulgada ano passado pela Seção de Assessoramento Temático da Casa, em referência ao pleito de 2018. No mapa, Goiás aparece no antepenúltimo lugar do ranking nacional que monitorou a participação feminina nos Parlamentos estaduais. Com apenas duas deputadas eleitas, fica atrás, portanto, apenas dos estados do Mato Grosso e Mato Grosso Sul, que ocupam, respectivamente, o penúltimo e o último lugar entre os 27 estados da federação. 

“Existe um problema na sociedade, que se reflete exatamente nesse período (eleitoral). Somos mais de 50% do eleitorado, mas não elegemos mulheres. Precisamos compreender o significado desse dado e mudar isso urgentemente. É necessário união para criar uma realidade mais favorável para as mulheres”, defendeu Isaura, deixando transparecer, assim, certa noção de que uma democracia só se torna completa quando, de fato, alcança o justo equilíbrio na participação de homens e mulheres.

A seguir, o leitor e a leitora podem ler, na íntegra, a segunda parte da entrevista concedida por Isaura Lemos, em continuidade à 13ª edição do projeto Mulheres no Legislativo. Sendo a deputada que mais tempo permaneceu no Parlamento goiano, com cinco mandatos consecutivos, ela nos mostra, em seus relatos, que tem muito a contar e a ensinar. 

* Por se tratar de uma entrevista repleta de informações e dados históricos, às respostas de Isaura foram intercalados comentários, assinalados com asterisco(s), que operam como notas de edição/rodapé, cuja a intenção é ampliar a compreensão acerca de vários dos assuntos abordados nas falas da entrevistada. 

Você chegou em Goiânia, para recomeçar a vida junto à nova família, constituída ao lado de Euler Ivo, logo no início dos anos 1980, época marcada pela reabertura política que culminou no processo de redemocratização nacional. Como foi encarar mais essa mudança? Quais foram as suas principais percepções acerca dessa nova realidade, que se descortinava paralelamente, tanto na esfera política, quanto na de sua trajetória pessoal?

Quando cheguei aqui, logo me envolvi com o processo de reconstrução do PCdoB. O partido estava destroçado e, após o fim da ditadura militar, dele já não restava quase nada. Na época, era necessário que pessoas se engajassem em reestruturá-lo. Muitos de seus militantes partidários haviam sido, inclusive, mortos pelo regime. Por isso, tão logo cheguei em Goiás, lideranças do partido vieram me procurar, dizendo: “precisamos de você para ajudar na reconstrução do PCdoB. Se topar, nós podemos arrumar um salário para você, inclusive”. Passei, então, a ganhar um salário mínimo para atuar na política. Meu marido também ganhava o mesmo. Era o início de 1980 e caminhávamos em direção ao movimento das Diretas Já*. Na verdade, estávamos vivenciando ali, precisamente, o momento da Anistia**, porque o movimento mais forte pelas Diretas se deu mesmo em 1984, tendo culminado com a eleição indireta de Tancredo Neves à presidência da República, em 1985

* Diretas Já foi um movimento civil de reivindicação por eleições presidenciais diretas no Brasil ocorrido entre 1983 e 1984. 

** Anistia é o ato jurídico em que crimes políticos cometidos dentro de um determinado período de tempo são esquecidos. No Brasil, a Lei de Anistia de 1979, permitiu o retorno de todos os acusados de crimes políticos no período do regime militar.

Qual era a origem desses salários que, na época, você e seu marido passaram a receber? 

Eram pagos com a contribuição dos associados ao partido. Com isso, passamos a atuar mais diretamente dentro da universidade, tentando recrutar novos nomes para os quadros do PCdoB.

O PCdoB ainda era clandestino nessa época?

Sim, ainda era clandestino. Eu integrava a comissão que militava pela legalidade do PCdoB*. Nessa época, tinham sido liberadas as campanhas para a eleição direta de governadores de Estado**. Em Goiás, elegemos o Iris***. E, por intermédio do meu marido, apresentamos, na ocasião, o nome de Aldo Arantes para candidato a deputado federal aqui por Goiás. Embora goiano, Aldo tinha atuação política de expressão nacional, por ter sido presidente da UNE****. Fizemos uma intensa campanha. Na época, deputados federais e vereadores eram eleitos em um único pleito. O meu marido foi eleito vereador por Goiânia e o Aldo ficou como primeiro suplente (o titular eleito, pelo MDB, para a vaga no Congresso Federal foi José Freire). Ao assumir, Iris chamou o titular para ser secretário (de Segurança Pública) e o Aldo assumiu, assim, a vaga de deputado federal. Nessa eleição, eu já estava grávida da minha terceira filha (risos).

* PCdoB se mantém na ilegalidade até 1986, no ano anterior, apesar de participarem das eleições para prefeitos das capitais, os partidos sofrem, ainda, nomeação dos cargos pelo regime militar. 

** O retorno das eleições diretas para governador, a que Isaura se refere, ocorreram no ano de 1982 (as anteriores haviam sido realizadas na década de 1960). Durante esse período, que ficou conhecido como "eleições gerais", foram eleitos, conjuntamente, 23 governadores de Estado, prefeitos e todos os membros do Congresso Nacional e dos parlamentos estaduais e municipais. No pleito goiano, o eleito para chefiar o Executivo estadual, seria o oposicionista Iris Rezende (MDB), que alcançaria a vitória após concorrer com Otávio Lage (PDS), Athos Magno (PT) e Paulo César Timm (PDT). Junto a ele estaria o vice-governador Onofre Quinan. Ainda no contexto regional, foram também igualmente eleitos o senador Mauro Borges, 16 deputados federais, 40 estaduais, além de prefeitos, vice-prefeitos e vereadores. Antes de Iris, o último governador eleito pelo estado havia sido o próprio Otávio Lage, em 1965. O antecessor de Iris no Governo de Goiás foi Ary Valadão e o sucessor, Henrique Santillo. Esse último seria eleito no pleito seguinte, realizado em 1986. 

*** Iris Rezende Machado é o atual prefeito de Goiânia, cargo que ocupa já pela terceira vez (a presente gestão, iniciada em 2017, deverá ser encerrada ainda no final deste ano de 2020). Sendo o principal expoente do MDB em Goiás, foi também vereador na Capital (1958), deputado estadual (1962), senador da República (1995 a 2003) e ministro por duas vezes, sendo a primeira, no Ministério da Agricultura do governo Sarney (1986-1990) e a segunda, no Ministério da Justiça, de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Governou Goiás por dois mandatos, sendo a primeira vez, de 1983 a 1986 (primeiro governo eleito após o fim da ditadura militar) e a segunda, de 1991 a 1994. 

**** Aldo Arantes foi presidente da UNE, deputado federal por quatro vezes, tendo participado, nessa condição, da Constituinte de 1988. Iniciou sua carreira política junto ao MDB, partido pelo qual exerceu seu primeiro mandato e, já no início do segundo mandato, passa a integrar os quadros do PCdoB, onde atuou junto à Constituinte (1987 e 1988).

Quer dizer, então, que a sua filha mais nova já nasceu no período democrático. Parece que as suas três filhas têm pouca diferença de idade entre si, não é mesmo?

Sim, apenas dois anos de diferença de uma para outra. A Júlia (nome da filha mais nova) nasceu em 1982, bem na transição democrática. Nessa época, nós tínhamos iniciado aqui, pelo partido, um Movimento Contra a Carestia, no qual lutamos muito por alimentos mais baratos, mediante a redução da cesta básica. Foi um movimento que surgiu em São Paulo e que trouxemos para Goiás. Nós começamos fazendo um abaixo-assinado, que foi endereçado, posteriormente, ao governo de Ary Valadão*. Através desse movimento, nós conseguimos junto à primeira dama estadual, Maria Valadão**, aqueles Caminhões da Solidariedade, que ela havia implantado e que levavam cestas básicas mais baratas para os bairros da periferia de Goiânia. 

* Ary Valadão teve atuação destacada nos episódios que determinaram a queda do governador Mauro Borges (1961-1964). Nesse período foram extintos os partidos políticos pelo Ato Institucional nº 2 (27/10/1965), e instaurado o bipartidarismo. Ele se filiou à Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido de apoio ao regime de exceção e se elegeu deputado federal. Em abril de 1978 se torna oficialmente candidato arenista à sucessão do Governo de Goiás, se mantendo à frente do Estado até 1983.

** Maria Valadão foi primeira-dama e deputada federal por Goiás, por dois mandatos (1991-1999).

Podemos, então, dizer que essa conquista alcançada, inicialmente, junto ao Governo de Ary Valadão, foi a principal conquista do movimento contra a carestia, na época?

Não somente, porque nós fizemos também, ainda nesse período, um movimento pró aquisição de material escolar. Com isso, levamos 500 mães para pedir material escolar lá no palácio (das Esmeraldas, sede do Governo estadual). E a primeira dama* nos atendeu da mesma forma, mandando comprar milhares de cadernos, lápis dentre outras coisas, para doar para as crianças. Naquela época, não existia essa coisa de dar material para alunos carentes. Eu morava em Campinas (bairro de Goiânia), ali no cruzamento da avenida Perimetral com a avenida 24 de Outubro. Logo depois da ponte do final dessa avenida, já à esquerda do Setor Aeroviário, há uma espécie de favela que chama Conjunto Bandeira, com várias casas que ficam à beira do córrego. Foi justo os trabalhadores dali que eu levei ao palácio, naquela ocasião. Na verdade, eu considero que comecei mesmo a fazer política ali, junto àquelas famílias. E olha que nessa época eu era apenas militante do partido, nem pensava em me candidatar a vereadora ou a deputada ainda. Apenas, o meu marido é que era vereador, naquele período (refere-se ao primeiro mandato de Euler Ivo, ocorrido entre os anos de 1982 a 1986)**. Depois disso, lembro que nós fizemos também uma passeata para levar energia que não tinha ali naquela região. Então, eu tinha ânimo para fazer essas coisas, sabe? Sempre fui assim. Deixava a Maíra (filha do meio, que tinha por volta dos dois anos, na ocasião) sendo cuidada lá por uma das famílias do Conjunto Bandeira e “ia politicar” em outras regiões da Capital.

* Dona Iris é uma política goiana, casada com Iris Rezende Machado, de quem é também correligionária. Foi primeira-dama do Estado nos dois mandatos em que seu marido esteve à frente do Governo de Goiás. É filiada ao PMDB desde 1980. Disputou sua primeira eleição, como vice-presidente da República, no pleito de 1994, em chapa encabeçada por Orestes Quércia (ex-governador paulista - 1987 a 1991; também peemedebista). Assumiu o mandato de senadora por duas oportunidades, em 2003 e 2006, ambas como suplente de Maguito Vilela. Na eleição de 2006 e, posteriormente em 2010, elegeu-se deputada federal por Goiás, sendo a mais bem votada nessas ocasiões. Presidiu o diretório regional do PMDB em Goiás  entre 1995 e 1998 e, interinamente, a direção nacional, entre março de 2009 e janeiro de 2010. Atualmente é presidente da Fundação Ulysses Guimarães.

**Euler Ivo ganhou maior notoriedade no estado de Goiás após criar, em 1991, o Movimento de Luta pela Casa Própria (MLPCP), embora já tivesse exercido, em 1982, seu primeiro mandato de vereador. Além de Euler Ivo, sua filha mais velha, Tatiana Lemos também foi vereadora pelo PCdoB em Goiânia por três mandatos (2008, 2012, 2016). Essas informações foram retiradas do site oficial de Isaura.

Quem exatamente cuidava da Maíra para você poder fazer política?

A mulher de um trabalhador da Comurg* cuidava dela pra mim. Isso aconteceu durante toda a década de 1980. Em 1991, durante o segundo mandato de meu marido como vereador, ele criou o Movimento de Luta Pela Casa Própria e eu passei a atuar junto a ele nessa causa.

* COMURG - Companhia de Urbanização de Goiânia, criada pela Lei Municipal nº 4.915, de 21 de outubro de 1974. Entra em funcionamento em 1979.

Percebemos em nossa conversa até aqui, e também tendo em vista toda a sua trajetória política, que muitas foram as bandeiras erguidas por você durante a sua vida. Aquela, porém, que notamos estar, no entanto, mais associada ao seu nome, e ao de seu marido também, parece ser justamente essa do Movimento de Luta Pela Casa Própria, é isso mesmo? Você também considera que essa seja de fato uma bandeira de destaque na sua militância e na sua atuação parlamentar?

Exatamente, porque nós vimos nesse movimento, que nascia ali ao lado do mandato de Euler como vereador, uma das demandas mais importante da época. E como nós iniciamos isso? Por meio de de um abaixo-assinado, que reuniu as assinaturas de cinco mil famílias, reivindicando moradia a preços módicos, acessíveis, ou mesmo lotes para que pudessem construir suas habitações. E essa era uma grande oportunidade aberta, inclusive, pelo governo, que era, no momento em questão, liderado novamente por Iris (ele exercia, na ocasião, o seu segundo mandato como governador - 1991 a 1994).

Iris já tinha iniciado a famosa política dos mutirões, que se tornou marca de sua administração tanto estadual, quanto municipal?

Sim. Os mutirões foram iniciados, em 1982, já no primeiro ano de mandato do Iris enquanto governador. Quando ele voltou, para exercer seu segundo mandato no cargo, após perder as eleições municipais para Darci Accorsi*, que havia sido eleito prefeito de Goiânia, no início dos anos 1990, nós o procuramos novamente, visto que o Euler também exercia, nesse mesmo período, o seu segundo mandato de vereador. No primeiro mandato de Iris, inclusive, o Euler, que também era vereador, na época, já havia reivindicado essas casas junto ao governo. Mas, naquela ocasião, o Iris nos deu a seguinte resposta: “eu até posso arrumar um loteamento para vocês, mas só se você não inventar de se candidatar à reeleição”. Isso ocorreu no final do primeiro mandato do Euler como vereador. 

*Darci Accorsi foi fundador do PT em Goiás e prefeito de Goiânia de 1993 a 1997. Pai da atual deputada Adriana Accorsi. Faleceu em 2014. Disputou eleição em 1992, tendo como principal concorrente Sandro Mabel (PMDB), candidato de Iris, que foi derrotado no segundo turno. Foi sucessor do também peemedebista Nion Albernaz. 

 O Iris falou isso para o Euler, então? E o que o Euler respondeu?

Sim. Falou exatamente isso para o Euler, que respondeu: “então o senhor já pode arrumar as casas para as cinco mil famílias, porque eu não serei candidato”. 

E, assim, vocês conseguiram as cinco mil casas?

Mais ou menos, porque, na época, o Iris disse que só pensaria nisso depois das eleições (pelo contexto ela se refere às eleições municipais de 1985, a segunda após a redemocratização). Meu marido acabou não sendo candidato, apostando que teria as casas. O povo, achando um absurdo, perguntava ao Euler: “como o senhor não vai ser candidato, se tem a eleição garantida?”. E assim aconteceu. Quando o Euler voltou a procurar Iris Rezende, conforme previamente combinado, ele não quis mais recebê-lo. Então fizemos uma passeata à luz de velas em volta do palácio (das Esmeraldas). O assessor do Iris me ligou, lá do gabinete dele, dizendo: “Isaura, pelo amor de Deus, olha o que o Euler está fazendo aqui! O povo todo está lá fora com velas acesas!”. E eu falei: “não tenham medo. É só para iluminar a memória do governador, para que ele se lembre do que prometeu. Não é para pôr fogo no palácio não (risos)”. Então eu corri para lá. Foi bonito demais ver aquela passeata toda à luz de velas. Só depois disso foi que ele resolveu nos atender. Iris arrumou, assim, na época, 1.120 lotes*. Fizemos uma festa no Cepal** do Setor Sul (bairro de Goiânia), em celebração à nossa conquista.

* Isso se deu já no segundo mandato de Iris (1991 a 1994), visto que, em 1986, após as novas eleições para governador (as municipais já tinham ocorrido no ano anterior), é Henrique Santillo quem assume o Governo de Goiás. De 1986 a 1990, Iris lideraria o Ministério da Agricultura do governo de José Sarney, que era, já então, seu correligionário. Com o retorno de Iris ao Governo do Estado, Isaura e Euler voltam a procurá-lo para acertar o que fora, anos antes, entre eles combinado. Nessa ocasião, Euler também havia voltado a ser vereador na Câmara Municipal de Goiânia (1990-1994). 

** CEPAL - Centro Popular de Abastecimento e Lazer. Administrado pela Prefeitura de Goiânia.

Em qual bairro ou região da cidade de Goiânia ficava esse loteamento?

Ficava no Bairro da Vitória, contínuo ao Curitiba 4 (região Noroeste de Goiânia). Quando Iris finalmente nos entregou os lotes, nós dissemos: "tudo bem, só que agora nós já temos 12 mil famílias para abrigar, então nós vamos construir apartamentos”. Se você visse a cena no dia da entrega, o Cepal lotado assim (faz gesto com a mão, indicando muita quantidade)! O Iris ficou louco, pegou o microfone e falou: “olha, eu tô doando esses lotes, mas eu peço para vocês para que, por favor, não façam apartamentos. Vai ser malfeito, vocês não vão dar conta disso depois”. Como o Governo (federal), nessa época, já era o de Itamar Franco, o Euler pegou o microfone da mão do Iris e falou: “vamos fazer os apartamentos sim. Inclusive nós já estamos organizando uma passeata até Brasília para falar com o presidente. Quem está disposto a ir até o Itamar Franco para conseguir material para as construções dos apartamentos?”. Após essa pergunta do Euler, o povo todo levantou a mão. Nós tínhamos conseguido reunir, ali naquela ocasião, essas 12 mil famílias. Depois do ato, o Iris chamou o Euler e propôs: “para vocês não fazerem isso (de ir até Brasília falar com o presidente), eu vou arrumar mais quatro mil lotes. Está bom assim?” Aí ele arrumou mais quatro mil.

Dessa maneira, o Iris cumpriu a promessa que havia feito anteriormente e vocês conseguiram, finalmente, os cinco mil lotes reivindicados anos antes. Como fizeram então para atender ao grande número de famílias que, nessa época, já havia mais do que dobrado?

Fomos dando um jeito aqui e acolá. E, aos pouquinhos, ele acabou liberando mais cinco mil lotes para nós. Depois nos arrumou, também, o bairro da Primavera (localizado, igualmente, na região Noroeste de Goiânia). De uma vez, foram conquistados, portanto, os 12 mil lotes. Nós fomos empurrando para atender à demanda, porque demorou muito e já tínhamos reunido, em torno da gente, 50 mil famílias reivindicando moradias. O Iris fez isso porque, além dele realmente gostar de construir casas para o povo, ele estava com raiva por ter perdido a eleição municipal, em Goiânia, para o Darci Accorsi, em 1992. Então, de uma certa forma, era um modo dele fazer contraponto, dentro da Capital, ao PT. O Euler era muito bom político, mas não tinha essa paciência que eu tive, de visitar, constantemente, os futuros bairros, por exemplo, e ir, junto à população, marcando lote por lote. Como lá ainda havia muitos loteamentos irregulares, fui marcando esses lotes todos conforme as necessidades de cada uma daquelas famílias. Por exemplo, as mulheres que lá chegavam acompanhadas de seus filhos e suas mães, eram, por mim, colocadas umas perto das outras, para que as avós pudessem ajudar as filhas a cuidar dos netos. Tive, inclusive, a preocupação de dar preferência àquelas mulheres que tinham crianças deficientes. Ajudei, assim, a organizar, da melhor forma, a distribuição dos lotes, um a um. Foi, desse modo, que o meu nome cresceu e eu acabei sendo candidata a deputada estadual, eleita em 1999.

E como foi esse seu primeiro mandato como deputada? 

Foi um grande aprendizado. Lembro do primeiro projeto que apresentei, propondo a criação da Comissão de Habitação, Reforma Agrária e Urbana. Isto porque eu tive um passado marcado pelo trabalho na terra e vi o quanto sofrem pais e mães agricultores. A questão da qualidade do transporte coletivo também sempre foi uma bandeira nossa, desde o Movimento Contra a Carestia, quando a gente lutava para diminuir o preço da cesta básica e não deixar aumentar a passagem de ônibus. Por isso, o segundo projeto meu foi propondo a instalação de uma CPI do Transporte Coletivo*. Acabei não ficando nem com a presidência e nem com a relatoria, que é o que geralmente se espera quando se propõe esse tipo de iniciativa. Esse foi o meu primeiro choro aqui, mas também o único, porque foi quando eu percebi, realmente, que a barra ali era pesada. E aconteceu que, no final, numa manobra política para a eleição da Mesa Diretora da CPI, não deixaram eu ficar, nem com a presidência e nem com a relatoria. Depois disso, nunca mais eu chorei (risos). 

* De acordo com informações fornecidas pela própria entrevistada, a CPI do Transporte Coletivo foi a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito que Isaura conseguiu aprovar dentro da Alego e serviu para apurar irregularidades nas concessões de linhas de transporte coletivo de Goiânia. Mesmo tendo surgido através de projeto de lei de autoria da ex-deputada, o qual foi apresentado durante o seu primeiro mandato (14ª Legislatura), o colegiado acabou sendo presidido por Abdul Sebba (na época, do PST; hoje, do PSL, partido pelo qual tentou as últimas eleições ao cargo de deputado estadual, em 2018, mas não conseguiu ser reeleito) e tendo como relator, José Nelto (na época, do MDB; hoje deputado federal pelo Podemos/GO). O grande mérito da CPI, de acordo com Isaura, foi constatar que, praticamente todo o transporte coletivo da região Metropolitana da Capital, operava de maneira ilegal, uma vez que os contratos de concessão, todos já expirados, na época, permaneciam sendo renovados sem nenhuma atenção às regras de concorrência pública. Após a CPI, a prefeitura de Goiânia se viu, então, obrigada a abrir o devido processo licitatório para a renovação de todas as concessões de linhas em operação junto ao sistema de transporte público municipal. 

Na sua perspectiva, essa manobra dos deputados, na época, foi um espécie de golpe contra você?

Sim. Foi um golpe. Inclusive, na ocasião, eu levantei e denunciei que tinha sido um golpe, com lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Um deputado da Casa falou assim: “deputada, é assim. Não se preocupe, porque as coisas por aqui são desse jeito mesmo”. Aí eu entendi realmente como funciona: ou você articula ou você não tem aquilo. E eu não tinha articulado nada, era marinheira de primeira viagem. Depois, aprendi a fazer essas articulações políticas, e, mesmo sendo única deputada de um partido pequeno, comecei a participar ativamente das CPIs, como a do Beg e da Celg*.

* CPI do BEG foi criada, no Governo Marconi Perillo, através do pedido do ex-deputado Carlos Alberto Silva ("Leréia") e presidida pelo ex-deputado Jardel Sebba, ambos tucanos. Essa Comissão Parlamentar de Inquérito tinha o intuito de investigar o suposto rombo causado pelo governo do PMDB ao extinto BEG - Banco do Estado de Goiás, e funcionou durante a 14ª Legislatura, que vigorou entre os anos de 1999 e 2003. Já a CPI da CELG - Centrais Elétricas de Goiás, foi iniciada em 2010 e buscava esclarecer o endividamento da estatal goiana. Foi presidida pelo deputado Helio de Sousa (PSDB) e teve como relator o deputado Humberto Aidar (na época do PT, hoje do MDB). Ao longo dos seus mandatos, a ex-deputada Isaura Lemos participou de diversas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), dentre elas, a CPI da Violação dos Direitos da Criança e do Adolescente, da qual foi relatora (o deputado Carlos Antonio, do PSDB, foi quem presidiu o colegiado). Em funcionamento entre os anos de 2015 e 2016, esta CPI investigou as ocorrências de abuso sexual, exploração do trabalho infantil e adoção irregular de menores de idade em Goiás. As CPIs são um instrumento constitucionais voltados para apurar fatos de relevância para a população. No âmbito delas são, normalmente, realizadas diversas audiências na Capital e nas cidades do interior, incluindo as oitivas de muitas testemunhas arroladas. Ao final, os membros do colegiado produzem e aprovam um relatório conclusivo sobre o assunto, que é encaminhado ao Ministério Público, órgão responsável por dar, conforme o caso, prosseguimento às investigações. 

Você enfrentou dificuldades para fazer essas articulações? A Comissão da Reforma Agrária, por exemplo, da qual depois você foi presidente por quatro dos seus cinco mandatos, como se deu a articulação para isso tudo?

A criação dessa comissão (temática) veio por meio de um acordo feito para a eleição de Sebastião Tejota à presidência da Alego. Eu prometi apoiá-lo com uma condição. “Olha, eu te apoio na sua candidatura para presidente, mas eu quero criar tal comissão”, eu disse a ele, na ocasião. Então, quanto a isso, não tive dificuldades, porque foi uma articulação condicionada ao voto para presidência. Mas o funcionamento das comissões temáticas aqui é muito frágil. Nelas só acontece o debate dos temas, pois não há poder de voto e nem de deliberação. Com isso, o que foi que eu percebi? Que eu tinha que fazer as audiências públicas e ajudar a denunciar os problemas daquela área. Por exemplo, a realidade da luta pela reforma agrária, porque ela busca fazer valer um direito constitucional, que é a democratização do acesso à terra. A Constituição de 1988 diz que, se a terra não está cumprindo sua função social, ela pode sim ser desapropriada para fins de reforma agrária. O problema é que o atraso cultural no Brasil é muito grande, entende? Muito grande! Porque todo país que fez a sua devida reforma agrária é muito mais desenvolvido do que países como o nosso, que tem um monte de terras que não cumprem a sua função social. Eu procurei fazer uma discussão nesse nível mais ampliada, ou seja, não somente ideológico, mas que buscava colocar a legalidade sempre em primeiro lugar. 

*A Alego possui onze comissões temáticas distintas, sendo elas: 1) Agricultura, Pecuária e Cooperativismo; 2) Comissão de Defesa dos Direitos do Consumidor; 3) Constituição, Justiça e Redação; 4) Criança e Adolescente; 5) Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação; 6) Direitos Humanos, Cidadania e Legislação Participativa; 7) Educação Cultura e Esporte; 8) Habitação, Reforma Agrária e Urbana; 9) Meio Ambiente e Recursos Hídricos; 10) Minas e Energia; e 11) Organização dos Municípios. As Comissões Temáticas são Permanentes e, portanto, mantidas por todo o curso das legislaturas. Elas são responsáveis pela instrução das proposituras, trazendo para os respectivos processos as orientações técnicas e os documentos necessários e pertinentes ao trabalho parlamentar. Elas estão definidas no Regimento Interno da Alego.

Interessante essa sua preocupação, porque algo que é muito comum, justamente, é essa politização, algumas vezes excessiva até, das discussões sobre a reforma agrária em nosso País. E você chama atenção para os aspectos legais vigentes sobre tema, que parecem ser, de fato, na maioria das vezes, ignorados. Em sua avaliação, esse embasamento trouxe mais força, amadurecimento e neutralidade às discussões aqui na Casa, desde então? 

Sim, porque deu mais respaldo às discussões sobre o tema. Com isso, eu tentei demonstrar que, o fato de ser comunista, por exemplo, não tinha nada a ver com ser contra o desenvolvimento econômico de Goiás. Era como dizer algo assim: “olha, eu sou comunista, mas apoio o aumento da produtividade em nosso estado. Defendo que nós possamos nos desenvolver o máximo que pudermos. Minha luta, porém, é apenas para isso aconteça de forma a envolver, ao menos, uma grande parte da sociedade que ainda está alijada desse processo e que também merece ter oportunidades para se desenvolver”. 

Democratizar o desenvolvimento e a riqueza que ele gera, como um direito de todos, seria essa a questão?

Exatamente. Até porque, há muitas ideias distorcidas circulando nesse meio. Uma delas eu ouço bastante, inclusive. É uma espécie de crítica que vem quando algumas pessoas, por exemplo, olham para mim e falam assim: “ah, mas você é toda esquerdista, não sei o quê, e usa um iphone”. Mas eu não vejo nenhum problema nisso porque eu penso justamente assim: “a gente tem que socializar o que é bom. Socializar a riqueza, não a pobreza, porque ninguém quer ser pobre". Isso é o que me faz ser de esquerda, na verdade. 

Essa provável distorção referente às ideias de socialismo, que a grande maioria das pessoas parece ter, você considera que pode haver alguma relação com a situação de Cuba?

Pode ser. Mas Cuba, na verdade, só é atrasada no seu desenvolvimento por ser uma ilha pequena e sofrer um bloqueio econômico dos EUA e, consequentemente, de todos os seus parceiros comerciais*. Se um navio de qualquer país atracar em Cuba, por exemplo, o mundo inteiro vai saber, imediatamente, que ele estará automaticamente impedido de poder atracar em qualquer outro país que tenha comércio com os EUA. Mesmo assim, Cuba se desenvolveu muito na educação, na saúde e no esporte. A ilha só não é integralmente autossustentável. O que poderia ser muito diferente no Brasil. Pelas condições que nós temos, era para estarmos lá na frente, se tivéssemos adotado um modelo similar ao socialismo cubano, entendeu? Isso se tivesse havido uma reforma agrária, com o devido incentivo à produção das pequenas e médias propriedades rurais, porque é onde está, de fato, as maiores oportunidades de geração de empregos no País. Aos grandes, ainda sobraria, assim, a possibilidade de geração de lucros com a exportação desses produtos… 

* Considerados um dos mais longos bloqueios da história contemporânea, o embargo a Cuba consiste em uma interdição de caráter econômico, financeiro e comercial imposta pelos EUA. Essa restrição se torna particularmente severa a partir de 1962, cerca de três anos após o fim da chamada Revolução Cubana - movimento responsável por destituir a ditadura de Fulgêncio Batista e instaurar o socialismo na ilha de Cuba, colocando o país sob a liderança de Fidel Castro (ele permaneceu no cargo de 1959 a 2008, sendo sucedido por seu irmão, Raúl Castro; o atual presidente é Miguel Díaz-Canel). Com essa medida, os EUA passam a embargar, na época, praticamente todo tipo de exportação a Cuba. O recrudescimento do bloqueio foi uma retaliação dos EUA ao papel de Cuba na Crise dos Mísseis, ocorrida naquele ano (o episódio marca o acirramento da tensão entre os blocos socialista e capitalista, com a instalação de mísseis nucleares soviéticos em Cuba, após os EUA terem feito o mesmo em suas bases militares na Itália e na Turquia). E também pelo fato de Cuba ter estatizado as refinarias de petróleo e outras empresas de propriedade americana, sem oferecer, para tanto, qualquer tipo de indenização ao país vizinho. Posteriormente, já durante os anos 1990, o bloqueio é reforçado, mais uma vez, pela aprovação de leis, junto ao Congresso americano, como a Helms-Burton, que instituiu sanções econômicas a países que exerçam relações comerciais com Cuba (ano passado o governo dos EUA anunciou, inclusive, a aplicação inédita de uma de suas cláusulas). Não obstante isso, os EUA aparecem, na atualidade, ainda assim, como um dos principais parceiros comerciais do governo cubano, sendo o terceiro maior exportador de produtos para a ilha, notadamente gêneros alimentícios e produtos agrícolas.  Numa tentativa histórica de reconstruir os laços diplomáticos entre as duas nações vizinhas, o governo Barack Obama anunciou, em 2015, um processo de reaproximação, com a reinauguração de embaixadas nos territórios de ambos os países. Apesar de ter dado um passo extremamente importante, o episódio teve um caráter apenas simbólico, visto que Obama deixou o governo sem ter conseguido aprovar, no Congresso, a suspensão do bloqueio econômico e sem garantir a retirada do exército americano da base de Guantánamo, que vem sendo ocupada pelos EUA desde 1903. Na contramão dos esforços do governo anterior, o atual presidente, Donald Trump, já anunciou e adotou várias medidas de recrudescimento ao embargo, desde que assumiu o controle da Casa Branca, em 2017. A mais polêmica delas foi deflagrada em setembro passado, em decorrência de cortes no fornecimento energético e de combustíveis. Em 2019, pela 27ª vez consecutiva, a comunidade internacional, através da ONU, condenou o embargo americano, que já dura quase 60 anos. O bloqueio econômico imposto a Cuba, foi condenado por 187 dos 193 países-membros representados das Nações Unidas. As votações contaram ainda, ao final, com duas abstenções e três votos favoráveis à manutenção do embargo. Dentre esses últimos estava o Brasil, que votou, pela primeira vez, ao lado dos EUA e de Israel. Frente à pandemia do novo coronavírus, o embargo vem se revelando ainda mais prejudicial ao povo cubano, visto que tem dificultado o acesso do país a suprimentos médicos e sanitários.  

A gente nota mesmo que essa questão da reforma agrária foi uma bandeira tratada com a maior importância durante os seus mandatos. Você apresentou, inclusive, vários projetos, nesse sentido, dentre eles, existe um que dispõe sobre a participação obrigatória de uma comissão especial de Direitos Humanos para garantir a segurança pública em ações policiais de desocupação de áreas ocupadas, para fins de reforma agrária. Esse foi apresentado, inclusive, em duas ocasiões, na 16ª Legislatura, sendo uma em 2005 (junto com seu correligionário, na época, Fábio Tokarski) e a outra em 2007. Mas a proposta foi arquivada em ambas as situações, não chegando a passar pelo crivo da própria CCJ. Além desses, também podemos citar um outro, que visava instituir o Dia Estadual de Luta pela Reforma Agrária e que foi igualmente rejeitado, algo, inclusive, bastante incomum quando se trata da instituição de uma data comemorativa pela Alego. Você acha que essas rejeições e o consequente arquivamento das matérias citadas tem a ver com a natureza dos próprios projeto, por tocar no tema reforma agrária, num estado que é marca do agronegócio no Brasil?

Eu acho que sim. Até pela natureza dos próprios movimentos que a encabeçam, que são movimentos que se posicionam de forma mais radical, vamos dizer assim. Algumas foram, infelizmente, incompreendidas. Outras, até mesmo equivocadas, eu considero, porque terminaram destruindo coisas e fazendo com que a população, em geral, acabasse assimilando suas ações de forma negativa, digamos.

Aumentando, dessa forma, ainda mais a rejeição da opinião pública sobre o tema?

Sim, porque a rejeição já existia, de fato. Por isso é que a reforma agrária ficou taxada como sendo uma bandeira tão ideológica, deixando de ser vista como uma bandeira do desenvolvimento. E a minha luta toda aqui na Casa foi justamente para desconstruir essa idéia. Mas é muito difícil se desconstruir isso. Ainda mais num estado como Goiás, que é terra do agronegócio. Eu já tenho encontrado, inclusive, alguns grandes agricultores que entendem a importância da reforma agrária, que concordam que ela precisa ser feita, mas discordam dos métodos que os movimentos utilizam. Ademais, eu vejo que ainda está muito cristalizada essa concepção de que a reforma agrária é coisa de comunista e contra o desenvolvimento do país, o que não tem absolutamente nada a ver.

Retomando um pouquinho, só para esclarecer melhor alguns pontos, sobretudo focando agora na questão específica de ser uma mulher na política goiana. Você chegou na Alego em 1999 (14ª Legislatura). Sobre esse início, você fez um comentário, muito marcante, a respeito da primeira desilusão vivenciada por você aqui na Casa, onde relata o seguinte: “foi a primeira vez que eu chorei, e também a última”. Você acha que mostrar fragilidade num ambiente tão masculino é um problema para as mulheres?

Não, não acho isso. Acho só que há pessoas que choram mais mesmo. E meu choro, na época, teve muito a ver, na verdade, com o fato de eu não ter compreendido, até aquele momento, a necessidade de se fazer articulação. Porque a política envolve justamente essa tentativa de se construir consensos, relações políticas. E eu fui muito inocente, quanto a isso, na época. Foi algo até infantil da minha parte, mesmo. Você vê que algum deputado conseguiu um cargo e já vai criticando: “ah, fulano conseguiu uma posição numa comissão importante na Casa”. Pode ser a CCJ, mesmo, por exemplo. Mas toda conquista aqui dentro é fruto de articulações. Além disso, existem outras questões, que pesam bastante nessas decisões e que estão relacionadas à força que cada partido tem, num dado momento, na Casa, como: a quantidade de deputados, que conseguiu eleger, e o número de votos, por exemplo. Para o caso das comissões mais importantes aqui*, é necessário ainda que os colegas vejam em você uma pessoa que tem, por exempo, boas relações e proximidade com o governo. Então, naquele momento, eu vi que me faltava esse conhecimento. Vi que o quanto estava sendo inocente. E isso viria a acontecer em outros momentos depois. Foi aí que comecei a procurar me policiar mais, para não criar expectativas e certezas, antes da hora.  

* Este é o caso da CCJ e da Comissão Mista, especificamente.

Então você atribui o que aconteceu a uma certa inexperiência sua na época? O que parece, até certo ponto, natural, visto que era o seu primeiro mandato eletivo...

Sim. Acho que se trata de uma questão de amadurecimento mesmo, que a gente vai adquirindo com a experiência. Eu tentei captar ali as razões políticas por trás daquelas situações e aprender, com isso, que tudo tem que ser muito trabalhado. Ainda, assim, sempre vão existir coisas impossíveis de se conseguir, por mais que articule.

Você foi eleita pelo PDT, após uma longa história como militante do PCdoB. Por que você se filiou ao PDT e, depois, em 2011, voltou para o PCdoB?

Por causa do surgimento de uma série de divergências políticas internas, o que remonta, inclusive, à época em que trabalhamos para reconstruir o partido aqui (em Goiás). Nós fizemos um trabalho muito interessante, naquele momento, porque, de fato, não tinha sobrado nada do partido, devido à repressão da ditadura ao comunismo. E nós conseguimos, ao final, renovar significativamente os quadros do PCdoB, tendo trazido sobretudo jovens para dentro do partido. Isso aconteceu após intenso trabalho feito dentro das universidades, onde passávamos, nas salas de aula, chamando os estudantes para ajudar os moradores da periferia. Assim, os estudantes de Direito, vieram, por exemplo, prestar orientações na área jurídica e os estudantes de Medicina, ajudar na área da saúde. Então, de forma geral, o partido acabou ficando com uma cara bastante jovem. Quando em 1991, criamos o movimento de luta pela casa própria e viemos a conquistar os loteamentos para várias famílias carentes, que também tinham se associado ao nosso movimento, as direções do nosso partido, que eram sobretudo os jovens, disseram que não devíamos aceitar os lotes do governo Iris. Achavam que aquilo ia acabar fortalecendo o governador e que nós não devíamos, portanto, contribuir para o fortalecimento do MDB. E não adiantou em nada a gente tentar contra-argumentar, dizendo que o fato fortaleceria muito mais a nossa luta e o povo que estava ao nosso lado e que, acima de tudo, precisava daquelas doações. 

As jovens lideranças se mantiveram irredutíveis, então, querendo acabar com o movimento da casa própria?

Sim. Algumas lideranças achavam que devíamos acabar esse movimento, alegando que ele estava trazendo pessoas para dentro do partido que não entendiam o que era o comunismo. Essas lideranças diziam que, ao criar um movimento de massas, o partido estava se desvirtuando de sua linha política. E por mais que a gente explicasse que não, os companheiros não compreendiam. Além disso, anos antes, nós havíamos começado a sentir um desgaste político grande pelo fato de já estarmos há 10 anos na direção e, também, no cenário internacional, pela queda do muro de Berlim (o acontecimento marca o fim da Guerra Fria e a suposta vitória do capitalismo sobre o socialismo). Então, achamos por bem abrir, naquele momento, o espaço para que outras pessoas pudessem assumir a direção do partido. Só que não foi suficiente para acalmar os ânimos daquela juventude feroz (risos). Ela queria uma renovação total de métodos. Tudo precisava ser muito mais discutido para que se chegasse a um consenso. Isto porque o nosso partido tinha um perfil bastante autoritário, dado à escola que tivemos durante o enfrentamento da ditadura militar. 

Como foi administrar essas divergências políticas que surgiram dentro do partido? 

Com essas divergências políticas, meu companheiro acabou sendo suspenso do partido. Eu ainda fiquei por mais dois anos, até ver que, de fato, ainda não tinha clima favorável para mim ali, pois estava sempre sendo discriminada. Foi aí que decidi continuar minha militância em outro partido de esquerda, embora jamais tenha sido o meu partido por convicção. E acabou sendo, justamente, nesse outro partido que eu consegui me eleger. Aí quando eu estava no meu terceiro mandato enquanto deputada aqui na Alego, eu voltei, finalmente, para o PCdoB.

As condições já tinham mudado dentro do partido?

Sim. Já tinham amadurecido bastante e percebido que haviam cometido erros. Inclusive, a própria direção nacional nos procurou, para fazer a autocrítica. Então, achamos que já havia clima propício para um possível retorno.

Você falou da queda do muro de Berlim e esse conflito no partido. Houve, de fato, um enfraquecimento do movimento comunista com o fim da União Soviética?

Sim, existiu. E como isso aconteceu? Quando Lênin conseguiu unir o povo para fazer a Revolução de 1917, o primeiro ato dele foi abolir a propriedade privada da terra. Depois disso, ele tentou várias outras medidas para socializar os meios de produção, de uma forma geral. Mas, naquele momento, a Rússia ainda era muito atrasada e predominantemente agrária, igual ao Brasil, tempos atrás. Precisava ainda haver o incremento do capitalismo, do desenvolvimento das forças produtivas dentro do sistema, para que se pudesse, então, passar a um Estado socialista e dirigido por um partido comunista. Porém, na época, não havia essa sabedoria por parte do movimento russo, como a que os chineses têm agora, de ter, por exemplo, a economia capitalista dentro da administração comunista deles. 

Você acha que a China consegue aproveitar o melhor do comunismo e do capitalismo para impulsionar o seu desenvolvimento? 

Sim. Os chineses conseguiram desenvolver essa sabedoria dentro do partido comunista, de maneira que a China tem hoje um Estado que atua de forma híbrida: permanece comunista, mas possui, em sua estrutura, por exemplo, indústrias com sistema de produção capitalista, onde o lucro é importante. Na Rússia, era tudo “8 ou 80”. De modo que, até a farmácia da esquina não podia existir como propriedade privada, era tudo estatizado. O Estado e os quadros do partido comunista não se deram conta, naquele momento e contexto, de que certas áreas não precisam ser estatizadas, de que era possível uma convivência, entre as forças socialistas e as capitalistas, até haver realmente um avanço de toda a produção. Penso que eles falharam nesse aspecto. Por terem forçado muito a barra, acabaram cometendo muitos erros. Aí veio a segunda Grande Guerra*... 

* Tendo contado com exércitos compostos, em seu total, por mais de 100 milhões de soldados, e ocasionado a morte de, aproximadamente, setenta milhões de pessoas (cerca de 2% da população mundial da época, sendo a maior parte dela composta por civis), a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi o maior e mais sangrento conflito bélico de toda a humanidade. Envolveu mais de setenta nações, que se dividiram entre Aliados e Potências do Eixo. As principais nações que lutaram junto a esse último foram: Itália, Japão e Alemanha. Já entre as que integraram o primeiro grupo estavam, especialmente: França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e União Soviética. Estando, a princípio, mais alinhado com os países do Eixo, o Brasil manteve uma posição de certa neutralidade até 1942, quando, pressionado pelos EUA, declarou apoio aos Aliados. Sua entrada direta no conflito se daria apenas dois anos mais tarde, com o envio de tropas, compostas por mais de 25 mil soldados brasileiros, que lutaram ao lado dos americanos na Itália. O Brasil perderia, em consequência disso, ao longo desse período, cerca de 500 combatentes.

Quais foram as características mais marcantes, para o universo comunista, desse novo período que se iniciou com a Segunda Guerra?

No período da Segunda Guerra, Stalin* permaneceu insistindo nesses mesmos erros. Por outro lado, ele teve uma vantagem, que foi a de liderar uma resistência que acabou por destruir o nazismo e que queria, por sua vez, dominar a Rússia. Então, ele contou com um certo entusiasmo da juventude russa, que se dispunha a ir ao front da batalha contra o nazismo. Não só os homens, mas também as mulheres se apresentavam para a luta. E elas queriam pilotar os tanques de guerra, os aviões, ou seja, queriam ocupar outros cargos, vamos dizer assim, e não só serem enfermeiras, por exemplo. Essa juventude participou ativamente da luta contra o nazismo, liderada pelo governo stalinista**. 

* Josef Stalin governou a União Soviética de 1927 até a sua morte, em 1953. Seu regime comunista, de cunho totalitarista e antifascista, impôs forte censura à liberdade de expressão no país, estatizou e coletivizou a produção agrícola e industrial soviética e perseguiu, duramente, tanto opositores quanto correligionários, que se mostravam eventualmente contrários à ideologia stalinista, o que resultou em fome, morte, deportação e exílio de milhões de cidadãos russos (os relatos sobre a brutalidade do regime stalinista foram reunidos e divulgados no chamado Relatório Khrushchov). Não obstante isso, ainda como legado dos seus mais de 25 anos no poder, a Rússia foi convertida em uma importante potência militar e gozou de proeminente desenvolvimento econômico e industrial. 

** Stalin vs Hitler. Ignorando o pacto de não agressão, firmado entre alemães e soviéticos, em agosto de 1939, a Alemanha de Adolf Hitler invadiu a União Soviética em junho de 1941, dando início, assim, à chamada Operação Barbarossa, que vinha sendo planejada pelo partido nazista desde 1933. Usando táticas estratégicas da guerra-relâmpago (Blitzkrieg), o exército nazista alemão invadiu, em três frentes distintas, o território soviético. Quando os alemães finalmente invadiram a cidade que levava o nome de Stalin, dando início à Batalha de Stalingrado (considerada a última de Hitler), o exército soviético reagiu ferozmente, num episódio que durou mais de seis meses. Após derrotar completamente o exército alemão em seu território, Stalin avança com o seu próprio exército sobre os territórios germânicos, obrigando a Alemanha a retirar suas tropas de muitos países já conquistados. Em 30 de abril de 1945, o exército russo chega a Berlim e finca a bandeira comunista no solo alemão. O episódio marcaria, em termos gerais, o fim da Segunda Guerra Mundial e o prenúncio da chamada Guerra Fria (1947-1991). 

E depois, como tudo ficou? 

Depois da Segunda Grande Guerra, com milhões de seus cidadãos mortos e suas forças produtivas destruídas, continuaram, então, em evolução, as contradições do regime comunista soviético. Khrushchev*, que assumiu o poder depois do Stalin, não conseguiu dar continuidade ao sistema (socialista russo) e resolveu fazer uma aliança com os americanos, vamos dizer assim. Esse episódio acabou por abrir totalmente a União Soviética para o capitalismo. Com essa abertura, os países que constituíam a União dos Estados Soviéticos se desmembrou. Isso foi no final da década de 1980, um pouco antes da queda do muro (de Berlim, em 1989)**.

* Com a morte de Stalin, em 1953, Nikita Khrushchov, então líder do Partido Comunista, venceu a disputa interna pela sucessão ao governo soviético, tendo permanecido no cargo até a sua deposição, em 1964. Em 1956, durante o XX Congresso do Partido Comunista Russo, num discurso que durou cerca de cinco horas, o então presidente denuncia os bárbaros crimes cometidos por Stalin e seus colaboradores. Seu governo realiza uma série de importantes reformas nos planos econômico, político e tecnológico. Dentre seus principais feitos, destacam-se: o pesado investimento no programa espacial soviético; a instituição do Pacto de Varsóvia, em resposta à criação da OTAN pelos EUA e pela Europa Ocidental; a aprovação da construção do Muro de Berlim, em 1961; a assinatura do Acordo com os EUA, durante a Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962. 

** No final de 1991, durante o governo de Mikhail Gorbatchev, que foi de 1985 a 1991, a URSS foi desmembrada em quinze países. Dentre esses, a Rússia, que na época era presidida por Boris Yeltsin (que renunciou em 1999), foi a que mais se destacou economicamente, dada à riqueza mineral existente em seu solo (notadamente as suas jazidas de petróleo e gás natural). Desde 1999, a Rússia vem sendo governada por Vladimir Putin. 

Sob uma perspectiva comunista, qual o significado da queda do muro de Berlim e da abertura da URSS para o mundo? 

Para nós, isso foi uma derrota estratégica. Pois esse acontecimento ficou reverberando na cabeça das pessoas e, com ele, veio também, de certa forma, a ideia de que o modelo socialista não funciona. Ainda hoje há muitas pessoas (e países inteiros) que pensam assim. “Socialismo não dá certo. Veja a União Soviética, por exemplo, acabou. E o muro de Berlim? Derrubaram. A Albânia, que era um país também dito socialista, acabou, também". Com esse desmembramento, cada Estado foi cuidar da sua economia e a Rússia acabou passando por uma degradação muito grande, indo lá pro fundo do poço, mesmo. Mas, apesar disso ela foi, aos poucos, reconquistando a sua economia, que é, atualmente, uma das mais ativas e fortes do mundo, contando com um exército também poderoso. E o que que se vê na Rússia, hoje, após esse crescimento? Um movimento de retomada de algumas questões daquela época de socialização. 

A Rússia já vem se preparando para ser uma superpotência, digamos, há muito tempo, tendo sido uma economia que durante muito anos, inclusive, competiu, em condições de igualdade, com o Estados Unidos, não é mesmo? 

Sim. Sua força começa a se mostrar justamente naquele período, quando ela conseguiu mandar o homem para lua e retomou seus investimentos em energia nuclear*. É claro que ela nunca vai voltar a ter aquela pujança que tinha quando estava integrada à união das repúblicas socialistas. Mas, ainda assim, ela possui, até hoje, uma área de influência grande e passou a cumprir um papel de destaque frente ao antigo mundo soviético e ao aos países socialistas de uma forma geral. 

* A Guerra Fria foi um período histórico, que durou do final da Segunda Guerra Mundial (1945) até à dissolução da União Soviética (1991). Durante esse período de rivalidade ideológica, militar e política, o mundo se dividiu em dois pólos antagônicos. De um lado, liderados pelos EUA, estavam os países que defendiam o sistema capitalista e, do outro, os socialistas, representados pela URSS. Um marco desse período foi a  construção do Muro de Berlim (1961), que dividiu a Alemanha em dois domínios distintos. A Alemanha Ocidental (oeste) era capitalista e administrada em conjunto pela França, Inglaterra e Estados Unidos. A Alemanha Oriental (leste) era socialista e estava submetida à União Soviética. A queda do muro de Berlim se deu em 1989 e marcou o início da crise no antigo mundo socialista. Países como a Coreia e o Vietnã, também foram divididos em duas nações distintas. Essas divisões foram ratificadas nas Conferência de Potsdam (1945) e de Genebra (1954), respectivamente. Aliadas aos EUA estavam as porções sul da Coreia e do Vietnã e à URSS, as porções norte de ambos os países. Outras duas características marcantes desse período, foram as chamadas corridas armamentista e espacial. Esta última ficou ilustrada mediante o impressionante avanço tecnológico protagonizado por ambas as potências. Pioneiros no ramo, os soviéticos foram responsáveis por lançar o primeiro satélite em órbita (o Sputnik-1), em 1957, e enviar o primeiro homem ao espaço (o cosmonauta Yuri Gagarin), em 1961.  Já os americanos teriam sido os primeiros a pisar na lua, em 1969, levados pela Apollo 11.  No que tange ao aspecto armamentista citado, o investimento pesado e a atualização constante dos arsenais de guerra soviéticos e americanos acabaram por levar os dois países a produzir material bélico e nuclear de proporções absurdas, aumentando a pressão mundial pelo armistício, que acabaria se concretizando, em 1991. 

Se você fosse fazer um balanço sobre o futuro do socialismo/comunismo no mundo atual, que avaliação você faria?

Hoje, se você me perguntasse: qual país já chegou ao comunismo? Eu responderia: nenhum. Porque o comunismo é uma etapa posterior ao socialismo. Esse seria um primeiro ponto de avaliação. Qual o rumo do socialismo, então? É o que direciona as forças produtivas, principalmente as estratégicas – produção de minérios, alimentos, tecnologia, a favor das grandes massas, da maioria, do povo. E, depois, organiza bem para que tudo o que tenha sido conquistado com o desenvolvimento dessas produções seja investido na saúde, na educação, na ciência. Enfim, atua, primeiramente, portanto, na direção da distribuição de renda. Só mais adiante é que esse sistema socialista pode chegar ao seu amadurecimento e, assim, não precisar da figura do Estado. Aí, sim, teríamos, de fato, o comunismo. O socialismo é, portanto, uma transição do capitalismo para o comunismo. No entanto, em cada país que se instala, esse sistema vai se desenvolvendo e tomando uma forma diferente. Atualmente, a China está se posicionando dessa forma e precisamos observar a sua trajetória, pois isso me parece ser especialmente importante. 

Diante da crescente tendência de aumento do conservadorismo “de direita” no mundo, o que parece ressuscitar, inclusive, o fantasma da ameaçadora "ditadura comunista", você considera que o exemplo chinês pode vir a se estabelecer, de fato, como um bom modelo para o mundo, em termos sociopolíticos? Ou melhor, você visualiza, no mundo capitalista, em geral, condições realmente favoráveis a essa transição  para o socialismo/comunismo? 

Sim. E é precisamente por isso que lutamos. É impossível um país ser socialista sozinho no mundo, estando rodeado de capitalistas por todos os lados. Por isso é que nós erguemos, então, uma bandeira internacionalista e nos preocupamos com a realidade dos países, com seus processos de desenvolvimento e avanço. A gente se preocupa, porque sabe que, hoje, o mundo está justamente vivenciando uma onda conservadora, com vários governos de direita sendo eleitos em vários países*. Mas os comunistas não são o problema. O problema é a ideia equivocada que se tem deles. Como fazer para reverter isso é justamente a grande questão. Mas se conseguirmos fazer o povo abraçar essa ideia, essa causa, do bem comum, da justiça social, nossa vitória será certa, não tenho dúvidas. Entendeu? Se o povo abraçar a ideia... 

* O fenômeno da ascensão da extrema-direita vem causando instabilidade nas democracias de diversos nações do globo. Nas Américas, ele já se faz particularmente presente em países como o Brasil, a Bolívia, o Chile e os EUA, estando representado hoje por seus respectivos presidentes, a saber: Jair Bolsonaro, Jeanine Áñez, Sebastián Piñera e Donald Trump. Na Europa, ele vem se mostrando especialmente preocupante, ao eleger números cada vez mais expressivos de representantes nos Parlamentos de países como a Espanha, a Suécia, a Alemanha, a Itália, a França, a Hungria, a Finlândia, dentre inúmeros outros.

Podemos entender que existe hoje, então, uma certa crise da esquerda, que vem perdendo, cada vez mais, espaço no mundo contemporâneo? É possível criar estratégias para reverter essa tendência ideológica que nos conduz a uma crescente onda conservadora de direita? 

Esse é um grande desafio, inclusive, aqui no Brasil. A derrota nas últimas eleições, que consolidou a ascensão da direita em território nacional, nos colocou na defensiva*. E quando se está na defensiva, você acaba perdendo muitas forças, porque, para reuni-las, você tem que estar muito confiante e partir para o ataque, como quem diz: “vamos, vai dar certo! Nós vamos conseguir”. Mas quando as coisas começam a não sair conforme o esperado, as pessoas tendem a ir se desanimando e se desmobilizando. “Ah! Se não conseguiu lá, por que vamos conseguir aqui?”, interrogam-se elas. Por isso, podemos observar, atualmente, um movimento de retração da esquerda, no mundo quase todo, de forma geral. 

* As últimas eleições brasileiras foram marcadas pela polarização entre a esquerda (PT) e a extrema-direita (PFL). Sob a bandeira dessa última, o País elegeu, ao final, Jair Bolsonaro, tido como sendo o candidato mais conservador das últimas eleições. O partido da entrevistada (PCdoB) lançou, inicialmente, a candidata Manuela D'Ávila às últimas eleições presidenciais. Porém, para reforçar a frente de esquerda, Manuela se uniu, ao final, a Fernando Haddad, candidato do PT, como sua vice-presidente.  

A gente percebe, inclusive, que há também muita confusão a respeito do que, de fato, seja  o papel de um estado socialista, portanto, de esquerda, e um de direita, mais adepto, por sua vez, às pautas neoliberais, que tendem a privatizar a área social como um todo. Daí a dificuldade de se garantir, por exemplo, os devidos investimentos públicos em áreas estratégicas para o desenvolvimento do país, como a educação, a saúde, o transporte, mesmo que estejamos entre as dez maiores economias do mundo. Ademais, é curioso notar que, normalmente, os países ditos desenvolvidos têm uma tendência a investir, justamente, mais nessas áreas. Na sua opinião, a que se deve essas aparentes incongruências?

Olha, não existe nada no Brasil que possa ser desvinculado dos interesses dos países ricos no que o nosso país tem a oferecer. Os grandes países, especialmente os Estados Unidos e seus aliados europeus, não admitiram o fato de nós termos vivenciado uma série de avanços, sobretudo nas últimas décadas, e, por isso, passaram a ver o Brasil como motivo de preocupação. Quando um país igual ao Brasil, tendo como presidente um operário, que se destaca mundialmente, é chamado para mediar conflitos graças à sua habilidade de negociação e articulação, e, com isso, contribui para o surgimento de algo como o BRICS, isso passa a ser visto como um grande perigo (para as nações que pretendem manter a hegemonia econômica mundial). 

É por essa capacidade de articulação internacional que a esquerda no Brasil se torna, então, uma ameaça para o mundo? 

Não somente por isso. Soma-se a esse fato, ainda, à criação dos BRICS durante o Governo Lula, a descoberta da maior jazida de petróleo do mundo, que pode fazer o nosso País se tornar autossuficiente na produção de combustível e, com isso, passar a investir 10% a mais em educação*. Depois, vem também a questão de sermos o país com a maior área de terras ainda não cultivadas; porque tanto os Estados Unidos, quanto a própria China, embora sejam países tão extensos quanto o nosso, dispõem de pouca quantidade de terra a ser explorada, em comparação ao Brasil. E a direita internacional sabe desse nosso potencial, sobretudo mineral, que é muito grande. E o Trump, com suas guerras e ocupação dos países, é o exemplo perfeito desses interesses de direita. É a mesma política, de contornos fascistas, a meu ver, que ele insiste em continuar. E dessa forma, ele já vem tentando retomar a liderança do Estados Unidos, que estava começando a se perder, com o avanço econômico dos países emergentes.

* Em 2006, foram descobertas as maiores reservas de petróleo do Brasil (camada do pré-sal), localizadas em águas profundas do litoral brasileiro. A possibilidade de uma exploração nacional do recurso, via a estatal Petrobrás, fez com que o governo vislumbrasse. na época, a aplicação de percentual dos lucros rendidos para alavancar a educação brasileira. Em 2010, foi promulgada a Lei 12.351 que, dentre outras questões, dispõe sobre o regime de exploração do petróleo nas áreas do Pré-Sal e cria o Fundo Social para gerir esses recursos. Em 2013, a Lei 12.858, conhecida como “Lei dos Royalties do Petróleo”, determina, então, que 75% dos royalties do petróleo do Pré-Sal deveriam ser destinados à educação e os outros 25% para saúde. As projeções apontavam para investimentos da ordem mais de 84 bilhões de reais para educação até 2022. Isso acabou ficando ameaçado com a derrubada do governo de Dilma Rousseff, em 2016, e o crescente interesse internacional, sobretudo dos EUA, quanto à exploração do recurso. Porém, o interesse anunciado aparente não se confirmou, na prática, visto que o leilão do pré-sal, realizado em novembro passado, contou apenas com a parceria de empresas chinesas. Entretanto, os investimentos na educação permaneceram sendo alvo de instabilidades, anunciadas já início do governo de Jair Bolsonaro, mediante políticas de contingenciamento no setor. 

Quer dizer que o que estamos vendo acontecer em nosso País em termos políticos e econômicos, atualmente, é consequência dessa tentativa de os EUA reconquistar a sua ameaçada hegemonia mundial? 

Sim. Quando olhamos para o contexto mundial, observamos que os EUA estão sob ameaça porque exerceram, por muito tempo, um poder unipolar. Agora existem vários polos que se opõem aos EUA. Temos a China, a Rússia, a Índia, países que já estão com uma economia bastante avançada e vêm contribuindo para equilibrar um pouco a balança da economia mundial. Então, com a direita crescendo, começa-se a dividir novamente o mundo. É uma estratégia que a direita e países como o Estados Unidos usam para ocupar o mundo. E nessa jogada, Trump observou que, à medida em que as empresas iam saindo dos EUA em busca de mão de obra mais barata em outros países, com leis trabalhistas mais frágeis, eles acabaram perdendo essas empresas e a receita por elas geradas, bem como também foram repassando tecnologia para outras nações. Isso beneficiou, de certa forma, os países emergentes, principalmente a própria China, que soube tirar um bom proveito da situação, ao exigir das empresas estrangeiras que lá se instalaram o compromisso de repassar tecnologia aos chineses, após os anos de usufruto das vantagens de seu país. Resultado: hoje eles fazem tudo que os outros países desenvolvidos fazem*. 

* Até o final dos anos 1960, a China adotava o modelo maoísta, em que predominava a propriedade estatal dos meios de produção, todas controladas pelo Partido Comunista Chinês (PCC). No início da década de 1970, Deng Xiaoping assume o poder no país e promove uma ampla abertura da economia chinesa ao mercado internacional, permitindo, a partir de então, a instalação de empresas estrangeiras em seu território nacional. As inúmeras vantagens oferecidas atraíram o interesse de inúmeros investidores estrangeiros, que passaram a enxergar no país uma grande oportunidade de negócios, sobretudo pela mão-de-obra extremamente barata e pela abundância de matérias-primas. A grande vantagem para o governo chinês residia, no entanto, no fato de que, ao se instalarem no país, essas empresas estrangeiras eram, necessariamente, obrigadas a se associarem a uma empresa local (que era geralmente uma estatal). Isso fez com que, ao longo do tempo, a tecnologia trazida por essas empresas estrangeiras fosse sendo repassada para a indústria local, que foi, pouco a pouco, se especializando e incorporando o know-how das grandes marcas mundiais. Para consolidar essa nova expertise, o governo chinês investiu pesado em educação, tecnologia e inovação. Em seguida, passou a investir também fortemente na industrialização do país, ganhando destaque na produção em massa de artigos variados, feito este que faz da China hoje a segunda maior economia mundial. 

Você acredita que uma das grandes vantagens da economia chinesa foi investir na educação e na tecnologia? 

Isso, a China investe muito em educação. O governo chinês incentiva, por exemplo, milhares de chineses a estudarem nos Estados Unidos, com o compromisso de depois voltarem para aplicar os conhecimentos adquiridos fora em seu próprio país. E todo esse conhecimento acaba tendo muito retorno, porque eles investem na área da educação e na área da pesquisa. Essa situação que fez a China ser hoje o que é. Em contrapartida, nos Estados Unidos, com a saída em massa de várias empresas, há cidades que se tornaram verdadeiros cemitérios. Detroit é um exemplo disso. Algo similar começou a acontecer por aqui também, com empresas saindo do ABC Paulista, por exemplo, procurando campos mais baratos de produção. Porque essa é a natureza do capitalismo: o lucro máximo, não importa onde. “Se aqui estamos pagando muito imposto, vamos para outro lugar. Aqui nós estamos pagando muito para o trabalhador? Vamos para outro lugar”. Essa é a mentalidade capitalista, por excelência. E os EUA, hoje, na busca por retomar a liderança, acabaram se voltando novamente para a América do Sul, que eles sempre viram, aliás, como sendo o quintal deles. 

Na sua opinião, os EUA estariam envolvidos na queda do PT e da eleição do atual presidente, Jair Bolsonaro? 

Sim. A gente considera que o que está acontecendo no Brasil faz parte de uma estratégia americana, que exerce suas influências em grande parte da nossa justiça, do Ministério Público, da mídia, com esse objetivo de retomar a liderança econômica do país. Não que eles quisessem exatamente o Bolsonaro como presidente, mas acontece que eles passaram a não ter outra alternativa a não ser essa, porque ou era o Bolsonaro, ou era o Bolsonaro ou era o PT, novamente. Então eles investiram na alternativa de direita, exatamente por ser menos preparada. 

Qual avaliação você faz dos 13 anos de governo do PT? 

O PT, quando entrou, tinha um objetivo. Só que chegou lá no governo, deu uma virada, que, de forma geral, contribui mesmo foi para que houvesse um boom na área de commodities*. Com isso, eles acabaram conseguindo fazer muito mais do imaginavam: melhorou o Bolsa Família, ampliou o programa habitacional, aqueceu o comércio, aumentou vagas nas universidades. E foi um grande círculo virtuoso, só que, com isso, tanto o Lula quanto grande parte do PT, acabaram não se atentando para algumas questões estruturais que poderiam ter sido resolvidas, como, por exemplo, na área da comunicação e também na área da educação**.

*  Embora sua característica principal resida, justamente, no fato de ser pouco processada, as commodities são matérias-primas básicas que podem ou não ser utilizadas em produtos de maior valor agregado. No Brasil, esse termo é geralmente usado para se referir à produção de grãos para a exportação.  Segundo informações divulgadas pelo Instituto Mauro Borges, Goiás se destaca no ranking nacional frente à produção de commodities minerais e agrícolas e de medicamentos genéricos. 

** Durante os 13 anos em que se manteve no comando da República, o PT legou ao País importantes avanços. Indicadores internacionais registram, em geral, ao longo do período, melhorias na economia, no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e nas taxas de desigualdade social. No que tange ao primeiro aspecto, o Brasil, que, no início do governo Lula, em 2002, era o 13º no ranking econômico global, chegando a ocupar, em 2011, 6ª posição entre os mais ricos do mundo, ultrapassando, momentaneamente, na ocasião, a Grã-Bretanha. Atualmente, figura como a 9ª maior economia mundial. Inegavelmente, o maior feito ainda hoje largamente considerado dessas sucessivas gestões petistas reside no fato de terem logrado retirar cerca de 40 milhões de brasileiros da linha miséria . 

Você fala de questões estruturais de base?

Sim, de base. Várias situações, inclusive, mostram que eles não tinham uma visão bem consistente de sistema, de rumo, internamente falando, porque estavam mais preocupados mesmo era em fortalecer algo da soberania nacional. O PT conseguiu fazer o Brasil ser respeitado lá fora, ser altivo, ter uma diplomacia bem preparada. Então, para nós, até do nosso partido, tendo em vista esses fatores, o governo estava indo na direção de um bom caminho. Estava caminhando para o desenvolvimento, conseguindo emplacar importantes programas sociais para combater a fome, para melhorar o nível de vida,  distribuir renda. E a democracia também estava sendo aperfeiçoada através de instrumentos importantes como a participação popular. Isso eu cheguei a conferir de perto quando fui num Congresso promovido pelo Ministério da Cidades. Eles haviam elaborado um material intitulado “A Cidade que queremos”, que foi distribuído em todas as cidades do Brasil, junto com a realização de debates para a reunião de propostas a nível municipal e estadual. Depois, elas foram apresentadas nesse evento que foi realizado no Congresso Nacional, onde eu estive presente, junto a um auditório lotado, com duas mil lideranças de bairro. Pessoas simples assim,  que levantavam e expressavam suas opiniões e sugestões, o que serviu para  aperfeiçoar o documento final. Isso, a meu ver, foi um bom exemplo de aperfeiçoamento da própria democracia.

Diante de tantos avanços, o que fez, então, de fato, o PT e a esquerda perderem o espaço que vinham conquistando? 

Primeiro, penso ter sido uma questão de falta de habilidade eminentemente política da ex-presidenta Dilma. Embora ela tenha sido sempre muito democrática, não foi capaz, na época, de ter o jogo de cintura necessário para articular com a oposição. Apesar disso, nunca, porém, acharam nada de errado que pudesse, de fato, incriminá-la, mas, ainda assim, ela foi atacada, desmoralizada na condição de mulher, deposta do cargo de presidente, tudo isso por denúncias vazias. 

E quanto à polêmica em torno do financiamento das campanhas eleitorais?

Os métodos de campanha eleitoral foram os mesmos para todas as partes. Não fosse assim, a esquerda jamais teria tido condições de competir, em “pé de igualdade”, numa campanha eleitoral com a direita, que sempre teve o apoio de grandes empresas, como o McDonald’s, por exemplo. Quer dizer, essas grandes empresas interferem, o tempo todo, no jogo político, sim. Mas incriminar a esquerda por conseguir apoio dessa forma, acusá-la de fazer caixa 2, isso aí foi outro golpe contra nós. E que acabou levando à prisão do Lula, infelizmente. Então, quer dizer, assim como lá atrás, a queda da União Soviética foi uma derrota estratégica que nos colocou na defensiva; no Brasil, foi a incapacidade da esquerda em fazer as mudanças políticas necessárias para se propiciar aos eleitores opções de se escolher candidatos de esquerda, sem ter que, com isso, recorrer, necessariamente, aos mesmos métodos da direita. 

Você acha que o PT deveria ter lutado mais para emplacar uma revisão do sistema eleitoral?  

Eu acho, na verdade, é que a esquerda petista, em geral, não tinha um projeto estratégico para o Brasil, no sentido de buscar, com isso, fazer um pinçamento dos políticos conscientes, honestos, para com eles se alinhar. Encampar uma luta em prol de uma reforma do sistema eleitoral apenas para coibir, realmente, o máximo do financiamento de campanha pelas empresas, não ajudaria muito a esquerda, porque continuaria a favorecer, majoritariamente, a eleição dos candidatos ricos*. E acaba que é o que a gente ainda vê acontecer muito no mundo da política, por exemplo: deputado que se elege só por ter muito dinheiro, mas que não tem compromisso nenhum com a população, em detrimento de outros, que tem sentimento público, que o sangue do social corre nas veias, que realmente sente os anseios da população. 

* Levantamento feito a partir de dados fornecidos à Justiça Eleitoral durante o último pleito presidencial (2018), comprova que metade do atual Congresso brasileiro é composto de milionários. Dos 567 parlamentares eleitos, aproximadamente 49% declararam ter patrimônio superior a R$ 1 milhão. No Senado, a taxa de milionários é de dois para cada três (66%). Na Câmara Federal, de 47%, o que corresponde a um total de 241 deputados. O caso mais emblemático é o do senador Oriovisto Guimarães, do Podemos paranaense. A fortuna declarada do professor, que é um dos fundadores do Grupo Positivo de ensino, gira em torno dos quase R$ 240 milhões. Seu patrimônio fica perto de alcançar, portanto, o montante resultante da soma dos demais 53 senadores eleitos, calculada em pouco mais de R$ 250 milhões. Na Câmara, o destaque vai para o deputado federal Luiz Flávio Gomes (PSB-SP). Sua fortuna, orçada em cerca de R$ 120 milhões, também é decorrente de investimentos no ramos educacional, visto ser o político um dos fundadores da rede LFG, pioneira no ensino a distância da América Latina.

Que vantagens esse atual sistema eleitoral, via de regra, oferece às candidaturas femininas? 

Durante as eleições a gente percebe que aumenta muito a quantidade de mulheres, por conta da cota que foi estabelecida. Mas, acontece que alguns partidos, infelizmente, acabam usando algumas delas como laranjas. Nesses casos, as cotas acabam funcionando de forma bastante deturpada e você percebe, ao final, muitas lideranças mulheres, com grande potencial, preferindo trabalhar para a candidatura de alguém, normalmente, de homens. E foi denunciado, recentemente, a utilização dos recursos destinados às mulheres para outros fins, que acabaram por beneficiar as candidaturas masculinas*. 

* A adoção do sistema de cotas eleitorais implica numa série de medidas que foram sendo progressivamente tomadas ao longo dos anos para favorecer as candidaturas femininas. Elas tem início com a promulgação da Lei n° 9.100, em setembro de 1995, que estabelece então a reserva de 20% das vagas dos partidos para as mulheres nas eleições legislativas municipais de 1996. Dois anos mais tarde, essa legislação é alterada pela Lei n° 9.504/1997, que aumenta para 30% o mínimo referente à cota em questão. Na década seguinte, visando conferir maior efetividade à medida, a Lei n° 12.034/2009 passa a tornar obrigatório o preenchimento das vagas, e não apenas a sua reserva. Por fim, em 2015, a Lei n° 13.165 obriga a aplicação de no mínimo 5% dos recursos oriundo do Fundo Partidário na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. No entanto, corrupções no sistema passam a ser notificadas já a partir das eleições seguintes, em fenômeno que ficou conhecido como "candidaturas laranjas". Em referência ao pleito municipal de 2016, levantamento divulgado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registrou a ausência completa de votos para mais de 16 mil candidatos. Nove em cada dez casos notificados estavam relacionados, na época, às candidatura femininas.

Podemos dizer, então, que há um certo vício cultural de fundo?

Sim. Quando olhamos para a questão eleitoral, estamos enxergando tão somente a cultura estampada na nossa frente. Existe um problema na sociedade, que se reflete exatamente nesse período (eleitoral). Somos mais de 50% do eleitorado, mas não elegemos mulheres. Precisamos compreender o significado desse dado e mudar isso urgentemente. Talvez isso ocorra porque, via de regra, elas estejam muito comprometidas com a questão econômica de suas próprias famílias, o que as obrigam, de certa forma, a serem mais prudentes com relação à probabilidade de arriscar seus salários para investir na política. Isso seria, possivelmente, minimizado se os recursos eleitorais definidos, por lei, para atender a cota de representação feminina não estivessem sendo desvirtuados de sua finalidade. Por outro lado, acho que também há uma profunda sobrecarga de trabalho sobre a mulher na sociedade atual, o que faz com que ela acabe pensando assim: “eu já tenho coisas demais para fazer e não suportaria mais essa demanda”. Apesar disso, noto que a gente conseguiu aumentar bastante, nesses últimos pleitos, o número de candidaturas femininas, inclusive no nosso estado. Então, essas políticas afirmativas acabam tendo sua importância, de alguma forma, porque vão forçando os partidos a irem atrás de lideranças femininas e a investirem, pouco a pouco, num segmento que é considerado mais frágil.

Ainda assim, como você já mencionou, há muitas falhas nesse sistema de cotas, que precisam ser corrigidas. Suponhamos que isso venha a acontecer. Você acha que, nesse caso, essa medida seria, por si só, suficiente para equilibrar a participação da mulher na política brasileira?  

Acho que, antes, precisamos mudar muita coisa ainda, porque o nosso País está muito atrasado, está lá na rabeira, em termos de participação feminina na política. Fica atrás, inclusive, de muitos países africanos ou árabes, onde mulheres ainda usam burca*, por exemplo. O que é um absurdo! O fato é que essa participação da mulher se dá muito mais ao nível das comunidades (e até dos próprios sindicatos) do que na política parlamentar. Subir esse degrau parece ser uma responsabilidade ainda muito grande para a mulher brasileira. A nossa cultura, infelizmente, não ajuda a melhorar essa confiança, porque, para o senso comum, em geral,  lugar de poder não foi feito para mulheres, mas sim para homens. É necessária união para criar uma realidade mais favorável para as mulheres. 

* Nos países islâmicos, a burca é uma vestimenta tradicional para as mulheres que desejam seguir a religião oficial e suas tradições. Considerada obrigatória a partir dos 12 anos, a indumentária cobre a mulher da cabeça aos pés, deixando somente uma espécie de tela na altura dos olhos. 

Você acredita que ainda existam, nesse sentido, muitas barreiras sociais a serem vencidas?

Sim. Uma delas, por exemplo, diz respeito às dificuldades enfrentadas para conseguir o apoio dos próprios companheiros ou maridos. E isso se impõe como um fator determinante, em grande parte das vezes, porque eu já vi, aqui mesmo, inclusive, mulher ser eleita e, depois, abdicar do mandato por causa de ciúmes do marido, por exemplo. Porque participar da política acabou transformando a vida pessoal dela, em casa, num verdadeiro inferno, entende? Isso nunca aconteceu comigo, porque o meu marido sempre me ajudou a estar na política. Até hoje, nós trabalhamos juntos, nessa caminhada. Conversamos muito sobre política, inclusive. Mas isso não é a realidade das mulheres, em geral, eu diria. Porque, quando uma mulher casada se destaca na sua vida pessoal e alcança maior visibilidade, conquistando, inclusive, a sua independência econômica, o mais comum, infelizmente, de se ver, é que isso acaba suscitando a insegurança do parceiro.

Essa questão nos faz pensar, inclusive, sobre os casos de violência contra a mulher em nosso estado. Goiás já é considerado, hoje, infelizmente, o segundo maior em números de feminicídios no País. Você acredita que melhorar a visibilidade e, consequentemente, a participação da mulher na política, poderá impactar positivamente as políticas de proteção às mulheres no nosso estado?

Essa é uma questão ainda bastante complexa, porque a expectativa era justamente a de que esses índices estivessem diminuindo, ao invés de estarem aumentando, como tem acontecido nos casos de feminicídios, por exemplo. Então, o que fica parecendo é que, cada vez que a mulher se destaca, cada vez que ela ganha uma certa visibilidade, passa a ter independência, essas coisas, ela acaba sendo mais agredida. Parece que é justo o inverso do que a gente imaginava! A gente imaginava que, numa sociedade mais moderna, mais avançada, esses números de violências diminuiriam. Mas aí você vê, depois, que a própria cultura não ajuda. Por exemplo, as novelas: o que se reforça nas personagens femininas, inclusive nas mais fortes, é, ao final, tão somente, o potencial que cada uma delas tem para procurar um bom casamento, normalmente com um homem rico. É como se dissesse que o seu poder, seu sucesso na vida, estaria atrelado única e exclusivamente a isso, entende? As músicas que mais se ouve, em geral, também acabam usando um tom pejorativo, às vezes bastante depreciativo até, quando falam das mulheres. Existem letras que são mesmo totalmente absurdas. E não apenas as que são produzidas aqui, mas, também, as que consumimos de países como, por exemplo, os Estados Unidos. Você ouve as músicas daquelas cantoras famosas e acha o ritmo bacana, mas fica chocada quando traduz as letras.

Quer dizer que nossa sociedade precisa ainda passar por uma mudança estrutural profunda antes de alcançarmos uma democracia representativa de fato?

Sim. Para alcançarmos esse nível de democracia, precisamos promover uma mudança no sistema. Aí, sim, poderemos usufruir de uma democracia verdadeira, que, a meu ver, só existirá com a plena participação da mulheres. Quando a gente fala em mudanças estruturais da sociedade, não que isso seja fator de garantia, mas propiciaria, ao menos, sonharmos com uma realidade mais favorável à emancipação feminina. Por exemplo, numa sociedade em que há igualdade de gênero, as mulheres não são discriminadas por sua remuneração ou pelo trabalho que exercem. Isso contribui para aumentar o empoderamento feminino, à medida em que torna mais evidente o fato de que, ali, as mulheres são tratadas com igualdade. Um país onde, de fato, há empoderamento feminino, é aquele em que a mulher poder trabalhar e ter a sua autonomia financeira. Isso, implica, por exemplo, num estado que assegura a educação infantil, para que a mulher possa ter filho com mais tranquilidade, sabendo que vai ter onde deixá-lo, com segurança, para poder dar continuidade à sua capacitação profissional. Implica também, por outro lado, num estado que pune exemplarmente o agressor. Mas isso não é regra ainda por aqui, infelizmente. Você vai hoje às delegacias especializadas e percebe o quanto elas são mal equipadas, o quanto falta pessoal com a capacitação devida, e, inclusive, o quanto seus quadros são insuficientes, em termos de número de funcionários mesmo, para atender a demanda. Um dos resultados disso é o fato de termos notificados aqui muitos casos em que a mulher vai à delegacia, dá entrada no pedido de direito à medida protetiva, consegue a medida, mas acaba sendo morta. Às vezes porque nem chega a conseguir a medida protetiva mesmo. Porque ela chega na delegacia e é hostilizada [pelos policiais], que falam para ela coisas do gênero: “vai pra casa, você está exagerando”. Então, quer dizer, mesmo ela tendo procurado o recurso e feito a denúncia, não existe, no final, um acompanhamento mais sistemático que seja capaz de garantir, de fato, a segurança dessa mulher que solicitou o apoio [a que tem direito por Lei Federal nº 11.340/2006 - popularmente conhecida como Lei Maria da Penha].

Você apresentou vários projetos para a defesa da mulher. Um deles, por exemplo, vem ao encontro disso que está falando, de certa forma. É o que tornava obrigatório a informação sobre mulheres grávidas em decorrência de estupro, pelas delegacias especializadas. Outro, tratava da obrigatoriedade da realização da ultrassonografia obstétrica para mulheres que apresentavam um quadro de hemorragia em hospitais públicos. E há ainda o que previa o fornecimento gratuito de exemplar de cartilha contendo a Lei Maria da Penha, entre muitos outros. Muitos desses projetos citados acabaram sendo rejeitados nas votações aqui da Casa mesmo. Ao que que você atribui isso? Por que motivo é tão difícil garantir a devida proteção às mulheres em nossa sociedade atual?

Sim, muitos dos nossos projetos foram rejeitados mesmo. Isso aconteceu, em grande parte, porque não conseguimos conquistar, ao longo dos meus mandatos, uma parceria efetiva com os nossos colegas parlamentares e também nem mesmo, às vezes, com o próprio governo, que acabou vetando igualmente muito de nossos projetos. Lembro de um dos primeiros projetos que eu apresentei, na época do Governo Alcides Rodrigues [natural de Santa Helena, ele cumpriu mandato como governador entre 2006 e 2010, pelo Partido Progressista, aliado do PSDB]. Nesse projeto, eu defendia que quando uma mulher agredida procurasse o sistema público de saúde, o médico tivesse condições de registrar o caso como sendo de violência doméstica. Mas o projeto foi vetado e, depois, quando voltou para gente derrubar o veto na Casa, foi rejeitado. Quer dizer, não conseguiu a compreensão nem do próprio governador, que era um médico. Sobre esse outro projeto, da ultrassonografia obstétrica, ele foi pensado para que as mulheres pudessem ter acesso a exames de ultrassom quando chegassem ao hospital em estado grave, algo que ajudaria muito a solucionar complicações decorrentes de casos de aborto. Nós fizemos esse projeto porque há muitas mulheres que, por não terem plano, acabam morrendo sem fazer o exame. Por outro lado, eu já vi casos, inclusive, de mulheres serem agredidas, nos hospitais, pelas próprias médicas quando chegam com esse tipo de hemorragia provocada pelo aborto. Eu acho que, às vezes, falta um pouco também de parceria das próprias mulheres para enfrentar essas situações, que são comuns ao universo feminino, percebe? Isso é algo, ao meu ver, muito importante. Mas, de forma geral, a gente percebe que essa questão cultural, que menospreza a importância da luta das mulheres, é disseminada em todos os poderes e lugares. Só agora, com essa onda aparentemente crescente de casos de feminicídio, é que as pessoas, até mesmo pelo choque que esse tipo de notícia gera, parecem começar a despertar mais a consciência para a importância da causa. 

Começam a perceber que existe mesmo uma discriminação de fundo, em relação à mulher?

Exato. Então, a sensação que dá é a de que precisam morrer muitas mulheres, assassinadas por seus companheiros, no caso, para que a sociedade acorde, sabe? A gente vê ainda muitos julgamentos discriminatórios, que vêm até, às vezes, das próprias mulheres. Soubemos recentemente de uma história, a nós contada por uma delegada, por ocasião, inclusive, do último 8 de março [refere-se ao ano de 2019, quando a entrevista foi realizada], sobre uma senhora de 70 anos que arrumou um companheiro e o abrigou na casa dela. O feito a fez, a princípio, alvo de inúmeros julgamentos do povo que dizia: “nossa! Mas ela já está muito idosa para botar um novo homem dentro de casa”. Depois de um tempo, o companheiro começou a maltratá-la. Isso depois, inclusive, dela ter arrumado um local para ele montar um comércio e tudo o mais. Por fim, ele acabou botando ela para fora da própria casa dela. Foi então que o pessoal da rua procurou a delegacia relatando o ocorrido e dizendo que o tal companheiro, ainda por cima, falava assim: "não tem homem nesse mundo que vai me tirar daqui". E a delegada respondeu: “não tem homem mesmo não, porque quem vai tirá-lo de lá vai ser eu, uma mulher”. E, então, ela foi lá, de fato, botou o homem para fora e recuperou a casa da mulher. Mas veja que o julgamento contra ela estava lá antes, sempre presente.

É um sexismo/machismo bem prejudicial às mulheres mesmo, porque a sociedade acaba sendo bastante conivente até, na maior parte das vezes, quando a situação é a inversa, no caso, se fosse ele o idoso de 70 anos que a tivesse colocado para dentro da casa dele.  É aí que a gente percebe o quão esses preconceitos estão impregnados no sistema, mesmo. De tal maneira que se reflete até mesmo nas pequenas coisas, não é?

Isso, nas pequenas coisas. É um machismo estrutural, que por assim ser, se torna quase imperceptível e, por isso, acaba passando batido, em muitas das vezes. Mas, depois, ao analisar com calma e perceber essas nuances, você conclui: “não, realmente, ela não podia ter deixado isso passar”. Mas a questão cultural só vai mudar quando se mudar a base da sociedade, a meu ver. Eu não quero dizer que no socialismo não há machismo. Mas, de alguma forma, compreendo que ele acaba por ser mais ser solidário com as mulheres, uma vez que o próprio estado socialista tende a assumir, com maior grau de eficiência, o seu papel frente à educação das crianças e dos jovens e frente à manutenção de um bom sistema de saúde e segurança pública, por exemplo. Falando na área da educação, especialmente, vejo o quão é urgente a necessidade de se mudar o material didático para propiciar uma aprendizagem baseada na equidade de gêneros e que envolva as crianças, desde pequenas. Eu, na minha casa, por exemplo, tenho que, várias vezes, defender a minha neta contra a agressividade e o machismo dos meus netos, mesmo eles sendo criados num ambiente que não incentiva, de forma alguma, esse tipo de rivalidade. E eles acabam reproduzindo isso porque têm acesso pela televisão, nas redes sociais... É uma ideia e uma prática que já está bem disseminada em nossa sociedade.

E aqui no Parlamento, por ser um ambiente predominantemente masculino, você acha que essas ideias e práticas também se fazem presentes? Melhor dizendo: você sentiu, alguma vez, ter sido vítima de atitude machista/sexista aqui na Casa? Algum tipo de assédio moral, por exemplo?

Olha, para responder a essa pergunta eu vou começar esclarecendo que a minha característica é muito a de tentar construir consensos. Então, nesse sentido, eu considero que vivenciei poucos episódios aqui, de agressividade pela minha personalidade, ou pela minha condição de mulher. Mas lembro bem de ter visto outras colegas deputadas sendo agredidas aqui por essas questões. Por exemplo: quando elas falavam com um pouco mais de ênfase na voz e eram taxadas de desequilibradas. E eu vejo essa questão como sendo discriminatória para com as mulheres, porque quando um homem adota um posicionamento mais forte, ele normalmente é considerado seguro. A mulher, desequilibrada. “Ah! Ela está com TPM. Ah! Ela está na menopausa”, a gente ouve aí pelos corredores. Então, eu vi muitas aqui sendo chamadas assim e, às vezes em que tentei sair em defesa delas, acabei ouvindo de deputado: “se continuar, vai sobrar para você”...

Como você enfrentou essa situação? 

No caso, achei melhor não provocar, porque vi que ele estava usando um tom bem agressivo, bem grosseiro mesmo. Lembro de outra situação também, em que tive que um deputado me chamou de “malandrinha”, durante uma votação de comissão. Eu achei muito estranho ele se referir a mim daquela forma, tudo por causa de um pedido de vista, coisa boba assim. Eu estava perto dele e senti a minha perna bambear, no momento, porque você ser chamada de um termo assim, por uma questão política, objetiva, quando ninguém estava querendo enganá-lo, é algo que ofende. E, depois, refletindo bem sobre o episódio, eu cheguei à conclusão que ele só se sentiu à vontade para falar daquela forma comigo por eu ser mulher. Se eu fosse um homem, ele não falaria aquilo, porque teria, possivelmente, levado um murro na cara. Ainda que eu tenha reagido e tentado me defender, isso não foi suficiente para o impedir de falar daquela forma comigo. Mas, a verdade mesmo é que, no geral, eu tento manter uma posição mais articuladora. Quando nós tivemos aqui as sete deputadas, em período que chamávamos a Alego de "A cada das sete mulheres", nós procurávamos trabalhar com muita parceria e sem que uma quisesse aparecer mais do que a outra*. Então esse foi um período muito bom, para nós, na Casa. Fico triste em perceber o quanto esse número foi sendo reduzido a ponto de hoje só termos aqui duas deputadas atuantes. De fato, um absurdo, termos tantos deputados homens, sobretudo num estado como o nosso, em que o feminicídio atinge índices alarmantes.

** Isaura assumiu seu primeiro mandato na Alego (1999), na 14ª Legislatura, junto a outras seis mulheres. Eram elas: Denise Carvalho, Lamis Cosac, Lila Spadoni, Onaide Santillo, Raquel Rodrigues e Rose Cruvinel. No final daquele mandato, a Rede Globo de Televisão transmitiu a minissérie “A casa das sete mulheres” (2003), romance da escritora gaúcha Letícia Wierzchowski. O fato serviu de referência para a versão jocosa presente no comparativo usado pelas deputadas da Alego

Isaura, você esteve na Casa por cinco mandatos. Houve, de forma geral, alguma conquista que você destacaria como sendo memorável, ao longo desse período?  

Olha, se você pensar assim, em dados ou resultados concretos, a realidade quanto a esse aspecto se revela, de fato, muito frustrante (riso nervoso). Primeiro porque o mandato não dispunha, até então, de recursos próprios para desenvolver suas políticas e programas. Agora, neste ano [2019, no caso], é que está previsto começar a ter, em decorrência da aprovação das emendas impositivas no orçamento [durante a 18ª Legislatura]*. Se eu tivesse continuado no cargo de deputada, eu teria direito a dois milhões e 500 mil reais, em orçamento impositivo, para ser executado neste ano [em 2019]. Então, nas matérias que eu precisasse de orçamento para poder realmente ajudar a melhorar e a transformar aquela realidade, nós teríamos agora; o que não tivemos, antes, infelizmente. Então, nosso poder de decisão para várias questões ficou muito limitado. Mas aí, eu tento enxergar tudo de forma mais abrangente. Por exemplo: quando nós fizemos a CPI do Transporte Coletivo, embora eu não tenha ficado nem com a  relatoria, nem com a presidência, naquele momento, fazia 30 anos que não havia qualquer processo licitatório na área. E não só na Capital, mas em todas as cidades do interior. Hoje, embora o transporte ainda não seja de qualidade, houve uma mudança para melhor, ainda que pequena, visto que contamos agora com o devido processo licitatório. Então, acho que essa foi uma conquista importante. A outra diz respeito ao processo de regularização dos lotes doados pelo Estado, porque, até então, havia ainda muitos loteamentos antigos sem as devidas escrituras. E nós conseguimos aprovar um projeto de regularização que praticamente deu acesso a milhares de escrituras. Isso tudo foi apresentado e discutido no âmbito da Comissão de Habitação, que presidi por muitos anos, e para a qual trabalhei bastante, tendo ouvido vários especialistas, assim como a sociedade civil de forma geral.

* A matéria passa por novas revisões, que tramitam agora por meio do Processo Legislativo nº 0745/2019. 

Há muita demanda ainda, nessa área?

Sim. Existem muitos loteamentos, doados pelo Estado, que ainda não estão regularizados. Aqui em Goiânia mesmo, eles são inúmeros. Mas já avançou bastante, com muitos já estando devidamente escriturados.

Isso trouxe algum benefício às mulheres, de forma especial?

Sim. Beneficia muitas mulheres, porque, em geral, a maioria desses lotes são colocados no nome delas. Essa, inclusive, era uma questão pela qual eu já lutava antes mesmo de ser deputada. Por exemplo: quando eu participei da diretoria de Assentamento Urbano da Secretaria de Ação Social do Estado, durante a gestão de Maguito Vilela [ele foi governador de Goiás de 1995 a 1999], deliberamos quais seriam os critérios para a conquista de lotes por parte do Governo, que envolveu, naquele período, sobretudo os loteamentos da região Noroeste. A avaliação, para a requisição da titulação, considerava aspectos como: ser "mãe solteira" ou "mulher chefe de família". Isso forçava, já naquela época, que as escrituras saíssem, ao final, em sua maioria, no nome das mulheres, o que se deu muito antes, portanto, do programa "Minha Casa Minha Vida", ratificar esse critério, no âmbito do governo federal. Isso porque, de fato, são as mulheres que fazem mais questão de ficar com a casa. Os homens, em sua maioria, acabam por vendê-las. Basta surgir um problema e a saída que eles encontram é a venda.

Por ter sido essa questão da moradia a sua principal bandeira aqui na Casa, que conquistas você considera ter alcançado nessa área durante os seus mandatos?

Meu primeiro mandato como deputada coincidiu com o do Marconi, como governador. E essa questão da moradia foi uma pauta que eu coloquei como condição de apoio à gestão dele. Sugeri, na época, inclusive, a criação de um programa especial, que acabou sendo institucionalizado por meio do Cheque Reforma e Moradia. Então, acredito que essa foi uma proposta bem sucedida de nossa parte. Isso se deu em troca de eu assumir a Secretaria de Habitação, que era algo que tínhamos acordado antes, em decorrência dessa nossa longa experiência na área. Ao final, ele acabou não me nomeando, mas mandou mensagem para nos informar sobre a criação do programa, por meio do qual nós conseguimos atender, assim, milhares de famílias.

Além dessa, que outra bandeiras e conquistas você acrescentaria ainda como tendo sido parte do legado de seus mandatos?

A luta pela Reforma agrária, cuja principal conquista se deu, a meu ver, por meio de um projeto apresentado no meu último mandato e que acabou virando lei. Trata-se da política de fortalecimento da agricultura familiar, instituída por meio de fundo a ser criado especialmente para esse fim. Há nesse âmbito também outras questões de relevo, que não se tornaram leis, mas que acabaram se efetivando, na prática, e chegando, em muitos dos casos, a se tornar uma espécie mesmo, inclusive, de medida protocolar, a  meu ver. Por exemplo: a presença de um comitê mediador para as desocupações protagonizadas pelo estado. Após mediar muitos conflitos no campo e na cidade, onde tinha a oportunidade de conversar tanto com as famílias quanto com os donos das propriedades, eu verifiquei que a população afetada estava sempre desassistida nesses momentos e que, justamente por nunca contar com quem pudesse conversar e dialogar, acabava sendo sempre alvo de ações truculentas por parte da polícia, encarregada de dar cabo às desocupações. Isso se tornou mais evidente para mim, sobretudo após o dramático episódio ocorrido no Parque Oeste Industrial*. Eu fui a única deputada que estava lá no dia da desocupação e percebi, ali, o quão necessária era a existência de um comitê capaz de ouvir e orientar os afetados nesses momentos de crise. Então, eu coloquei essa questão para o governo Marconi, lamentando, inclusive, esse grande erro cometido por sua administração, na época. Até porque o evento acabou chegando mesmo a um desfecho trágico, com a polícia entrando de forma violenta e matando alguns ocupantes. O governador nos ouviu e esses comitês mediadores acabaram sendo criados e se tornando uma prática, mais ou menos, regular nos processos de desocupação. Então, eu acho que essa foi outra conquista importante. 

* Em 2005, a região do Parque Oeste Industrial de Goiânia foi palco de um dos maiores conflitos de terra já visto na Capital goiana. Naquela ocasião, cerca de 3 mil famílias foram retiradas à força pela Polícia Militar de Goiás, graças a uma ordem judicial que determinava a desocupação dessa área particular. Durante a operação, duas pessoas morreram e várias ficaram feridas. 

Você chegou a enfrentar alguma situação de perigo ao defender essas causas?

Sim. Eu cheguei a ser ameaçada de morte por uma mediação que fiz junto ao Movimento de Retorno ao Campo, que também luta pela reforma agrária, mas que não pertence ao Movimento dos Sem-Terra (MST). Na ocasião, dois integrantes do movimento haviam sido assassinados. Eu até evito de falar nisso, porque na época eu fui monitorada para não tocar nesse assunto. Havia deputado aqui dentro que ficava me rodeando: “você vai falar sobre isso?” Os conflitos do campo são sempre carregados de muita truculência e você se frustra também porque, em muitas situações, você não pode ir até às últimas consequências, por ser algo muito perigoso. Além disso, são questões muito complexas, impossíveis de serem resolvidas numa canetada, digamos. Elas só se resolvem, realmente, com uma mudança na estrutura fundiária, que envolve a redistribuição de terras que não estão sendo produtivas, conforme está previsto na própria Constituição. A nossa lei máxima diz que toda terra que não esteja cumprindo a sua função social, que é produzir alimentos para a população, deve ser, necessariamente, desapropriada para fins de reforma agrária. Mas, na prática, não é assim que funciona. 

Houve outras áreas que você buscou contemplar em projetos, durante os seus mandatos?

Sim. A da área da educação, por exemplo. Nós apresentamos um projeto para a inclusão de metodologia voltada ao atendimento especial de alunos com Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade - TDAH. Essa situação hoje ainda é muito insuficiente no estado. Crianças acabam abandonando a escola, não só por desconhecerem o diagnóstico de TDAH, mas também por outros outros distúrbios de aprendizagem igualmente subdiagnosticados, como a dislexia, por exemplo, e que as impedem de conseguir se socializar corretamente. Em consequência disso, muitas acabam indo morar nas ruas e caindo na marginalidade, visto que são, muitas vezes, discriminados pelas próprias famílias. Na tentativa de encontrar uma saída para o problema, nós fizemos inúmeras audiências, aqui na Alego, reunindo todas as entidades envolvidas com a causa para debater os casos.

Você propôs, no início de seu quarto mandato, um projeto que tem muito a ver com a sua história pregressa, de militância contra a ditadura. Trata-se de proposta que visava a criação da Comissão da Verdade no Estado de Goiás e que estava alinhada com movimentação semelhante, existente, na época, no cenário nacional. A matéria acabou não saindo, no entanto, da fase de discussão inicial, ficando retida na própria CCJ. O que a motivou a apresentar tal propositura? Por que ela não foi adiante?

Acho que o presidente, na época, não quis contratar pessoas para fazer esse trabalho [em 2012, ano em que o projeto entrou em tramitação na Casa, o presidente da Alego era Fábio Sousa*]. Embora ele tenha dito, a princípio, que ia implementar, porque cabe a ele, tendo chegado, até mesmo, a assinar a proposta, o resultado foi que, ao final, a matéria acabou nem entrando na pauta de votações do Plenário. Temos um histórico muito grande de casos, aqui em Goiás, que poderiam ser documentados e revelados, sobre essa questão da violência durante o período da ditadura, mas que acabaram ficando na invisibilidade. Essa foi a razão principal de eu ter apresentado tal propositura. Um dos exemplos, inclusive, envolve um ex-deputado aqui da Casa de nome Zé Porfírio**.

* Para ver galeria completa de ex-presidentes da Alego, clique aqui.

** Em fevereiro de 2014 foi criada a Comissão Estadual da Memória, Verdade e Justiça (CEMVJ) Deputado José Porfírio de Sousa, a partir de ato do governador Marconi Perillo, publicado no Diário Oficial do Estado. O colegiado, criado no âmbito da Secretaria da Administração Penitenciária e Justiça (SAPeJUS/GO), tinha como objetivo esclarecer as graves violações aos direitos humanos perpetradas pela ditadura militar em Goiás. Entre os componentes estavam: a Alego; o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás; a Secretaria de Estado da Segurança Pública; o Ministério Público do Estado de Goiás; a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Goiás; a Associação dos Anistiados, pela Cidadania e Direitos Humanos do Estado de Goiás (Anigo); a Associação Goiana de Imprensa; a Universidade Federal de Goiás; a Pontifícia Universidade Católica de Goiás; a Universidade Estadual de Goiás; o Conselho Estadual de Direitos Humanos; o Comitê de Prevenção e Combate à Tortura; além da própria SAPeJUS e mais quatro representantes da sociedade civil. A CEMVJ foi presidida por Edemundo Dias, então gestor da SAPeJUS e teve seus trabalhos concluídos em dezembro daquele ano. "Nós temos aqui em Goiás 15 desaparecidos políticos e mortos. Dentre esses, nós podemos destacar, e até sugerir que essa comissão olhe com cuidado, os casos de José Porfírio de Sousa, Marco Antônio Dias Batista, Ismael Silva de Jesus e Honestino Guimarães", afirmou o então presidente da ANIGO, Marco Antônio Dela’Corte, durante a solenidade de instalação da comissão. 

Esse Zé Porfírio foi um deputado estadual que figura na lista de desaparecidos políticos do regime?

Isso. Ele era ligado ao movimento de Trombas e Formoso, protagonizado por trabalhadores rurais. Ele próprio era um trabalhador rural, que foi eleito deputado. E você deve imaginar o quanto é difícil se eleger um trabalhador rural. Mas ele foi eleito, porque era um grande líder. E, de repente, foi a Brasília tratar de umas questões e, no retorno, simplesmente desapareceu, nunca mais foi encontrado pela família. Não existe sequer um registro claro da atuação do ex-deputado neste Parlamento, porque muitos dos arquivos daqueles tempos foram queimados. Então, isso é gravíssimo. Fora diversos goianos, que se destacaram, inclusive, nacionalmente, como Honestino Guimarães, que foi presidente da UNE, que acabaram sendo barbaramente torturados ou mortos, e que não se tem até hoje o registro exato de seus respectivos desaparecimentos. Foi por isso que defendi, na época, a necessidade de se instaurar aqui uma Comissão da Verdade, em âmbito institucional. Mas, nós temos, no entanto, a Comissão da Anistia do Estado de Goiás*, que já conta, hoje, com várias publicações feitas pela UFG.  

* Trata-se, na verdade, da ANIGO (Associação dos Anistiados Políticos do Estado de Goiás), já citada em comentário anterior. Segundo informações oficiais recentes, a entidade, hoje presidida por Elio Cabral de Souza, tem sua sede localizada na Avenida Anhanguera, no Centro de Goiânia.

Passados tantos anos, a gente hoje imagina que deve ser ainda mais difícil de levantar, com precisão, essas informações, não?

Com certeza. E são muitos casos, como o do irmão do Renato Dias*, jornalista do Diário da Manhã. Ele tem um irmão que também é dado como desaparecido, desde aqueles tempos. É o desaparecido mais jovem de que se tem notícia até o momento. Ele, que era militante contra o regime, desapareceu aos 15 anos. E a família inteira ficou com sequelas, sofrendo até hoje com depressão. A mãe acabou morrendo num desastre, vindo de Brasília para cá, numa de suas idas atrás de informações sobre o espólio do filho. É uma situação muito devastadora, principalmente para uma mãe, essa de saber que não terá nem direito a enterrar o filho dignamente.

* Em 2015, Renato Dias - jornalista, especialista em Políticas Públicas, sociólogo e mestre em Direito e Relações Internacionais - lançou o livro “O Menino que a Ditadura matou” contando a história do irmão assassinado aos 15 anos, cujo corpo jamais foi encontrado. Pela obra, ele recebeu o prêmio o Prêmio Nacional de Jornalismo e Direitos Humanos, criado pelo Movimento de Justiça dos Direitos Humanos, a OAB do Rio Grande do Sul e outras duas entidades, com objetivo de estimular as denúncias de violações dos direitos humanos. Além desse, escreveu ainda outros livros, tais como “Luta Armada/ALN-Molipo” e “As Quatro Mortes de Maria Augusta Thomaz”. Em 2017, foi novamente contemplado com o Prêmio Nacional de Jornalismo e Direitos Humanos, graças a uma série de reportagens de sua autoria sobre a Criminalização dos Movimentos Sociais, Denúncia de Prisão de Sem-Terras, Escalada do Trabalho Escravo e da Violência no Campo. Também neste ano, lançou, na Alego, “Tardia e Incompleta – A Justiça de Transição no Brasil”, seu 11º livro-reportagem, onde realiza uma investigação sobre o período histórico compreendido entre o fim da ditadura militar e a redemocratização do País.

Caminhando, agora, para o encerramento dessa entrevista, voltemos, antes, à questão da participação feminina na política goiana. A seu ver, há legado que tenha sido deixado pelas deputadas mulheres no Parlamento goiano? O que você acha que ficou de mais importante das cinco legislaturas que você participou e do trabalho que realizou junto a cada uma delas durante os seus sucessivos mandatos?

Olha, eu acho que o legado é muito rico e demonstra o esforço das diversas mulheres que por aqui passaram. Juntas, elas imprimiram, realmente, com a força e determinação embutida nos seus inúmeros trabalhos prestados, a marca da luta em prol do resgate da dignidade da feminina e, consequentemente, da diminuição desses bárbaros índices de feminicídio, de agressão e todo tipo de discriminação contra as mulheres. O nosso estado tem uma cultura agrária, machista e, para nós, bastante discriminatória. E eu não tenho dúvidas que, de alguma forma, todas que passaram por aqui deixaram essa marca de contrariedade com relação a essa realidade. O esforço, a determinação, as dificuldades encontradas na trajetória dessas mulheres são muito importantes para se compreender a necessidade de mudanças que fazem ainda hoje presentes. 

Você teria alguma mensagem de encorajamento a deixar aqui registrada e endereçada a essas mais de três milhões de mulheres goianas que merecem ser tratadas com justiça e equidade em nossa sociedade atual?

Nós, mulheres, só cumprimos efetivamente o nosso papel, à medida em que continuamos lutando para nos fazer cada vez mais presentes não só aqui na Assembleia, mas nos três Poderes. E além até, ocupando também o quarto poder, que é a mídia. Precisamos disseminar bem essa ideia. Assim, no Poder Executivo, é importante incentivarmos que mais e mais mulheres tenham a oportunidade, por exemplo, de serem governadoras e, aqui, não tivemos ainda. E também prefeitas*. Nós temos que continuar mostrando que somos capazes de ir sempre mais e mais além do que esse lugar que nos é ainda hoje socialmente destinado. Infelizmente, a experiência da presidenta Dilma, enquanto primeira mulher a ocupar esse posto, deixou uma marca ruim, que veio a reforçar, de alguma maneira, aquela crença preestabelecida e equivocada sobre a incapacidade da mulher em comandar os destinos de uma nação. Embora seja, a meu ver, injusta essa imagem que pesa sobre os ombros de nossa ex-presidenta, a situação concreta que ela gera, e que fala muito sobre a derrota da legítima presença de uma mulher no poder, tem que ser mudada. Não podemos permanecer, frente a ela, numa posição defensiva. “Ah, eu não vou disputar porque o povo não vai votar mais numa mulher”. É justo esse tipo de pensamento derrotista que não devemos jamais admitir para nós mesmas. Acho que o momento é de erguer a cabeça e seguir adiante, na luta. Nós temos que lançar mais nomes de mulheres e fazer mais articulações e movimentos para que elas, cada vez mais, apareçam, não apenas como candidatas para preencher uma "cota" legal [fez o sinal de aspas com os dedos], mas que tenham condições reais de disputarem dignamente uma eleição e serem, assim, de fato, devidamente eleitas.

*Prefeitas goianas. No último pleito municipal, ocorrido em 2016, o estado de Goiás elegeu 32 mulheres para assumir o comando de prefeituras em cidades do interior (13% do total). Seis delas foram reeleitas: em Goiás, Selma Bastos (PT); em Guarinos, Ana Maria (PSD); em Ipameri, Daniela Vaz (PSDB); em Nova Roma, Miriam Sampaio (PSDB) e em Santa Rosa, Leia Cesar (PSDB).O resultado contemplou sete novos municípios, em relação à disputa eleitoral anterior. O PSDB foi o partido que mais elegeu mulheres em Goiás, passando de quatro para dez prefeitas, e foi seguido pelo PMDB, que pulou de duas para sete, e o PTB, de duas para cinco. O PT e o PP tinham três e elegeram duas. Dos 246 municípios goianos, duas cidades (Pires do Rio e Santa Isabel) tiveram somente mulheres como candidatas. 

Você acredita que uma maior presença de mulheres na Casa poderia, de fato, contribuir para a renovação deste Parlamento? 

Sim. E não só acredito nisso como espero, honestamente, que nós possamos nos engajar, daqui para frente, cada vez mais, em campanhas que busquem atrair novas candidatas mulheres. Para que, cada vez mais, jovens venham a abraçar também essa causa, porque a juventude tem um papel fundamental nesse processo todo. Vocês viram no Congresso quantos jovens foram eleitos deputados federais nas últimas eleições*? São justamente eles que estão dando um frescor ali para a Câmara Federal, ao trazer uma política sem vícios, uma política de renovação e o mais honesta possível. E eu acho que é necessário, aqui também, termos um pouco mais de ousadia. Então, a mensagem que eu deixo, ao final, é um chamado, na verdade, para que vocês, que são mulheres e jovens, possam ousar. E que nos tragam, com isso, muitas inspirações positivas.

* Renovação no Congresso Nacional. A atual Legislatura do Congresso Nacional foi a que contou com os maiores índices de renovação desde a redemocratização. No Senado eles bateram a casa dos 87%, com 46 das 54 vagas sendo ocupadas por novos nomes. Na Câmara dos Deputados, a taxa foi de 52%, com 243 de suas 513 cadeiras sendo preenchidas por parlamentares de primeiro mandato. Desse total, ao todo, seis deputados contavam com idades inferiores ou iguais a 25 anos.  

Falando em inspirações e agora fechando, de fato, essa rica entrevista: quais são as suas principais referências femininas dentro do movimento de esquerda, hoje? De que forma o PCdoB tem procurado estimular a participação dessas lideranças mulheres na política?

Nós temos hoje importantes referências femininas dentro do partido. Muitas referências de destaque nacional, inclusive. A deputada Jandira Feghali*, do Rio de Janeiro, é bom exemplo. Ela está agora no seu quinto mandato como deputada federal. Temos ainda nossa presidenta do partido, Luciana Santos**, que também já foi deputada federal, e atualmente é vice-governadora de Pernambuco. Mulher, engenheira elétrica, uma pessoa extremamente capaz. Tem a Manuela d'Ávila***, que foi a nossa candidata a vice-presidente e que também é uma referência nacional. A Alice Portugal****, que é uma deputada baiana, bastante articulada e com muita experiência no Congresso, estando lá já há vários mandatos. Então nós temos essa rede de deputadas federais que têm uma voz de comando proeminente em nosso partido. Nós não temos algo como um PCdoB Mulher, porque consideramos que a luta pela emancipação da mulher deve ser feita, tanto por homens, quanto por mulheres, em igual proporção. Isso é, inclusive, um elemento educativo dentro do partido, tanto que, nos congressos, todas as discussões que vão tratar sobre a questão da mulher são abertas à participação de militantes de ambos os sexos. Há, portanto, aí, democracia, com destaque para a participação efetiva das mulheres, que ocupam agora a direção do partido em várias esferas, incluindo a nacional. Eu faço parte da direção nacional e noto que, ao lado de toda essa nossa luta em busca de um sistema econômico mais justo e que não vise só o lucro, há ali também uma preocupação muito grande acerca da emancipação da mulher. Isso é um sonho, de fato, e é uma questão que demanda tempo, além de uma série de condições mais oportunas e favoráveis. No entanto, nós estamos aqui cumprindo a nossa parte e fazendo de tudo para que essa realidade um dia, finalmente, aconteça.

* Jandira Feghali começou a construiu sua carreira política quando se filiou ao PCdoB do Rio de janeiro, em 1981. Ela é musicista, médica cardiologista e atuou no movimento sindical em defesa desta categoria. Em 1986, foi eleita deputada estadual constituinte, na Assembleia Estadual do Rio de Janeiro (Alerj), exercendo, ali, o seu primeiro mandato, de 1987 a 1991. Seu proeminente desempenho no Parlamento fluminense, favoreceu sua eleição como deputada federal, em 1990. De lá para cá, venceu sucessivas candidaturas à reeleição, permanecendo nos quadros da Câmara dos Deputados, até os dias de hoje, estando agora no seu sétimo mandato na Casa. Extremamente atuante e reconhecida por sua luta em prol das minorias, Jandira participou de diversas frentes parlamentares. Assumindo um importante papel na defesa das mulheres,  foi relatora da Lei Maria da Penha, promulgada no ano de 2006. Foi a candidata à prefeitura do Rio de Janeiro, pelo PCdoB, em 2016.

** Luciana Santos deu início à sua militância quando ainda era estudante de engenharia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi presidente do Diretório Estudantil (DCE) e vice-presidente da União Nacional do Estudantes (UNE). Em 1987 ela se filia ao PCdoB, mas somente dez anos depois ela assume seu primeiro cargo político (1997-1998), como suplente de deputada estadual, na vaga deixada por Rosa Maria Lins de Albuquerque de Barros. No pleito seguinte, ela se reelege como deputada estadual (2004 a 2008). Findo o mandato, ela se candidata à Prefeitura de Olinda, onde se mantém por dois mandatos (de 2000 a 2004 e de 2004 a 2008). Depois disso, torna-se Secretária Estadual da Ciência e Tecnologia, no governo de Eduardo Campos (PSB), onde permanece até 2010, quando se elege para a Câmara Federal (2011-2015). No pleito seguinte, ela se reelege, permanecendo no cargo até 2019. Em 2015, foi eleita presidente do diretório nacional do PCdoB, sucedendo Renato Rabelo. Nas eleições de 2018, foi eleita vice-governadora do estado de Pernambuco na chapa formada com Paulo Câmara (PSB).

*** Manuela  D´Ávila  se filiou ao PCdoB em 2001. Foi a vereadora mais jovem da história de Porto Alegre, eleita em 2004, e deputada federal pelo Rio Grande do Sul por dois mandatos (de 2007 a 2011 e de 2011 a 2015), ocasiões em que conquistou expressiva votação junto ao povo gaúcho. Depois, voltando ao seu estado de origem, venceu a disputa para a Assembleia Legislativa, em votação igualmente histórica, sendo deputada estadual de 2015 a 2019. Em 2018, o PCdoB lançou sua candidatura à Presidência da República. Mas, ao final, no intuito de fortalecer a frente de esquerda, Manuela se une ao Partido dos Trabalhadores, como vice de Fernando Haddad. 

****Alice Portugal começou sua militância na Universidade Federal da Bahia (UFBA), quando ainda era estudante universitária do curso de Farmácia, em Salvador. Se elegeu deputada estadual pelo PCdoB baiano, por dois mandatos (de 1995 a 1999 e de 1999 a 2003). Depois, em 2003, foi para eleita deputada federal também pelo PCdoB. Atualmente, ela cumpre seu quinto mandato consecutivo no cargo (que vai até 2023). 

Por: Luciana Lima e Ana Cristina Fagundes (Entrevista, redação e pesquisa); Revisão: Amanda Ristov
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